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Remake, Remix, Rip-Off: Cem Kaya fala sobre o Inspirador Cinema Popular Turco

Posted in Cinema, Entrevista with tags , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , on outubro 3, 2016 by canibuk

“Remake, Remix, Rip-Off: About Copy Culture & Turkish Pop Cinema” (2014, 96 min.), de Cem Kaya, ganha exibição neste dia 04 de outubro no Interzona Cineclube (Cine Odeon, Centro Cultural Luiz Severiano Ribeiro, no Rio de Janeiro), às 20:30 com ingresso online sendo vendido aqui no CCLSR.

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“Remake, Remix, Rip-Off” conta a história do Cinema Turco entre as décadas de 1960 e 1970, quando a  Turquia ostentava o título de um dos maiores polos produtores de cinema do mundo, apesar de sua indústria de cinema sofrer de um déficit criativo crônico: a falta de roteiristas. A fim de manter o fluxo de filmagens, produtores turcos copiavam roteiros e argumentos de produções internacionais. Assim, para qualquer título de sucesso, como Tarzan, Drácula ou Star Trek, passou a existir uma versão turca. Este documentário nos apresenta a época de ouro do cinema popular turco, quando os diretores deviam ser rápidos e os atores resistentes.

Aproveitando essa exibição no Rio de Janeiro entrei em contato com o diretor Cem Kaya e solicitei uma entrevista sobre seu documentário e a indústria cinematográfica turca e fui prontamente atendido. Cem Kaya é extremamente simpático e seu filme, “Remake, Remix, Rip-Off” um dos mais divertidos e inspiradores documentários que tive o prazer de assistir nos últimos tempos. O cinema Turco e o cinema brasileiro são irmãos bastardos e possuem muitas coisas em comuns, como Kaya atesta na entrevista.

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Cem Kaya

Baiestorf: Sou um grande fã do cinema realizado na Turquia entre os anos 60 e 80 e seu documentário expandiu ainda mais  meus horizontes de cinéfilo. Como surgiu a idéia de documentar este período do cinema de seu país?

Cem Kaya: Eu nasci na Alemanha, em uma comunidade de trabalhadores expatriados turcos na década de 70. Então, não assisti os Yesilçam movies nos cinemas da Turquia e sim em VHSs lançados na Alemanha. Por falta de conteúdo turco na TV alemã, o surgimento dos aparelhos de VHS abriu um imenso mercado para distribuidores de filmes turcos. Vídeo clubes surgiram em todos os lugares. Meu padrasto, que tinha uma mercearia, possuía num cantinho uma sessão de vídeos turcos. Então tive acesso imediato a estes filmes. Nestas lojas não havia somente filmes turcos, mas também muitas produções de Bollywood e Hong Kong dubladas em turco. Os filmes turcos eram de todos os tipos, de melodramas em preto e branco dos anos 60, passando por comédias sexuais dos anos 70, ultra brutais filmes de vingança tipo os dirigidos por Çetin Inanç nos anos 80, até filmes de arte de diretores como Yilmaz Güney. Anos mais tarde, na faculdade, escrevi minha tese de mestrado sobre remakes turcos e, a partir de minha pesquisa acadêmica, desenvolvi o roteiro de “Remake, Remix, Rip-Off”.

Baiestorf: Parece-me que há muitas produções deste período ainda esperando parar serem descobertas pelo resto do mundo.

 

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Kaya: O Turkploitation é conhecido por seus notórios remakes, ou reinterpretações como “3 Dev Adam”, “Star Wars Turco” ou o “Turkish Exorcist”. Mas há muito mais remakes ou re-imaginações turcas do que se pode imaginar, porque os roteiristas trabalhavam muito remodelando as histórias. As vezes, assistindo um filme, eu acho que sei para onde a história vai ir, mas, em certo ponto, há uma torção e, de repente, estou numa nova história. Além disso há alguns diretores, não tão cultuados quanto Çetin Inaç ou Yilmaz Atadeniz (que nós amamos), que devemos assistir duas vezes. Um deles é Yilmaz Duru que realmente tinha estilo próprio, outro é Cevat Okçugil (e seu irmão Nejat Okçugil) e meu diretor favorito no cinema turco, Aykut Düz. Por exemplo, há um filme de Aykut Düz chamado “Muhtesem Serseri” (“O Maladro Grandioso”) que nada mais é do que um remake de “3:10 to Yuma” (“Galante e Sanguinário”, 1957) misturado com “Midnight Run” (“Fuga À Meia-Noite”, 1988) que foi lançado no mesmo ano. Ele se desenvolve na Turquia contemporânea  e é engraçadíssimo porque a dupla de atores do filme ((Cüneyt Arkin e o próprio Aykut Düz) e comportam como Terence Hill e Bud Spencer. Os diálogos são hilários e as filmagens beiram o documentário, retratando fielmente os distritos de Luz Vermelha em Istanbul. Você não encontra este filme nas listas de remakes turcos.

 

Baiestorf: Foi fácil encontrar e convencer os velhos cineastas à darem depoimentos? Aqui no Brasil a velha geração de cineastas fica desconfiada quando novos cineastas tentam entrevista-los.

Kaya: A maioria dos cineastas foram bastante amigáveis e estavam prontos para contar suas histórias. O Yesilçam Cinema é considerado cinema industrial convencional sem valor artístico. Então, quando um cara vem da Alemanha e está seriamente interessado em registrar este cinema, mesmo os céticos ficam lisonjeados e aceitam dar entrevista. Fizemos uma centena de entrevistas, das quais cerca de cinquenta estão no filme. Talvez no Brasil também tenha que vir alguém de fora registrar o cinema popular brasileiro.

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Baiestorf: É possível você apresentar um pouco da indústria cinematográfica turca para os cinéfilos do Brasil.

Kaya: Mesmo com o atraso em vários aspectos culturais do Império Otomano, os equipamentos cinematográficos chegaram cedo ao país através de um empresário chamado Sigmund Weinberg  . Mas infelizmente o cinema não se desenvolveu completamente até a década de 1950. Escolas de cinema não existiram até meados de 1970, ironicamente, surgiram num momento em que o Yesilçam Cinema entrou em crise. Aprender a fazer cinema só era possível artesanalmente ou assistindo a produções estrangeiras que eram exibidas dubladas nos cinemas das grandes cidades. Na década de 30 existiu apenas um diretor, Muhsin Ertugrul, que teve alguma educação sobre cinema no exterior. Na década de 40 alguns novos cineastas surgiram, como Baha Gelenbevi e Faruk Kenç, mas estes tiveram que lidar com os efeitos econômicos da segunda guerra mundial que tiveram um grande impacto na Turquia. Existem três razões principais pelas quais uma indústria cinematográfica como a de Yeşilçam possa surgir do nada:

1- Em 1948 o imposto de entretenimento foi reduzido para os filmes turcos, mas não para os filmes estrangeiros. Então a produção de filmes tornou-se lucrativa;

2- O governo do Partido Democrático (eles não eram democráticos em tudo), na década de 1950, estimulou a economia e levou eletricidade para muitas regiões da Anatólia, onde, em seguida, vários cinemas surgiram;

3- Os importadores de cinema estrangeiro não tinham redes de distribuição na Anatólia.

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Essas circunstâncias criaram um mercado no interior da Anatólia. Assim, de repente, cineastas turcos tinham de produzir centenas de filmes para o público rural com fome de histórias nacionais. Para ser capaz de alimentar o mercado, o cinema de Yesilçam (que é o nome de uma rua em Istanbul onde as empresas tiveram seus escritórios, comparável a Boca do Lixo paulista) teve de produzir histórias rápidas e baratas, sob medida para o gosto de seu público rural. Devido a falta de pessoal competente, roteiristas muitas vezes adaptavam histórias que tinham visto em faroestes. Devido a falta de leis e acordos internacionais de direitos autorais, a indústria local estava “autorizada a emprestar” roteiros, trilhas sonoras e, muitas vezes, até mesmo trechos de filmes ocidentais de sucesso que foram, elegantemente, editados com o material filmado pelos cineastas. Quando, por exemplo, tinham de mostrar terremotos, perseguições de carros ou um combate espacial, filmes de sucesso forneciam o material de arquivo. Mas muitos cineastas turcos também fizeram filmes importantes, cineastas como Metin Erksan ou o curdo Yilmaz Güney, produziram filmes de ação baratos e melodramas de doenças terminais para as massas, mas também cinema sério sobre temas socialmente relevantes, a maioria dos quais hoje clássicos do cinema turco. O cinema de Yesilçam teve seu auge na década de 70 com suas comédias sexuais, muito semelhantes à pornochanchada realizada na Boca do Lixo paulista. Dois golpes militares (1971 e 1980), censura severa e, finalmente, com o advento da televisão no final dos anos 60, o cinema foi perdendo força. 1989/1990 são considerados os últimos anos do cinema de Yesilçam. Com o surgimento da TV a cabo uma nova forma de entretenimento apareceu: Os seriados de TV. Turquia, assim como o Brasil, é um dos maiores produtores de novela do mundo.

 

Baiestorf: Assistindo seu documentário temos uma ideia de como os cineastas sofriam com a censura. E nos dias de hoje? Como funciona a censura, há mais liberdade para se fazer filmes?

Kaya: Desde seu início o cinema turco sofreu com a censura. O conselho de censura que foi fundado nos anos 30 tinha de liberar os roteiros e depois conferir os filmes produzidos. Os membros do conselho eram representantes da polícia, militares, o ministério da educação e assim por diante. Assim, os cineastas precisavam pensar em roteiros que fossem aprovados pelo conselho, desnecessário dizer que eles não eram muito corajosos. Eles tinham que ter muito cuidado para não colocar assuntos sociais ou políticos em seus filmes. Nada contra o sistema político poderia aparecer, sob risco de serem considerados propaganda esquerdista e, portanto, proibidos. Muitos filmes estavam autorizados a serem exibidos apenas na Turquia porque o governo temia que eles poderiam denegrir a imagem do país no exterior. Muitos filmes só puderem ser exibidos após terem ganhado processos contra o conselho de censura na suprema corte. A censura hoje é muito pior do que nos tempos do cinema de Yesilçam. Estamos vivendo sob uma ditadura muçulmano radical com agenda neo liberal na Turquia. Todas as formas de cultura (cinema, imprensa, teatro, artes, literatura, até a vida social) estão sofrendo muito com a censura cada vez mais forte. Isso incluí o cinema, do financiamento até a distribuição. É muito triste.

Baiestorf: Você pode contar algo que não está no documentário? Talvez sobre o filme “Dünyayi Kurtaran Adam” (“Star Wars Turco”), que acredito que seja o filme de seu país mais conhecido aqui no Brasil.

tarzan-istanbuldaKaya: “Dünyayi Kurtaran Adam” foi filmado no rescaldo do golpe militar de 12 de Setembro de 1980, quando a Turquia ainda era governada sob lei marcial, assim como nos dias de hoje. Çetin Inanç e sua equipe, no entanto, estavam filmando em Cappadocia que tem uma geografia muito peculiar para se parecer com outro planeta. Nas cenas dentro das cavernas necessitava-se iluminação, mas eles não podia colocar lá a iluminação porque o gerador não funcionava devido a umidade. Então eles decidiram construir um sistema de espelhos que trazia a luz para dentro das cavernas. Você pode perceber, claramente, alguns pontos de luzes em algumas cenas. Çetin Inanç havia construído um cenário para as cenas de efeitos especiais no espaço, mas elas foram destruídas com um vendaval. Após a destruição de seu cenário que ele decidiu usar cenas de “Star Wars” em sua produção. O cérebro por trás das cenas de found footage era Kunt Tulgar, dono de um estúdio de dublagem e diretor de “Supermen Dönüyor” (“Superman Returns”, 1979). Seu pai, Sabahattin Tulgar, era importador de filmes estrangeiros e foi diretor de “Tarzan Intanbulda” (“Tarzan in Istanbul”, 1952). Em seu porão ele tinha os rolos de todos os filmes que importou, um grande tesouro na era não-digital. Desta forma, além de “Star Wars”, eles puderam pegar trechos de “Black Hole” da Disney, “The Magic Sword” (1962) de Bert I. Gordon, alguns italianos de sci-fi menos conhecidos e, até, filmagens da NASA que encontraram em documentários. As fantasias e monstros foram inspiradas pelo filme de Hong Kong “Inframan” (“Zhong Guo Chao Ren”, 1975) de Shan Hua. Conheci o designer do cartaz do filme em Istanbul que me contou que a promoção para o filme era maior do que o habitual. Havia dois cartazes diferentes, um em inglês, o que significa que desde o início eles já planejavam vender para o exterior e, outro, em turco. O filme também teve uma quantidade maior de lobby cards.

Baiestorf: Ao assistir “Remake, Remix, Rip-Off” me dei conta de que a indústria cinematográfica turca e a brasileira são muito parecidas. Como está a produção de filmes hoje? Você poderia indicar ao público brasileiro alguns divertidos filmes atuais?

Kaya: Hoje temos uma produção de filmes de arte, bem diferentes do cinema de Yesilçam. Estes diretores vem de uma tradição que negligencia o cinema de Yesilçam por suas próprias razões. Muitos dos cineastas de cinema de arte de hoje foram inspirados pelos pioneiros do cinema turco independente dos anos 80, como o já mencionado Yilmaz Güney e Ömer Kavur ou, cineastas dos anos 90 como Yesim Ustaoglu e Zeki Demirkubuz. Eles realizaram filmes com pouco dinheiro e equipe reduzida e, mesmo assim, tiveram reconhecimento internacional em festivais de todo o mundo. Os anos 90 foram uma época difícil para os cineastas curdos. Após a implantação da política Islã com o governo islâmico radical AKP no poder, fazer cinema independente está se tornando cada vez mais difícil. Além disso, o cinema comercial e a TV comercial estão florescendo. Diz-se que há mais câmeras Arri em Istanbul do que em toda a Europa. No cinema de gênero “Baskin” (2015), o filme de estreia de Can Evrenol, foi uma verdadeira surpresa. É um filme de horror que atraiu público no mundo todo. O próprio diretor é um fã dedicado do cinema fantástico turco. Outro filme bem divertido que gosto bastante é “Vavien” (2009) dos irmãos Taylan, sobre um cara que quer matar sua esposa com uma abordagem Coen Brothers para a história. Dos documentários turcos gosto de “Bakur” (2015), sobre combatentes do PKK curdo nas montanhas de Kandil ou “Iki Dil Bir Bavul” (2008), sobre um professor de escola primária turca que tenta ensinar a língua turca para crianças curdas, estão entre os dez melhores documentários turcos para se assistir. Outro filme importante é “Tepecik Hayal Okulu” (2015), documentário sobre o diretor Ahmet Uluçay, recentemente falecido, um cineasta único que tem minha simpatia por ser um visionário e possuir uma maneira única de narrar suas histórias. Seu filme de ficção “Karpuz Kabugundan Gemiler Yapmak” (“Boats of Watermelon Rinds”, 2004) é uma ode ao cinema DIY (do it yourself).

Baiestorf: Como está sendo a carreira comercial de seu documentário? Ele foi lançado em muitos países? Sei que foi sensação em várias mostras de cinema pelo mundo.

Kaya: “Remake, Remix, Rip-Off” foi exibido em cerca de cem festivais em todo o mundo, incluindo Locarno, Rotterdam e o Festival de Berlin. Também foi exibido em muitos festivais de cinema de gênero, como Fantastic Fest, Fantasia e Sitges.  No Brasil estávamos no Festival do Rio e outros dois que esqueci o nome (shame on me!). O lugar mais longe em que foi exibido foi no Hawaii e o mais perto (de onde vivo) Munique. Ele também tem uma versão mais curtas exibida na TV alemã ZDF, que também financiou uma grande parte do filme. No momento estamos trabalhando para o lançamento em DVD e, também, lançamentos nas plataformas de VOD.

Baiestorf: Assisti seu filme no festival A Vingança dos Filmes B, em Porto Alegre. Sessão lotada e o público rolando de rir. Foi uma ótima sessão, com o público muito feliz e inspirado ao final da sessão. Cem, obrigado pela entrevista e, mais importante, obrigado por ter feito este documentário tão divertido e informativo.

Kaya: Muito obrigado pra ter a chance falar sobre o meu filme.

Veja o trailer de “Remake, Remix, Rip-Off” aqui:

Quando: dia 04/10, as 20:30 no Odeon.

Interzona Cineclube e Cine Odeon – Centro Cultural Luiz Severiano Ribeiro apresentam a sessão de Remake Remix Rip-Off – O fantástico cinema popular turco!, o sensacional documentário dirigido por Cem Kaya sobre umas das filmografias mais divertidas e ensandecidas do planeta: o cinema popular turco!!

Cultuado por colecionadores e pesquisadores de filme B, é difícil pensar nos turcos sem lembrar em cinema de gênero, especialmente no gênero fantástico. Com poucos recursos, mas ricos em criatividade, nada era impossível para os realizadores destes filmes. Donos de um fazer cinema orquestrado por profissionais apaixonados, acostumaram a trabalhar rápido, com baixo orçamento, muito improviso e em escala industrial.

Nesse liquidificador cultural entrava de tudo: quadrinhos, westerns italianos, novelas pulp, naves espaciais, cientistas malucos, robôs, monstros, super heróis, vilões, vikings, fadas, cowboys, justiceiros, gangsters, dramalhão, muito nonsense e soluções inusitadas devido ao pouco tempo e dinheiro. O resultado desta mistura maluca é a mais pura diversão e inventividade.

A sessão contará com apresentação do pesquisador Fábio Vellozo e um debate após a sessão: “As delicias do maravilhoso cinema popular turco” contando com Fábio Vellozo, Christian Caselli e Gurcius Gewdner, 3 fanáticos pelo mundo maluco e divertido dos cineastas turcos.

Cani Arrabbiati

Posted in Cinema with tags , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , on julho 30, 2012 by canibuk

“Cani Arrabbiati” (1974, 96 min.) de Mario Bava. Com: George Eastman, Riccardo Cucciolla, Lea Lander e Don Backy. Também conhecido como “Semaforo Rosso” ou “Kidnapped”.

Se tem um filme em que você deve confiar na indicação sem maiores perguntas e sem se informar muito, é este clássico “Cani Arrabbiati”, mais conhecido como “Rabid Dogs”, do fantástico diretor italiano Mario Bava. Na minha opinião o melhor trabalho de Bava em uma carreira repleta de grandes momentos. O mais incrível é que este filmaço, na época em que foi finalizado, não teve distribuição nos cinemas porque a produtora responsável por ele entrou em falência e foi impedida, legalmente, de lança-lo. Somente no ano de 1995 (alguns dizem 1998, não lembro direito e pesquisando achei informações desencontradas, mas vi ele em 1999 em cópia pirata conseguida pelo colecionador Thómaz Albornoz) que o filme ganhou distribuição por insistência de Lea Lander, atriz do filme (que em algumas produções assinava com o nome de Lea Kruger para lucrar com a fama de seu primo Hardy Krüger, ator em clássicos como “Barry Lyndon” (1975, Warner) de Stanley Kubrick, “A Bridge too Far/Uma Ponte Longe Demais” (1977) de Richard Attenborough ou “The Wild Geese/Selvagens Cães de Guerra” (1978) de Andrew V. McLaglen).

O que você deve saber da trama é o seguinte: Quatro ladrões tentam assaltar um carro blindado. Um deles é morto durante o assalto e os três restantes precisam fugir pegando duas mulheres de reféns (uma logo é morta) e roubando um carro que estava parado num semáforo (o motorista, Richard, diz desesperado que está levando seu filho doente ao hospital, mas não consegue sensibilizar os bandidos). Logo o trio de maníacos começa a torturar psicologicamente seus reféns (a ação do filme se desenvolve, com maestria, dentro de um carro), com um dos ladrões querendo estuprar a mulher, Maria (Lea Lander), a todo custo. Saber mais do que isso estraga as ótimas surpresas que o roteiro nos proporciona. Posso assegurar que você vai se deparar com um dos melhores finais da história do cinema (dependendo de qual versão do filme você estiver vendo, pois existem pelo menos seis cortes de “Cani Arrabbiati” circulando no mercado mundial).

Com base numa história de Ellery Queen (pseudônimo usado pelos primos de origem judaica, Frederic Dannay e Manfred Bennigton Lee) publicada pela Arnoldo Mondadori Editore através da série policial “Il Giallo Mondadori”, os roteiristas Alessandro Parenzo e Cesare Frugoni, com algumas intervenções de Mario Bava, criaram uma tensa peça sobre o sadismo humano e sua capacidade de maldades em nome de lucro fácil, com um final extremamente niilista. Mario Bava nunca esteve tão a vontade e sarcástico em um filme, dá prá sentir ele se divertindo enquanto fazia o filme. “Cani Arrabbiati” era seu filme preferido dos que fez.

Mario Bava (1914-1980) foi técnico de efeitos, diretor de fotografia, roteirista e diretor, filho do escultor Eugenio Bava, um dos pioneiros do cinema italiano, responsável por trucagens e direção de fotografia de inúmeros filmes mudos. Mario, em 1956, foi contratado pelo diretor Riccardo Freda para fazer a fotografia de “I Vampiri”, filme que Freda abandonou no meio da produção deixando a oportunidade para Bava finalizá-lo. Seu primeiro filme solo é o clássico “La Maschera del Demonio/Black Sunday/A Maldição do Demônio” (1960, London Films) com Barbara Steele no elenco. Em seguida dirigiu uma série de filmes bastante influentes como “Sei Donne per L’Assassino/Blood and Black Lace” (1964) sobre modelos assassinadas; “Terrore Nello Spazio/Planet of the Vampires” (1965) que mostra astronautas lutando contra criaturas em planeta hostil, que serviu de inspiração para “Alien” (1979) de Ridley Scott e foi plagiado por “Pitch Black/Eclipse Mortal” (2000) de David Twohy; “Operazione Paura/Kill, Baby, Kill” (1966), horror gótico bastante imitado; “Diabolik” (1968), uma adaptação adulta inspirada em histórias em quadrinhos, dando uma nova perspectiva ao gênero e “Reazione a Catena/A Bay of Blood/A Mansão da Morte” (1971, também conhecido como “Twitch of the Death Nerve” ou “Ecologia del Delitto”), slasher exemplar que, alguns anos depois, foi descaradamente copiado em “Sexta-Feira 13 – Parte 2”. Decepcionado com a distribuição de seus últimos filmes como “Lisa e il Diavolo” (1974) e “Cani Arrabbiati”, Bava realizou ainda “Schock” (1977) e se aposentou. Lamberto Bava é seu filho e seguiu a tradição familiar, sem grande destaque, na produção de filmes.

Um dos atores do filme é Luigi Montefiori (George Eastman) que se tornou conhecido por sua longa parceria com Joe D’Amato. Trabalhou com vários grandes diretores italianos como Enzo G. Castellari, Enzo Barboni, Umberto Lenzi e até Federico fellini (ele está no elenco de “Satyricon” (1969), clássico felliniano imperdível). Foi ator e produtor do clássico “Antropophagus” (1980) dirigido por seu amigo D’Amato. Outro ator de destaque no elenco é Riccardo Cucciolla, um dublador (também diretor de dublagens) que eventualmente trabalhava como ator. Cucciolla também está no elenco de “Sacco e Vanzetti” (1970) de Giuliano Montaldo, um dos mais belos filmes políticos dos anos 70.

“Cani Arrabbiati” nunca teve um lançamento no Brasil. Espero que saia uma versão nacional com material extra como um clássico destes pede (e que não seja lançado pela Continental, lógico!). A título de curiosidade: escrevi o roteiro de “Raiva” (2000) inspirado em “Cani Arrabbiati”.

por Petter Baiestorf.

Veja “Cani Arrabbiati/Rabid Dogs” aqui:

Torrente – A Série

Posted in Cinema with tags , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , on julho 25, 2012 by canibuk

“Torrente – El Brazo Tonto de la Ley” (1998, 97 min.) de Santiago Segura. Com: Santiago Segura, Tony Leblanc, Javier Cámara e Neus Asenti.

“No es Sylvestre Stallone! No es Steven Seagal! Es Santiago Segura!”, assim começava aquele instigante trailer. O ano era 1998 e vivia o impacto do ultra sucesso “Titanic” (1997) de James “Piranha 2” Cameron. Na Espanha o quase desconhecido Santiago Segura lança uma produção de baixo orçamento chamada “Torrente” que causa sensação por seu senso de humor cafajeste descompromissado e lota os cinemas espanhóis desbancando “Titanic” do posto de maior bilheteria na Espanha. Nada mal para um filme que ri dos defeitos do povo espanhol: Torrente é um porco machista de extrema direita, racista, homofóbico, fascista fã do general Franco e anti-comunista, um cidadão comum da nova Europa miserável assolada pela crise financeira. Na época, assim que “Torrente” foi lançado, fiz contato com amigos fanzineiros espanhóis e consegui uma cópia em VHS Pal Europeu, transcodificamos a fita prá VHS NTSC e pude me deleitar com as palhaçadas de Santiago Segura (eu já era fã dele por sua atuação no clássico “El Día de la Bestia” e seu “Perturbado”, um curta imperdível). “Torrente” já teve três seqüências, todas dirigidas, escritas e estreladas por Segura e tão divertidas quanto o filme de estréia.

Em “Torrente – El Brazo Tonto de la Ley”, somos introduzidos no mundo dos maus hábitos de José Luis Torrente, um gordo feio e careca que sonha em ser policial nas periferias de Madrid para combater traficantes e imigrantes ilegais. Sem escrúpulos, Torrente usa seu pai – que está numa cadeira de rodas – para conseguir dinheiro de esmolas, até o dia que Amparito (Neus Asenti) vem morar na vizinhança de Torrente, que fará de tudo para impressioná-la e garantir uma boa foda. Paralelo às suas grossas tentativas de conquistar a garota, Torrente reune um grupo de nerds fracassados – de quem ele tira dinheiro com a desculpa de que os está ensinando – e tenta prender/roubar os traficantes de droga que operam no restaurante chinês do bairro. Com uma produção de poucos recursos Santiago Segura se armou de um roteiro cheio de boas piadas, doses cavalares de humor negro incorreto e tiradas geniais que não se via mais no cinema mundial. Como curiosidade, o título deste primeiro filme é uma paródia com o título espanhol de “Cobra”, estrelado por Sylvestre Stallone, que lá tinha o subtítulo “El Brazo Fuerte de la Ley”.

“Torrente 2 – Missión en Marbella” (2001, 99 min.) é novamente escrito, dirigido e interpretado por Santiago Segura, agora munido de uma produção mais bem cuidada (ter dinheiro para fazer um filme não é tudo, mas que ajuda, isso ajuda!) e com muito mais ação. Como Torrente ficou rico (com dinheiro roubado dos traficantes) na primeira parte, agora ele mora em Marbella onde gasta rapidamente tudo em putas e casas de jogos. Sem dinheiro e sem mulheres, Torrente abre uma agência de investigação particular e se diverte fotografando e chantageando seus clientes. Sem perceber ele se envolve numa trama onde um terrorista planeja destruir a cidade se não for pago pela prefeitura de Marbella e numa de suas andanças por puteiros arranja confusão no estabelecimento de um criminoso que se revela seu tio (que depois descobrimos ser o verdadeiro pai de Torrente, novamente interpretado pelo lendário Tony Leblanc) e a conclusão da trama é uma das mais cretinas possíveis, com cada um por si e Torrente por ninguém mais que si. Um dos encantos desta segunda parte é seu humor grosso envolvendo muitas piadas familiares, Segura sabe como poucos como avacalhar o cidadão comum espanhol, a tradição familiar e seu respeito ao estado e a fé católica. O filme contabilizou mais de 5 milhões de espectadores.

Como Torrente virou herói nacional na segunda parte dos filmes, em “Torrente 3 – El Protector” (2005, 91 min.) ele é chamado pelo governo espanhol para ser o guarda-costas pessoal da gostosa deputada italiana Giannina Ricci (Yvonne Scio) que já havia sido vítima de vários atentados. Lógico que Torrente acredita cegamente que a deputada está apaixonada por ele e quer noitadas de sexo selvagem com nosso gordinho fascista. Nesta terceira parte da série, Segura escreveu um roteiro redondinho com o humor negro em sua plenitude, os testes que Torrente realiza com um grupo de vagabundos improvissados como policiais rendem ótimos momentos e sua obsessão pelo cantor El Fary atinge o âpice. Há, ainda, ótimas cenas de ação que Santiago Segura soube dosar muito bem com o humor do filme, tudo aqui é feito para resultar em gargalhadas. O filme fecha como uma ótima piada envolvendo Bush, o então presidente dos USA na época. E para nossa surpresa diretores como John Landis e Oliver Stone fazem participações especiais nesta terceira parte que arrecadou mais de 18 milhões de euros.

Já em “Torrente 4 – Lethal Crisis” (2011, 93 min.) o imbecil policial eternamente corruptível tenta enfrentar a crise européia comendo comida dos lixos das ruas e explorando imigrantes ilegais (ele subloca seu apartamento para mais de 30 latinos que estão ilegalmente em Madrid sob ameaças de deportação). A chance de ganhar uma boa grana surge quando Torrente é contratado para assassinar um homem. Depois de tentar terceirizar o serviço, o preguiçoso agente da lei precisa executar o serviço com as próprias mãos. Quando entra na casa de seu alvo, percebe que foi vítima de uma armação e é preso, indo para uma penitenciária onde comandará uma atrapalhada fuga de prisioneiros durante um jogo de futebol. Uma vez fora da cadeia, Torrente vai à um puteiro para comer putas e pensar num modo de limpar seu nome. Essa quarta, e por enquanto última, parte traz um Torrente muito parecido com os policiais da Polícia Federal Brasileira, ou seja, agentes da lei sempre querendo tirar vantagem em tudo, custe o que custar.

Sem nunca perder o pique, a série “Torrente” é fruto da imaginação do diretor, produtor, roteirista e ator Santiago Segura. Nascido em Madrid em julho de 1965, resolveu que queria ser cineasta quando dirigiu a produção amadora em vídeo “Relatos de la Medianoche” (1989) que já trazia várias características de sua obra, como o senso de humor negro. Este filme custou o equivalente à 50 dólares e abriu as portas para seu primeiro curta-metragem profissional, “Evilio” (1992), onde interpretou um psicopata imbecil com algumas boas cenas gore. Em seguida dirigiu seu primeiro grande clássico, o curta “Perturbado” (1993) onde interpreta o perturbado do título, revelando-se como o grande humorista que é. “Perturbado” merecia virar um longa-metragem. Antes de acertar em cheio com “Torrente” ainda fez o fraco “Evilio Vuelve (O Purificador)” (1994). Santiago Segura também fundou a produtora Amiguetes Entertainment que já produziu pequenos bons filmes, como “Asesino en Serio/Assassinato em Série” (2002, Europa Filmes) de Antonio Urrutia, uma debochada história do psicopata que matava mulheres através do orgasmo onde Santiago interpreta um padre filho da puta; “Una de Zombis” (2003) de Miguel Ángel Lamata, onde a trama se passa nas dependências da própria produtora Amiguetes, com Segura no papel de um produtor assediado pelas mulheres que sonham em fazer sucesso no cinema; “Promedio Rojo” (2004) de Nicolás López sobre um nerd fã de Robert Rodrigues; a comédia maluca “El Asombroso Mundo de Borjamari y Pocholo” (2004) de Juan Cavestany e Enrique López Lavigne, onde Segura interpreta Borjamari; “La Máquina de Bailar” (2006) de Óscar Aibar e “Tensión Sexual no Resuelta” (2010) de Miguel Ángel Lamata, onde o amor se torna uma arma de destruição em massa.

Como ator já participou de mais de 70 filmes, com destaque para suas parcerias com o genial diretor Álex de la Iglesia, para quem emprestou seus talentos cômicos em filmes como “Acción Mutante” (1993); “El Día de la Bestia” (1995), onde se imortalizou no papel do metaleiro retardado José Maria; “Perdita Durango” (1997); “Muertos de Risa” (1999), onde interpretou um comediante psicopata e no “Balada Triste de Trompeta” (2010), uma espécie de reciclagem chapada de ácido da idéia apresentada em “Muertos de Risa”. Também teve papel de destaque em “Killer Barbys” (1996) de Jesus Franco; “Chica de Río/A Garota do Rio” (2001) de Christopher Monger, que foi filmado no Rio de Janeiro e a única coisa que presta é Santiago Segura no papel de um taxista brasileiro; “Beyond Re-Animator” (2003) de Brian Yuzna, onde deu as caras na pele de uma personagem chamada “Speedball” ao lado do ator cult Jeffrey Combs. Eventualmente Santiago Segura aparece em pequeno papéis em filmes de Hollywood, como nas mega bombas “Blade 2”, “Hellboy 1 e 2”, “Agent Cody Banks 2”, entre outras tralhas. Não percam de vista este genial realizador espanhol.

A idéia para o primeiro filme veio enquanto Santiago trabalhava em “El Día de la Bestia”. Um dia, ao almoçar num restaurante chinês, o diretor/ator presenciou um homem sendo extremamente estúpido e grosso com uma garçonete e seu cérebro fervilhou de idéias e possibilidades para seu primeiro longa. Revivendo a comédia popular (sim, a comédia de gente genial como Bud Spencer/Terence Hill ou Os Trapalhões faz falta), Segura acertou em cheio – mesmo que sem querer – no que o público espanhol queria ver. Devido ao sucesso de público, ainda em 1998, foi lançada uma versão em quadrinhos do filme com desenhos de José Antonio Calvo publicada na revista “El Víbora”. Em 2001 a Virtual Toys lançou o jogo para PC “Torrente: El Juego”. Em 2005 a Virgin Play lançou outro jogo, desta vez para PlayStation 2, baseado na terceira parte da série intitulado, justamente, “Torrente 3: The Protector”. Correm boatos de que a New Line Cinema pode adaptar “Torrente” para o mercado americano em refilmagem que seria estrelada por Sacha Baron Cohen, mas espero que essa palhaçada fique somente nos boatos. O crítico Luis Garcia Berlanga afirmou, certa vez, sobre a primeira parte de Torrente: “O filme contém uma gag genial que define com perfeição o caráter espanhol: apoiando-se no bar, Torrente palita os dentes!”.

Neste ano de 2012 a distribuidora Paris Filmes lançou as três seqüências de “Torrente” em DVD, mas lógico que tudo sem material extra e com o pecado mortal de não ter disponibilizado o primeiro filme da série. Que venha “Torrente 5”, como fã fanático de Santiago Segura e sua estúpida maravilhosa série, fico no aguardo ansioso por mais uma desventura do gordo policial de extrema direita sem noção de nada.

por Petter Baiestorf.

Assista aqui “Torrente – El Brazo Tonto de la Ley”:

Assista aqui “Torrente 2”:

Assista aqui “Torrente 3”:

Assista aqui algumas cenas de “Torrente 4”: