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Kôji Wakamatsu: O Revolucionário Erótico

Posted in Cinema, Entrevista with tags , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , on outubro 19, 2012 by canibuk

O fantástico cineasta Kôji Wakamatsu foi atropelado por um táxi dia 12 de outubro, vindo a falecer no dia 17 em decorrência dos ferimentos causados pelo acidente. Sua morte acabou ofuscada pela morte da atriz erótica Sylvia Krystel no dia 18 de outubro, ontem. Não quero parecer neurótico, nem criador de teorias de conspiração, mas me passou pela cabeça que o governo japonês tenha pagado pro taxista atropelar Wakamatsu e depois assassinado, com requintes samurais, a Krystel para que o mundo não comentasse tanto a morte dele. Mas claro, é coisa da minha cabeça. Sempre é!

Kôji Wakamatsu, nascido em Wakuya (Miyagi) em 1936, ainda adolescente foi tentar a sorte em Tokyo onde, sem dinheiro nem perspectivas de uma vida melhor, entrou para o mundo das gangues de rua e, tempo depois, foi preso. Na cadeia foi abusado pelo guardas e tomou ódio pelo estado, uniformes e instituições de todos os tipos. Nos anos de 1960 conseguiu emprego nos estúdios da Nikkatsu onde estreiou como diretor com o filme “Hageshii Onnatachi” (1963). Nos anos que se seguiram realizou inúmeros filmes de baixo orçamento (dirigiu 10 longas em 1964 e outros 8 em 1965, num ritmo de produção de dar inveja até ao Jesus Franco). “Kabe no Naka no Himegoto/Skeleton in the Closet/Secrets Behind the Wall” (1965) foi selecionado no Festival Internacional de Berlim e teve boa acolhida por parte do público e crítica, mas como os pinku eigas não costumavam ganhar o certificado de exportação do governo japonês, isso originou um embaraço político. O estúdio Nikkatsu, que não queria encrencas com o governo, lançou o filme em alguns poucos cinemas e isso limitou o sucesso da produção. Wakamatsu, irritado com este fato, resolveu deixar a Nikkatsu para formar seu próprio estúdio e realizar seus filmes de modo independente. Seu primeiro filme com produção inteiramente sua foi o drama “Taiji ga Mitsuryo Suru Toki/The Embryo Hunts in Secret” (1966), já com roteiro que misturava sexo com críticas ao governo. Com um orçamento médio de apenas 5 mil dólares por filme, Wakamatsu realizou alguns clássicos mundiais do baixo orçamento, como “Okasareta Hakui/Violated Angels” (1967), pinku eiga violento que se baseava nos crimes do serial killer americano Richard Speck, e “Yuke Yuke Nidome no Shojo/Go, Go, Second Time Virgin” (1969), onde se baseou nos assassinatos da família Mason para criar um dos filmes mais belos dos quais já tive o privilégio de assistir.

Na década de 1970 sua produção continuou intensa e cada vez mais política e provocativa. Em “Seizoku/Sex Jack” (1970) ele teorizou sobre os movimentos revolucionários de esquerda. Paralelo aos filmes que escrevia e dirigia, começou a realizar documentários, como “Sekigun – P.F.L.P.: Sekai Sensô Sengen” (1971), em parceria com Masao Adachi, sobre o exército vermelho do Japão apoiando guerrilheiros do Líbano, ou “Porn Jikenbo: Sei no Ankoku” (1975) sobre o underground sexual de Tokyo. Nesta época foi produtor executivo do clássico erótico político “Ai no Korîda/O Império dos Sentidos” (1976) de Nagisa Ôshima, já lançado em DVD no Brasil. “Seibo Kannon Daibosatsu/Sacred Mother Kannon” (1977) é um de seus filmes mais conceituados, mas infelizmente ainda não consegui assistir à este filme que é considerado um clássico de como usar simbolismos e metáforas no cinema.

A partir dos anos de 1980 seu ritmo de produção diminuiu um pouco. Seus métodos de distribuição foram esmagados pelos conglomerados cinematográficos, relegando seu cinema à festivais e ratos cinéfilos sempre em busca de prazeres da sétima arte. Wakamatsu até apareceu como ator em alguns poucos filmes, como “Rampo” (1994) de Rintaro Mayuzumi e Kazuyoshi Okuyama; “Seishun Kinzoku Batto” (2006) de Kazuyoshi Kumakiri, diretor nascido em 1974 que homenageou o cinema político de Wakamatsu em seu primeiro filme, “Kichiku dai Enkai” (1997), pequeno clássico produzido enquanto ainda era estudante de cinema; ou “Yûheisha-Terorisuto” (2007) de seu amigo Masao Adachi, entre alguns outros.

Conheci o cinema de Kôji Wakamatsu lá pelo meio da década de 1990 e foi paixão à primeira vista, se tornando em pouco tempo um dos meus cineastas japoneses preferidos. Em 2000 comprei o livro “L’Empire Erotique”, do fotografo francês Romain Slocombe, que trazia uma entrevista com Kôji Wakamatsu (traduzida do francês para o português por Ulisses T. Granados para que eu pudesse ler e que publiquei no fanzine “Arghhh” número 31, de outubro de 2002, que resgato agora no Canibuk). Na entrevista participam também o editor do Eichi Publishing e uma assistente de Wakamatsu.

por Petter Baiestorf.

Romain Slocombe entrevista Kôji Wakamatsu:

Slocombe: Ontem, em uma livraria de Jimbo-cho, eu encontrei por acaso uma fita de um dos seus filmes antigo, “Yuke Yuke, Nidome no Shojo”. Eu o assisti essa manhã antes de vir. O Título espanta um pouco, mas eu me surpreendi com a beleza das imagens e com os trechos de jazz da trilha sonora. A história é bastante simples, ainda que intelectual, não? Esse filme deve ter agradado aos estudantes da época que amavam os filmes de Ôshima. No início seus filmes eram mais violentos? Houve uma mudança de estilo?

Wakamatsu: Sim, entre os tratados de segurança Japão-USA de 1960 a 1970, o ambiente social era cada vez mais tenso. Os movimentos estudantis se faziam cada vez mais violentos. Paralelo a isso, meus trabalhos se tornavam cada vez mais excêntricos. Esse filme eu fiz no telhado do prédio da nossa repartição. Um filme dirigido totalmente em cima do telhado! As idéias me vinham enquanto eu respirava olhando para o céu! Isso não me custou quase nada, e só tive que pagar a equipe e os atores. No momento das filmagens eu não sabia se seria um filme interessante ou não. Foram os outros que me diziam se estava bom ou não, eu mesmo não tinha a mínima idéia sobre que filme que eu estava fazendo.

Slocombe: Durante a direção você modificava o script?

Wakamatsu: Eu mudo o tempo todo!

Slocombe: Você não tinha problemas quanto a sua relação com os produtores?

Wakamatsu: Sim, os produtores não ficam contentes quando o filme termina sem ter nada a ver com o projeto apresentado inicialmente.

Slocombe: Mesmo uma pequena sociedade de produção como a Art Theater Guild?

Wakamatsu: Sim, mas o mais importante é colocar o maior número de gente nas salas de exibição. Depois que eles se dão conta do sucesso não dizem mais nada.

Slocombe: Quanto mais excêntrico o filme, mais ele atraí audiência?

Wakamatsu: Sobretudo os estudantes, não o grande público. As pessoas em geral acham meus filmes “sujos”. Meus principais espectadores estão entre os intelectuais, a maior parte são estudantes universitários.

Slocombe: Qual a duração média dos seus filmes?

Wakamatsu: No início da minha carreira, sem refletir bem, eu fazia filmes de cerca de uma hora e vinte minutos (80 minutos). E, de tempos em tempos, filmes de duas horas (120 minutos). Depois eu me meti a fazer média-metragens de cerca de uma hora (60 minutos). Esse é o caso de “Okasareta Hakui/Violated Angels”. Eu não fiz esse filme com a intenção de exibi-lo nos cinemas, eu esperava fazer algo mais pessoal. E liguei para Juro Kara dizendo – “Ei, venha se divertir com a gente!”, oferecendo três grandes camarões à guisa de salário. Não custou quase nada e me contentei em exibi-lo em pequenas salas undergrounds. Ainda assim ele chamou a atenção de certos críticos de cinema.

Slocombe: Seus filmes muitas vezes tratam da relação homem-mulher e sempre o faz de uma maneira muito violenta. Numa entrevista a muito tempo atrás, lembro de você dizendo: “Entre um homem e uma mulher não pode existir nada além de guerra” (risos).

Wakamatsu: Mas sim, o relacionamento é sempre uma guerra! Aliás, a relação sempre dura mais tempo quando é mais tensa e quando há uma distância entre os dois, não é verdade?

Editor do Eichi Publishing: A propósito de “Yuke, Yuke, Nidome no Shojo”, você nos disse que o filmou inteiro em cima de um prédio. Em “Gewalt! Gewalt! Shojo Geba-Geba/Violent Virgin” (1969) você mostra uma cruz levantada num deserto e “Okasareta Hakui” se passa numa câmara fechada e desolada.

Wakamatsu: Não sei porque, mas eu adoro criar um drama dentro de um espaço limitado. Eu considerei o deserto como uma câmara fechada, isso me permite concentração. Meus trabalhos considerados mais bem realizados são aqueles que se passam em cenários isolados e limitados.

Slocombe: Gostaria de voltar a “Yuke, Yuke, Nidome no Shojo”, que assisti a pouco. Percebi o herói dele tão puro quanto o de “Okasareta Hakui”, que não tem experiência sexual e parece sentir tanto amor quanto desejo de agressão em relação às mulheres. Ele não consegue se decidir quanto a matar ou não a enfermeira, que reconhece tão pura quanto ele. Quando a garota implora para não estuprá-la, a relação ainda permanece pura. O herói de “Yuke, Yuke…” decide matar os outros garotos, mais adultos, que tinham estuprado a garota. Tenho a impressão de que você mesmo gostaria de ficar puro e encontrar uma mulher pura.

Wakamatsu: No caso de “Okasareta Hakui” fui inspirado pela chacina de enfermeiras que ocorreu em Chicago, USA. O fato de que uma delas foi poupada me interessou. Parece que ela foi a única a entender os sentimentos do assassino e por isso se salvou. No meu caso eu sou o mais jovem entre sete irmãos. Éramos todos homens e só tivemos nossa mãe na infância. Os espectadores dos meus filmes sempre percebem o meu complexo de édipo. Eu sempre me pergunto se essa tendência pessoal vem de minha situação na infância. Mas, à parte disso, eu sinto admiração pelas mulheres em geral.

Assistente de Wakamatsu: Talvez seja um “complexo de virgem imaculada”?

Wakamatsu: Exatamente. Eu procuro conforto nas mulheres, como alguns procuram na Virgem maria ou na deusa Kannon (encarnação feminina de Buda).

Slocombe: No seu filme “Seibo Kannon Daibosatsu” (1977) esse tipo de mulher surge emergindo do mar…

Wakamatsu: Refletindo bem, admito que sou um grande admirador das mulheres. Para mim a mulher é um ser que me entende e aceita totalmente, sem que aja a necessidade de me explicar. Nos meus filmes sempre se vê a aspiração por uma mulher de infinita graça e bondade.

Editor do Eichi Publishing: Há um abismo entre essa mulher idealizada e aquelas do mundo real.

Wakamatsu: É claro, existe muita diferença. Mas eu prefiro continuar buscando esse ideal do que viver na resignação.

Editor do Eichi Publishing: Para Slocombe essa mulher idealizada esta representada em suas fotos de mulheres usando ataduras, estou certo?

Wakamatsu: Eu entendo isso perfeitamente. A mulher machucada, que não pode se mover de sua cama de hospital, de certo modo esta isolada do mundo real – essa imobilidade involuntária lhe deixa mais erótica do que em seu estado natural. Deste modo a mulher se expõe sem artifícios. Uma mulher nua dormindo é uma bela visão. De fato eu sinto uma grande atração quando vejo uma mulher cheia de curativos numa cama de hospital. Se bem que uma mulher doente é algo bem menos erótico.

Slocombe: Certo, é porque a visão de uma mulher doente traz à mente a possibilidade de sua morte, o que não é agradável para mim. Uma mulher em bandagens pode não estar em sua perfeita saúde, mas não vai ter que ficar nessa posição imóvel por muito tempo.

Editor do Eichi Publishing: Visualmente, bandage branca é realmente muito bonita. Slocombe mencionou a pureza do herói de “Yuke, Yuke…”. É essa pureza que o leva a morte não? Porque seu herói morre no final?

Wakamatsu: Eu achei que essa resolução teria mais estilo. Por exemplo, eu acho Che Guevara muito chic – eu gostaria de ter vivido e morrido como ele. Infelizmente eu vou terminar como um mero diretor de filmes. Seguindo os princípios do filme, o herói não deveria morrer, mas eu achei que o final seria melhor com sua morte.

Editor do Eichi Publishing: Eu acredito que o herói teve que morrer para preservar sua pureza.

Wakamatsu: Eu não estava consciente disso porque não uso muito a razão em um filme, prefiro me guiar por minha sensibilidade e sentimentos. Frequentemente os atores não entendem o que eu quero. Eu me acho muito instintivo, como um animal. Nunca estive numa escola de cinema, nunca aprendi técnica cinematográfica. Foi por acaso que entrei nessa profissão. Eu nunca tinha sequer sonhado com isso! Eu simplesmente tive o impulso de criar alguma coisa, fosse um texto ou um filme. Eu queria tornar os meus desejos reais, por exemplo, o meu desejo de matar policiais (risos). Não posso fazer isso na vida real, é claro, mas num filme posso exterminar um monte de policiais de uma vez. Eu comecei a filmar só por esse motivo. Como alguns desses primeiros filmes tiveram sucesso, as pessoas passaram a me chamar de diretor. Desde então eu filmo constantemente, mesmo hoje em dia quando as condições estão cada vez mais difíceis. Eu construo um filme dentro da minha mente. E isso vem repentinamente. Por exemplo, “Taiji ga Mitsuryo Suru Toki” nasceu a partir de uma imagem que eu vi da janela numa manhã chuvosa de maio. A essa imagem inicial eu fui acrescentando outras, uma por uma. Mas tão logo essa imagem inicial me vem a mente, eu chamo os atores e começo a filmar. Se eu esperasse um mês ou mais, o impulso de filmar já teria se perdido.

Slocombe: Você concebeu do mesmo modo “Gendai Kôshoku-Den: Teroru no Kisetsu/Season of Terror” (1969, nota do Canibuk: Com roteiro de Kazuo “Gaira” Komizu), onde o herói, que vive com duas mulheres, explode o Aeroporto de Haneba no final?

Wakamatsu: Sim, eu realmente conhecia um cara que vivia com duas mulheres. Elas tiveram filhos quase ao mesmo tempo e se amavam, era lésbicas! Todos eles viviam muito bem juntos. Eu achei toda a situação muito divertida e quis fazer um filme sobre essas três pessoas. Foi só no fim que acrescentei o detalhe do homem ser um terrorista.

Slocombe: Sexo e terrorismo são temas que não se misturam. Foi por esse motivo que um dos meus livros foi censurado na França.

Wakamatsu: Meu filme “Seizoku/Sex Jack” foi banido da França também. Ele foi exibido primeiramente em Cannes e então proibido – embora muitos cinéfilos gostarem dele. O problema foi que no fim do filme o terrorista bonzinho tenta matar o primeiro ministro. Eles acharam muito anti-social, como também falaram que havia muito sangue em “Okasareta Hakui”.

Slocombe: Algo me intriga: Na França ou Inglaterra, um filme ou comic mostrando SM ou violência contra mulheres enfrenta censura, enquanto que cenas de sexo são bem toleradas. No Japão a situação é inversa, não?

Wakamatsu: Sim, mostrar SM ou violência num filme é perfeitamente normal, mas para sexo alguns limites foram fixados. O que significa que você não pode mostrar tudo, entende? Em alguns festivais da Europa as pessoas frequentemente riem dos filmes japoneses porque a câmera faz movimentos esquisitos para não mostrar certas coisas. Eu fico meio embaraçado quando um europeu me pergunta: – “Qual o significado daquele movimento apressado da câmera?”. Por que alguém teria que esconder órgãos genitais? Eu acho que no Japão sexo sempre foi privilégio dos poderosos, políticos, milionários, etc. No passado se dizia “os pobres que se contentem em comer arroz”. É como hoje dizerem “se contentem sem imagens de sexo”. No período Edo, pelo que li, a abertura era maior, mas após as eras Meiji e Taisho, as autoridades ficaram mais restritas.

Editor do Eichi Publishing: Enquanto SM e violência continuaram tolerados como sempre.

Wakamatsu: Sim, talvez as autoridades achem essas coisas perfeitamente normais.

Editor do Eichi Publishing: Achei a idéia interessante, o poder monopolizando o sexo.

Wakamatsu: É por isso que nos meus filmes eu caçoo do poder associando-o ao sexo.

Slocombe: Você percebeu alguma mudança recente ao assistir filmes dos jovens cineastas? E você pretende tentar outros gêneros?

Wakamatsu: Eu frequentemente noto que os jovens diretores mostram nudez com um propósito puramente comercial. Acho isso muito superficial. É por isso que raramente assisto seus filmes. Eu e alguns outros diretores, se fizemos pinku eiga, foi para expressar alguns sentimentos mais sérios. E quanto a outros gêneros, eu já experimentei a todos.

Editor do Eichi Publishing: Se entendi direito, mesmo nos seus pinku eigas, o assunto principal não era sexo?

Wakamatsu: Certo. Primeiramente eu não era aceito pelas grandes produtoras. Para fazer um filme tive que recorrer ao campo dos pinku eigas. E meus filmes tinham que ser vistos pela maior audiência possível, o que me levou a colocar nomes escandalosos como “Yuke, Yuke, Nidome no Shojo”. Lendo a palavra “virgem” (nota do Canibuk: Shojo significa virgem) as pessoas imaginavam coisas pornográficas e corriam para os cinemas. E o importante é que elas ficaram contentes com o que viam, mesmo que isso não tenha sido exatamente o que esperavam inicialmente, não acha?

Assistente de Wakamatsu: Então, agora que você pode dirigir os filmes que quiser, eles não precisam ser pinku eigas?

Wakamatsu: As coisas mudaram totalmente, atualmente estou até filmando para a TV!

Cinema de Garagem

Posted in Cinema, Literatura, Vídeo Independente with tags , , , , , , , on maio 15, 2011 by canibuk

“Cinema de Garagem” (170 páginas) de Dellani Lima e Marcelo Ikeda, lançado em 2011, faz um inventário afetivo sobre o jovem cinema brasileiro do século XXI. Mais do que necessário, a iniciativa da dupla traça um perfil das produções independentes nacionais que ganharam força com a popularização das filmadoras digitais que baratearam os custos e tornaram o cinema independente uma realidade. Nos dias de hoje só não faz filme quem não quer. Como os próprios autores escrevem sobre a publicação:

“Cinema de Garagem é um mapeamento da produção independente audiovisual brasileira da última década (2001-2010).

(…)

Esta publicação busca as conexões para compreender esta geração, que apresenta conceitos e uma série de pesquisas, geralmente bastante distintas, que na maioria das vezes se opõem às práticas comerciais do mainstream. O mapeamento não pretende abranger todos os artistas, coletivos, obras ou ações do período, mesmo que aborde diversas manifestações do audiovisual. A intenção é abrir novos caminhos, novas indagações.”

“Cinema de Garagem”, assim como os dois volumes do livro “Cinema de Bordas” (Bernadette Lyra e Gelson Santana, 2006) e o “Manifesto Canibal” (Petter Baiestorf e Coffin Souza, 2004), é um daqueles livros necessários para chamar atenção para produções marginalizadas que não encontram espaço nos meios de exibição oficiais. Como o cinema que produzo (que eu chamo de “Kanibaru Sinema” mas que na prática é a mesma coisa que “cinema de bordas” ou “cinema de garagem”) transita entre essas duas novíssimas “escolas estéticas”, eu queria muito ver os cine-bordeiros dialogando com os cine-garageiros e formando parcerias de exibição/divulgação. Parece uma idéia louca misturar cinema de gênero com cinema autoral mas, na minha opinião, é uma ótima forma de apresentar essas produções independentes para um leque maior de espectadores. A riqueza de todos esses filmes está na diferença que existe entre eles.

No “Cinema de Garagem”, Dellani & Ikeda, perguntam (ainda em 2001): “O que significaria ser independente?” e procuram mostrar essa independência tanto econômica, quanto culturalmente:

“No caso econômico seria um cinema que conseguiria prover os meios para se sustentar mesmo sem a megaestrutura dos estúdios. Isto é, com orçamentos reduzidos, equipes mínimas, produção ágil, e atendendo a um público específico, com um interesse especial em projetos que fujam do protótipo do cinemão.

(…)

O lado mais complexo da questão no entanto é o conceito cultural. Um filme independente , nessecaso, seria um filme que abordasse valores, costumes, hábitos que não são abordados pelo cinemão. Enquanto o cinemão pensa exclusivamente nas leis de mercado, como um puro negócio cujo objetivo principal é a geração de lucros, o cinema independente pode exercitar linguagem, questionar a sociedade, as estruturas do poder propor uma espécie de ensaio audiovisual, ser um cinema político, enfim, não ser primordialmente um produto a ser consumido.”

“Cinema de Garagem” é um livro imperdível para um primeiro contato com o cinema independente autoral brasileiro (assim como os livros do “Cinema de Bordas” o são para um primeiro contato com o cinema independente de gênero brasileiro), escrito por dois autores que fazem do cinema sua vida: Marcelo Ikeda é professor de cinema na Universidade Federal do Ceará e já realizou vários curtas, entre eles, “O Posto” (2005), “É Hoje” (2007), “Eu Te Amo” (2007) e “Carta de um Jovem Suicida” (2008). Já Dellani Lima realiza diversos projetos independentes (inclusive musicais), já tive o privilégio de ser ator no seu longa-metragem “O Sonho Segue Sua Boca” (2008) e posso afirmar que foi uma ótima experiência ser dirigido pelo Dellani.

Diz o Dellani que o livro não está disponível para vendas pelo correio (somente na mão, comprado diretamente com eles, em festivais/mostras de cinema), mas se você ficou interessado escreva para ele e tente comprar um exemplar (depositando valor do livro + valores postais) pelo e-mail: dellanilima@gmail.com

O cinema brasileiro independente precisa de mais livros na linha deste “Cinema de Garagem”!!!!!

Marcelo Ikeda & Dellani Lima

Do Bang Bang ao Blá Blá Blá com Tonacci

Posted in Cinema, Entrevista with tags , , , , , , , , , , , on abril 6, 2011 by canibuk

Nos meses de novembro e dezembro de 2000, com ajuda de Thomas Albornoz e Carlos Reichenbach, consegui entrevistar o cineasta Andrea Tonacci para o fanzine “Brazilian Trash Cinema” (o “BTC”) que eu editava em parceria com o Coffin Souza. Resolvi resgatar essa entrevista aqui no blog.

Baiestorf: Fale um pouco sobre você e sua obra:

Tonacci: Rapidamente, 56 anos, branco, romano, há 49 anos brasileiro, pai, separado, arquiteto e engenheiro como formação, desenhava, pintava, gravava, comecei a filmar viagens familiares com uma Paillard 8mm de corda e a primeira experiência com ficção foi de um minuto ou pouco mais, sem som, cujo título era “A Vida do Tempo”, uma seqüência rápida de imagens curtas, do nascimento até a morte através de rostos, pessoas, coisas, arte, civilização, talvez perdido ou talvez em alguma caixa ou lata guardada, enferrujada. Depois consegui uma Paillard 16mm também de corda e posteriormente um motor adaptado, e então, “Olho por Olho” e a fotografia do “Documentário” do Sganzerla e no “O Pedestre” do Otoniel Santos Pereira. Isso era tempo de rua Maria Antonia, 1966, antes do pau. Em 1967/68 no Rio (de Janeiro) aprendo com liberdade pouco responsável, e com sorte, o nível de violência física e de manipulação ideológica e social administrado bestialmente pelos subservientes militares golpistas. Da raiva, da impotência, da mentira e do idealismo cego nasce “Blá Blá Blá”. Da tentativa de quebra da auto-imagem, do questionamento dos valores moralistas, éticos/estéticos e humanos surge “Bang Bang”, metáfora intencional do eterno estado de conflito, do caos, dos homens sucata, da sobrevivência, da busca e da invenção, de insight da realidade ou ficção, e lentamente descubro o lugar da linguagem, como lugar/forma para o trânsito do sentido que no encontro com o outro pode revelar o universo comum. Mas ingenuamente busco o olhar do outro através de nossa tecnologia e vou procurar o olhar tecnológico do Índio. Ponho a Câmera na mão deles e afinal contribuo para mais um pouco de dominação imaginando estar contribuindo para a reflexão e para o mútuo entendimento. A morte de meu pai me leva ideologicamente a ter que afirmar minha capacidade de subsistência e por alguns anos trabalho dirigindo comerciais varejão e institucionais para empresas. O tempo passou e foi somente 10 anos mais tarde que “Conversas no Maranhão” devolveu alguma coisa aos índios Canela, a verdadeira dimensão e limites de seu território, quando os que eram crianças na imagem, já como adultos, vendo o filme após a morte dos velhos que lá narram a história recente do grupo, cobraram dos pais o porque da diferença territorial na versão oral por eles recebida. Os pais mentiram e manipularam a história por conveniência de sobrevivência e fraqueza. A versão ouvida era diferente da que os velhos contavam no filme. Depois “Os Arara”, editado em 1983, foi definido por Jean Claude Bernardet como uma antropologia de nós mesmos, o que é bastante próximo do que posteriormente percebi, se colocarmos isto no campo da experiência vital, sensorial, o documentário como vivência, resultado mais de um processo existencial que de uma intenção racional/documental. Mas isso eu só percebi após as mudanças metabólicas e na ordem dos meus sentidos quando passei 8 meses seguidos dentro da floresta acompanhando uma expedição oficial de primeiro contato. Isto para desespero do imediatismo da TV Bandeirantes (nota do canibuk: atual Band) que me financiava a viagem junto com uma bolsa da Guggenheim. O filme sobre a excursão dos Autos Sacramentais pelo Irã e Europa com Vitor Garcia, Ruth Escobar e companhia foi a oportunidade de trabalhar essa antropologia de nós mesmos entre nós mesmos, e com atores. Acabou em conflito jurídico com a Ruth, como produtora do filme, por revelar-lhe o jogo manipulador. O filme nunca foi exibido na TV ou cinema. Desde 1973 trabalho com vídeo portátil e até hoje venho gravando “At Any Time”, a construção de uma história que mais vivo do que conheço, que inclui amigos, familiares, realidade e encenação ao longo do tempo, as pessoas mudando, crescendo, trabalhando. A uma parte mais recente dei o nome de “Paixões”, o título que Rosemberg dera a um projeto de episódios que poderíamos ter feito com as leis de incentivo, mas não fomos hábeis na captação. Depois escrevo “Agora Nunca Mais” que foi revisto e trabalhado pelo Inácio Araújo e pelo Carlos Reichenbach, mas que nunca chegou a ser produzido e que constituiu um dos seis roteiros que a Casa de Imagens, de que éramos sócios, idealizou produzir em série. Em seguida realizo documentários e documentações de arte brasileira e internacional (90 horas de material inédito) para a fundação Bienal de SP, um de 30 minutos para a Biblioteca Nacional e um de 60 minutos sobre 100 anos do Theatro Municipal de SP. Desde 1985 dirijo a Extrema, minha produtora independente onde com a montadora Cristina Amaral consegui autonomia de realização, da captação à montagem e finalização. A produtora sustenta-se prestando serviços de edição não linear com o sistema Heawyworks e realizando vídeos como prestação de serviços. Atualmente escrevo o roteiro e produzo uma versão gravada em vídeo digital do “Serras da Desordem”, argumento para um longa-metragem, selecionado para uma oficina de roteiros do Sundance e premiado com bolsa da Fundação Vitae de SP para pesquisas. Já gravei 15 horas e gostaria de filmar no segundo semestre de 2001. Preparo um clip musical e planejo duas séries para TV. O resto é contagem regressiva.

Baiestorf: O curta “Blá Blá Blá”, de 1968, acabou por tornar-se um importante documento histórico sobre o momento pelo qual a sociedade brasileira passava na época. Comente a respeito da criação do curta, composição das personagens, roteiro e diálogos:

Tonacci: “Blá Blá Blá”. As personagens são o homem e suas ambições e sua palavra e sua contradição e sua luta e sua ignorância e seu medo e sua necessidade de sobreviver à invenção que faz de si e do mundo. E assim surge do vazio das palavras diante da traição ao seu sentido e ao homem como fim. E assim o discurso do político Paulo Gracindo compõe-se de trechos de discursos de santos à Hitlers, a Nietzsche a Mao a H. Miller a Buda a Franco a Cristo a Mussolini a Getúlio a JK e Jango e Castelo e a Andrea (Tonacci) costurando-se na reflexão e na trama do pensamento voltado ao poder da ambição e ego cegos que repetidamente na história vem justificando a violência e o extermínio de gente e idéias em nome da justiça, do direito, da paz, de Deus, da liberdade, da nova humanidade, num ritual espiral de cega invenção e progressiva desumanização, chegando hoje ao possível suicídio/genocídio coletivo. Escrevi o roteiro de um impulso em 30 dias trancado no apartamento de um amigo, com vista para o mar. Ele me hospedou após a casa onde eu vivia ter sido depredada pela repressão. Os demais personagens, de alguma forma também reais e ficcionados, representam a mesma contradição humana nas esquerdas do campo e nas cidades, ambas trucidadas pela ignorância, ingenuidade e oportunismo histórico. A besta irracional do militarismo servil aos interesses econômicos que vivíamos então era água com açúcar diante da farsa atual, da tecnologia, da manipulação, da tortura que o neo-zistema globalizante está finalizando para a consumidora humanidade descartável.

Baiestorf: E como foram as filmagens dele?

Tonacci: As filmagens foram produzidas como pequenas ações independentes e planejadas para serem rápidas e filmadas uma única vez, como as do saguão do aeroporto de Congonhas em SP, ou a discussão do Nelson Xavier no viaduto, o jipe aberto pela cidade… Ensaiadas antes e vividas na hora da câmera. Não solicitamos nunca autorizações e nem tivemos em nenhum momento qualquer interferência surpresa. Foi quase tudo filmado em lugares isolados e estúdios fechados e o material de arquivo “desapropriado” às televisões.

Baiestorf: Acho seu filme “Bang Bang” um dos mais criativos já produzidos no Brasil. Como foi a reação do público na época? Existiram muitas exibições para um público não intelectualizado? O que as pessoas comuns achavam de “Bang Bang” na época de seu lançamento?

Tonacci: A reação do público na época ao “Bang Bang” era de sentar e curtir ou insuportar, tanto que usei esta frase para significar a forma de encará-lo, mas afora amigos e jovens entusiastas o público geral do Belas Artes em SP, onde foi projetado e retirado após 4 dias (e pelo Nelson posteriormente relançado) saia em pencas, mas os que ficavam, “viajavam”. Meu pai ficou horrorizado, foi ver sem me falar, acho que questionou-se se havia feito algo errado… Bem, foi assim que, afora o (Nelson) Aguilar e o Novais Teixeira, o filme foi percebido. Mais sensorialmente que racionalmente. As projeções para um público não “intelectualizado” foram casuais mas surpreendentes, onde se gargalhava e falava sem constrangimento, e nas conversas após as exibições revelava-se a quantidade de sentidos que os símbolos projetados provocavam pela ausência cultural/memorável das referências cinematográficas citadas. Memorável foi uma exibição para funcionários de limpeza pública num cinema do Rio de Janeiro, onde, quando indo como incógnito espectador, a bilheteira me avisou tratar-se de um filme nacional e que como eu era o único espectador não haveria sessão, o que só seria possível se houvesse cinco espectadores. Providenciei no ato, na calçada, ali mesmo, para constrangimento do gerente a quem ameacei com fiscalização. O filme é inédito na TV até hoje (nota do canibuk: Dezembro de 2000). Nem a TV cultura exibiu. Existe para alguns poucos como você, cuja admiração até hoje me surpreende e gratifica.

Baiestorf: A narrativa caótica-marginal de “Bang Bang” foi uma opção ou necessidade?

Tonacci: Não sei bem se caótica-marginal, pois para mim existia uma linearidade interna às seqüências e uma lógica que no dia a dia das filmagens era continuidade, apesar de improvisar a cada noite, relendo o roteiro original, a cena a ser filmada no dia seguinte. A estrutura narrativa foi uma opção, uma escolha planejada que o montador Roman Stulback soube aproveitar indo além dos saltos que eu pretendia ter dado.

Baiestorf: “Bang Bang” é uma paródia ou é cinema de arte criticando o cinema comercial?

Tonacci: “Bang Bang” é uma paródia. A contraposição arte/comercial é manipulação ideológica e de mercado, quando não postura pedante. A época era de sangue ou conivência. A ditadura e a alta burguesia de “esquerda” geraram e financiaram o Cinema Novo como oportuna imagem internacional. Salvou-se Glauber Rocha, que soube ser brasileiro, enterrado pelos mui amigos que só foram de si próprios.

Baiestorf: Você realizou alguns curtas em vídeo com o Luiz Rosemberg. Como foi a experiência?

Tonacci: De verdade na prática pouco trabalhamos juntos, mais conversamos, muito, nos ajudamos mutuamente nas produções mais que na realização. Associamos os nomes das produtoras, e escrevemos, isto sim, roteiros e projetos que infelizmente não geraram filmes juntos. O trabalho de Rosemberg em vídeo é único e merece uma ampla retrospectiva. Gostaria de sugerir uma retrospectiva de seus filmes, de seus muito vídeos, uma publicação, uma mostra de suas colagens, de seus textos, ouvi-lo em sua visão… É um amigo radical. (nota do Canibuk: em 2005 a Mostra do Filme Livre realizou uma importante retrospectiva da obra de Luiz Rosemberg).

Baiestorf: Projetos futuros?

Tonacci: Dos projetos atuais e futuros acho que está respondido nas questões anteriores. Ficaram de fora pequenas coisas que andei fazendo recentemente como seis minutos sobre televisão para a mostra dos 50 anos da TV brasileira, o depoimento de um chefe Mankraré (Kraho) para um amigo nos estados Unidos, seis minutos como uma página do meu diário de viagem ao Maranhão para a Vitae.

Baiestorf: Como podemos adquirir cópias de seus filmes?

Tonacci: É raríssimo vender cópias, mas quando acontece costumo pedir vinte reais mais o valor do sedex. Parece justo. Nem de graça, nem o preço na praça. (nota do canibuk: em 2009 a Lume Filmes, em parceria com a Heco Produções e com apoio da Cinemateca Brasileira, lançou uma série de filmes da produção experimental dos “marginais” brasileiros, entre elas uma cópia boa do “Bang Bang” e “Blá Blá Blá” de extra, pode ser adquirido fácil nesses sites de venda pela net por uns 40 reais, confira após o trailer do “Bang Bang” mini-entrevista com o Marcelo Colaiacovo sobre esses lançamentos).

Entrevista com Marcelo Colaiacovo sobre lançamento da coleção Cinema Marginal em DVD:

Baiestorf: Como aconteceu o projeto com a Lume Filmes para lançar em DVD importantes realizações do Movimento cinematográfico que ficou conhecido como Cinema Marginal?

Marcelo Colaiacovo: Foi o intento da Heco Produções de continuar o trabalho de resgate desse período, em andamento com projetos de mostras desde 2001, unido ao belo trabalho de distribuição de DVDs de filmes de arte gringos, da Lume Filmes…

Baiestorf: Como estão as vendas?

Marcelo Colaiacovo: Caminhando…

Baiestorf: Quais são os próximos títulos de clássicos do Cinema Marginal que pretendem lançar?

Marcelo Colaiacovo: Não está confirmado, mas provavelmente Sergio Bernardes e João Silvério Trevisan…