Quase-artista, quase-arquiteta, quase-um-tanto-de-coisas que compõe uma ode à riqueza da incompletude; pinta-rabisca-suja telas, papéis, portas, paredes, o que estiver mais próximo do pincel, das espátulas, das mãos, dos pés e da tinta, do sangue, do corpo, do gozo, da alma. Por confusão da anatomia possui dois corações repletos de amor pelas artes e por todos tons de Gaia.
Não usar o desenho para pintar pode ser como inventar novas palavras para escrever, uma grande possibilidade de criar uma linguagem, um estilo e um grande risco: o de não se fazer entender.
Por vezes é preciso criar novas palavras visando não exatamente se fazer entender, mas sim criar de maneira tal que a abertura de cada imagem seja sempre e sempre uma fissura para o novo.
Não há garantias, quanto ao que se vai ler, ver, sentir… nem em um a nem em outra arte, tanto a plástica quanto a poesia flertam continuamente com o indecidível. O indecidível para Derrida é a composição de duas partículas o nem e nem ou nem/nem.
Nem uma coisa nem outra, foi assim que as imagens da Camila adentraram minhas retinas, em constantes im-possíveis, nem um nem outro sentido e um e outro sentido e ainda tantos outros mais.
O desejo de inventar o significado ao ver-ler suas obras é constante. Meu olhar procura “ler” a tela, procura ler a cor, busca o que “quer dizer” esse ou aquele movimento delineado pelo tônus da pintura, pela rapidez ou lentidão da tinta, pelo mais claro mais escuro, pela mistura de uma ou outra cor e pelo fato também de não se tocarem aqui e ali numa ou outra imagem.
Quando por primeira vez fui bombardeada pelas sensações das telas da Camila me perguntei imediatamente: porque outras obras no mesmo gênero não me afetaram tanto? Só parcialmente cheguei à resposta depois de entender o diálogo de Hybris com a poesia.
Foi buscando poetisas a quem julgo possuírem as mesmas qualidades de sentido que então entendi sob pena da reprovação, incluindo a da artista, que Camila é para mim Ana Cristina Cesar, é Anne Sexton, é Sylvia Plah, Florbela Spanca, Emily Dickinson… é sobretudo a Hybris de uma poesia em cores. Camila, poetiza que versa com tintas.
Por isso escolhi algumas de suas obras que faziam-me ver uma ou outra poetiza, uma ou outra poesia, várias ao mesmo tempo. Não estou dizendo com isso que a tela “traduza” a poesia ou o contrário disso que a poesia possa ser ilustrada pela tela, o que estou dizendo é que o fenômeno da cor para minha percepção passou pelo entendimento da poética da poesia feminina como uma possibilidade a mais de ver-ler as obras da Camila.
O que eu quis fazer foi criar uma matriz de interpretação que levasse em conta a obra da Camila Hybris como palavras-imagens unidas a estes corações poéticos femininos que tantos sentidos podem tocar, que tantas podem pintar.
por Eliete Borges Lopes.
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VAIDADE – FLORBELA SPANCA – (Sonetos – Compêndio dos Poemas de Florbela Espanca publicados nas obras: “Livro de Mágoas”, “Livro de Sóror Saudade”, “Charneca em Flor”, “Reliquiae” e “O Livro DE Ele)
Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!
Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo!
E que deleita Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!
Sonho que sou Alguém cá neste mundo…
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a terra anda curvada!
E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho… E não sou nada!…
Estou atrás – Ana Cristina Cesar – (28.5.69- em “Inéditos e dispersos”. [organização: Armando Freitas Filho]. São Paulo: Editora Ática/IMS, 1999)
do despojamento mais inteiro
da simplicidade mais erma
da palavra mais recém-nascida
do inteiro mais despojado
do ermo mais simples
do nascimento a mais da palavra.
Donas de Casa – Anne Sexton – (Anne Gray Harvey – AllMyPrettyOnes-1962. Seleção e tradução de Maria Sousa)
Algumas mulheres casam-se com casas.
É outro tipo de pele, tem um coração,
uma boca, um fígado e movimento de entranhas.
As paredes são permanentes e cor-de-rosa.
Vejam como ela está ajoelhada o dia todo,
lavando-se fielmente de alto a baixo
Os homens entram à força, atraídos como Jonas
para as suas mães carnudas.
Uma mulher é a sua própria mãe
e isso é o mais importante.
Roupas – Anne Sexton – (Anne Gray Harvey – AllMyPrettyOnes-1962. Seleção e tradução de Maria Sousa)
Veste uma camisa limpa antes de morrer, disseram alguns russos.
Por favor, nada com baba, nódoas de ovo, sangue
suor, esperma.
Queres-me limpa, Deus,
por isso vou tentar obedecer.
O chapéu com que me casei,
servirá?
Branco, largo com um pequeno bouquet de flores falsas.
É antiquado, com tanto estilo como um percevejo,
mas fica bem morrer em algo nostálgico.
E vou levar
a minha bata de pintar
lavada vezes sem conta, claro
manchada com cada cozinha amarela que pintei.
Deus, não te importas que eu leve todas as minhas cozinhas?
Elas contêm o riso da família e a sopa.
Como soutien
(precisamos de o mencionar?)
O preto acolchoado que irritava o meu amante
quando eu o despia.
Dizia “para onde foi tudo?”
E levarei
a saia de grávida do meu nono mês
uma janela para a barriga do amor
que deixou cada bebé sair como uma maçã,
as águas a rebentar no restaurante,
fazendo uma casa barulhenta onde eu gostaria de morrer.
Como roupa interior escolherei algodão branco,
as cuecas da minha infância,
pois era uma máxima da minha mãe
que as meninas boas apenas usavam algodão branco.
Se a minha mãe tivesse vivido para o ver
teria posto um cartaz de “Procura-se” nos correios
para as pretas, vermelhas, azuis que eu usei.
No entanto, seria perfeitamente agradável para mim
morrer como uma boa menina
a cheirar a Clorox e a Duz.
Tendo dezasseis-anos-nas-cuecas.
Fagulha – Ana Cristina Cesar (Ana Cristina Cesar, em “A teus pés”. São Paulo: Brasiliense, 1982)
Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.
Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando
Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.
Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.
Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.
Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio
Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las
Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.