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Entrei em Pânico no Youtube

Posted in Cinema with tags , , , , , , , , , , , , , , , on fevereiro 23, 2015 by canibuk

Felipe M. Guerra escreveu me avisando que, diante da impossibilidade de realizar um lançamento em DVD/Blu-Ray (porque estes lançamentos não se pagam mais, eu mesmo parei de fazer lançamentos físicos porque vende pouquíssimo), resolveu colocar seu filme no youtube.

Na palavras do próprios Felipe:

“Em 2001, quando as duas únicas opções para fazer cinema no Brasil era ser filho de banqueiro ou aventurar-se no mundo encantando das câmeras VHS, eu fiz uma sátira aos filmes slasher chamada “Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-feira 13 do Verão Passado”, gravada em VHS e com “orçamento” de 250 reais. Na época a série “Pânico” fazia muito sucesso e tinha gerado um ‘revival’ desse tipo de produção, mas eram filmes muito ruins, sem sangue, sem mulher pelada, enfim, sem aqueles elementos que faziam os velhos “Sexta-feira 13” tão divertidos. E eu resolvi brincar com os clichês do subgênero, usando amigos como atores, sangue de suco de groselha e efeitos caseiros. Seja por causa do título gigante, seja por causa da curiosidade de uma produção de horror ter sido feita no interior do Rio Grande do Sul, o filme teve uma repercussão tremenda, bem mais do que merecia. Até hoje, acho que é um dos filmes independentes brasileiros mais conhecidos, mas menos vistos.

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“Entrei em Pânico… Parte 2” surgiu de uma piada que não funcionou no final da Parte 1, quando os protagonistas fugiam de carro deixando o assassino vivo pra trás e diziam: “A gente volta na Parte 2 pra dar porrada nele”. Obviamente era só mais uma gozação, mas o final em aberto fez com que muita gente realmente me cobrasse pela Parte 2.
Em 2006 eu lancei um filme que gosto muito, uma comédia com toques de horror chamada “Canibais & Solidão”, que não teve repercussão nenhuma porque era mais comédia que terror. Inclusive não passou em festival nenhum na época. Aí eu resolvi fazer o “Entrei em Pânico… Parte 2” e dar ao público o que queria – sangue e tripas -, porque o primeiro filme teve reportagem na SET, no Fantástico e até numa revista espanhola de cinema fantástico, e eu queria tentar repetir esse “sucesso”.
O roteiro foi escrito em 2008, mas o filme só saiu em 2011. É por isso que os personagens vivem falando que o massacre do filme original aconteceu sete anos antes, e não dez. Acontece que no começo de 2009 eu me mudei para São Paulo, para fazer meu Mestrado, e voltava à minha cidade-natal (Carlos Barbosa, RS) somente de vez em quando, e era aí que filmávamos. Por isso que levei quase três anos para terminar o filme! Os atores e atrizes mudaram de peso e corte de cabelo umas 20 vezes durante as gravações, e a história do filme se passa apenas em alguns dias, mas ninguém nunca notou nada – e, se notou, não me disse.

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Para a continuação, eu trouxe de volta vários personagens do original, inclusive um que morreu no primeiro filme (meu irmão Rodrigo, ressuscitado milagrosamente e com direito a uma piada ironizando esse tipo de absurdo em filmes). Minha ideia original era colocar todos os atores do primeiro filme neste, inclusive os que morreram, pois eles iriam aparecer como fantasmas que o personagem Goti enxergava devido ao trauma de ter sobrevivido ao massacre. Mas, durante o processo de filmagem, eu percebi que isso deixaria o filme muito longo e enrolado, e o original já era assim (demorava muito para a matança começar), então cortei toda essa ideia dos fantasmas.
Uma coisa que eu fiz questão de ter na Parte 2 eram efeitos especiais elaborados. No primeiro filme eu mesmo improvisei os efeitos sem nem saber como fazer direito, então neste eu paguei uma graninha para o Ricardo Ghiorzi, um técnico de efeitos especiais de Porto Alegre, me ajudar nesse departamento. Ele foi o responsável pela grande cena do filme, em que cinco jovens são mortos de uma vez só. Sempre achei engraçado esse negócio de, nos slashers, o assassino matar uma pessoa por vez, então fiz essa cena pensando num massacre coletivo mostrado no ótimo “Chamas da Morte” (The Burning, 1981). Levamos mais de seis horas para filmar uma cena que, editada, não chega a cinco minutos!

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“Entrei em Pânico… Parte 2” custou quase 3 mil reais e deu bastante trabalho por causa do cronograma bizarro de filmagens. Eu só podia filmar quando voltava para minha cidadezinha, mas nem sempre os atores estavam disponíveis. Então tive que cortar ou alterar cenas inteiras para me adequar ao tempo e aos atores que tínhamos disponíveis em determinados momentos. Mas é um filme que a gente se divertiu muito fazendo. Inclusive, durante a gravação da última cena, eu fiz questão de tomar um banho de sangue falso atirado sobre mim pelos próprios atores.
Este foi meu filme de maior repercussão até agora. Não tanto quanto o primeiro, que chegou a revistas e ao horário nobre da Globo, mas somente porque os tempos são outros e hoje todo mundo está fazendo seu próprio filme, então isso deixou de ser notícia. Porém o filme circulou por praticamente todos os festivais de cinema fantástico e/ou independente do Brasil, e foi exibido em mostras na Argentina, em Porto Rico e no México, o mais perto que um filme meu chegou de Hollywood! Enfim, provavelmente foi meu filme mais VISTO, enquanto o primeiro as pessoas só conhecem de nome.

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De 2011 para cá, fiquei remoendo a ideia de fazer um DVD duplo caprichado para o filme, pois tenho meia hora de cenas excluídas (incluindo umas mortes alternativas) e umas divertidas entrevistas com o elenco que fiz na época, além de making-of dos efeitos especiais. Mas o panorama do cinema independente mudou bastante de 2001, quando lancei a Parte 1, para agora. Lembro que vendi mais de 500 fitas do original, mas hoje ninguém quer mais saber de comprar filme independente, todo mundo só quer baixar ou ver de graça. Então resolvi jogar o filme no YouTube eu mesmo. O lado bom é que mais gente tem acesso ao meu trabalho. O lado ruim… Bem, eu nunca mais vou recuperar meus 3 mil, e assim fica cada vez mais difícil conseguir investir mais grana em futuras produções.

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Uma coisa que “Entrei em Pânico… Parte 2” me ensinou é que certos preciosismos de diretor xarope e de estudante de cinema não fazem diferença alguma no produto final – em outras palavras, o espectador médio nem liga para isso. Por exemplo, eu me envolvi em algumas produções mais “profissionais” em que os diretores de fotografia ficavam duas horas só acertando a luz. Aqui, eu filmei tudo com luz natural ou pontos de luz simples (tipo abajures), e nunca ninguém criticou a “continuidade da luz” entre as cenas. Outra: o filme tem dois erros grosseiros de continuidade (na verdade tem um montão mas esses dois são grosseiros MESMO), e ninguém nunca percebeu. Um é a cadeira de rodas do personagem Goti: tivemos que usar dois modelos diferentes como se fosse a mesma, e elas são COMPLETAMENTE diferentes, mas ninguém notou. O segundo é a mão falsa que usamos nas cenas em que o Eliseu Demari é ferido na mão: o Ghiorzi fez a mão falsa TROCADA, e não havia mais tempo de refazer a correta, então usamos a trocada mesmo e passou batido! Assim, fica a dica para os técnicos chatos de cinema independente: dediquem-se mais à história e menos ao perfeccionismo, porque se umas barbeiragens como essas passaram batidas, não vai ser a sua iluminação 1,5% mais fraca ou o fio de cabelo fora de lugar no cenário que vão deixar seu filme uma merda!

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Mas eu confesso que gostaria muito de fazer um “Entrei em Pânico… Parte 3″. Seria como fechar o ciclo, sabe? Porque cada filme da série foi feito num momento diferente da produção independente nacional: o primeiro em VHS no começo do século 21, o segundo em digital mini-DV dez anos depois, então agora eu queria fazer um terceiro e último em Full HD, porque hoje isso já é possível e dá uma cara mais profissional mesmo ao filme mais vagabundo feito em casa. Também seria uma homenagem ao próprio cinema independente, e eu gostaria de convidar artistas fodões tipo o Ghiorzi, o Kapel Furman e o Rodrigo Aragão para fazer uma cena de morte cada, sempre bem absurda e exagerada. Mas obviamente isso demanda tempo e dinheiro que eu não tenho. Mesmo assim, é algo que eu gostaria de fazer. Quem sabe daqui mais dez anos?”
Veja o filme aqui:

Corroendo Pelas Beiradas

Posted in Arte e Cultura, Vídeo Independente with tags , , , , , , , , , , , , , , , , , , , on junho 18, 2013 by canibuk

Mais um protesto na avenida Paulista marcado para essa semana: Cineastas independentes ganham vitrine para seus filmes na mostra Cinema de Bordas que vai acontecer entre os dias de 20 a 23 de junho no Itaú Cultural (Av. Paulista 149), com a exibição de 28 produções que não contam com dinheiro público em seus orçamentos.

Zombio 2_Católicos ZumbisNo Brasil existem inúmeros cineastas independentes que não se utilizam do dinheiro público para produzirem seus filmes. Estes cineastas criaram seus próprios mecanismos de produção e distribuição e tentam evoluir de filme para filme. A produção do cinema independente é um ato político onde cineastas amadores e profissionais se negam a usar dinheiro público para empregar na realização de filmes populares. Os cineastas independentes tem o privilégio de dizer um grande não às possibilidades de trabalhar com as esmolas do governo e criar, dentro de suas próprias condições, obras que o povão entende e aplaude.

Entre os 28 filmes que serão exibidos está meu novo longa-metragem, “Zombio 2: Chimarrão Zombies”, produzido nun sistema de cooperativa que reuniu as produtoras Canibal Filmes, El Reno Fitas, Camarão Filmes e Idéias Caóticas, Bulhorgia Filmes, Sui Generis Filmes, Projeto Zumbilly, Necrófilos Produções, Fábulas Negras, Gosma e mais uns 50 colaboradores, cada um ajudando a fazer o muito com o pouco que podia ajudar.

A mostra Cinema de Bordas vai exibir o primeiro corte de “Zombio 2” (ainda falta mexer no som, efeitos sonoros, trilha sonora e cores do filme) no dia 23 de junho às 18 horas, no encerramento da mostra que prima por exibir o cinema mais autoral (e livre) produzido atualmente no Brasil.

Confira a programação aqui: Cinema de Bordas.

Petter Baiestorf.

Não deixa de acompanhar a mostra Cinema de Bordas

Não deixa de acompanhar a mostra Cinema de Bordas

Zombio 2_Américo Giallo

Zombio 2_Zumbis Podres em Festa 2

A Vingança dos Filmes B – Parte 2

Posted in Vídeo Independente with tags , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , on novembro 22, 2012 by canibuk

De 23 a 25 de novembro a Sala P. F. Gastal (3° andar da Usina do Gasômetro) recebe a segunda edição da mostra “A Vingança dos Filmes B”!

O termo “Filme B” surge durante os anos 1920 para classificar produções baratas de pequenos estúdios (westerns, suspenses, seriados de aventura), que serviam de complemento em sessões duplas para os filmes Classe A, ou seja, aqueles realizados pelos grandes estúdios com orçamentos milionários e grandes estrelas. Os “Filmes B” eram feitos a toque de corda, em poucos dias, com astros de terceira e orçamento irrisório. Existia uma área em Hollywood conhecida como Powerty Row (cinturão da pobreza), por reunir diversas produtoras independentes que forneciam filmes de baixo orçamento que eram comprados e distribuídos pelos grandes estúdios. Esse sistema funcionou até o final dos anos 1950, quando acaba a chamada “Era de Ouro de Hollywood”. Apesar da deturpação de seu contexto original, e das modificações na simbiose entre os grandes estúdios e os produtores independentes, o termo Filme B sobreviveu adquirindo conotações diferentes, mas ainda é uma boa definição para filmes de gênero realizados fora do sistema dos estúdios, com orçamento limitado, atores desconhecidos e temática fora dos padrões. Porém, hoje a tela dos cinemas é uma realidade distante para a maioria destas produções que lutam por um espaço público de exibição.

A mostra A Vingança dos Filmes B foi concebida para servir de vitrine para produções independentes que flertem com o cinema de gênero, funcionando como um espaço democrático onde coexistam os mais variados tipos de expressão cinematográfica, do horror à comédia, passando pelos filmes sci-fi e pelo cinema de ação, sem se importar com o orçamento investido (sejam produções rebuscadas ou de orçamento zero), ou com o suporte de realização. Produções em película, digital e VHS ocupando pacificamente o mesmo espaço. Um evento destinado ao resgate e a divulgação de filmes independentes, bizarros, engraçados ou assustadores, incentivando o público a dialogar com obras que dificilmente encontram espaço nas telas dos cinemas.

Chegou a hora dos independentes retomarem o seu espaço nas telas, mas não como meros coadjuvantes, e sim como atração principal! Está na hora da Vingança dos Filmes B-Parte 2!

escrito por Cristian Verardi, curador da Vingança dos Filmes B.

PROGRAMAÇÃO

A VINGANÇA DOS FILMES B – PARTE 2

(ENTRADA FRANCA / CLASSIFICAÇÃO: 16 ANOS)

 Sexta-Feira, 23 de Novembro.

19h30- Horror.Doc (72’), de Renata Heinz

(OBS: Após a sessão debate com Renata Heinz).

Sábado, 24 de novembro

15h- 20 Anos de Canibal Produções: Baiestorf – Filmes de Sangreira e Mulher Pelada (20’),Christian Caselli + Boi Bom (12’)  + Blerghhh!!! (50’). (Após a sessão debate com Petter Baiestorf)

17h30- Sessão Trash’O’Rama: Cachorro do Mato (15’), de Maurício Ribeiro + Amarga Hospedagem (60’), de Claúdio Guidugli. (OBS: Após a sessão debate com o realizador Cláudio Guidugli)

19h30- Sessão de Curtas I: O Solitário Ataque de Vorgon (6’), de Caio D’Andrea + Rango (6’), de Rodrigo Portela + Morte e Morte de Johnny Zombie (14’), de Gabriel Carneiro + Sangue e Goma (11’), de Renata Heinz + Vontade (10’), de Fabiana Servilha + Nove e Meia (20’), de Filipe Ferreira + Rigor Mortis (20’), de Fernando Mantelli e Marcello Lima. (OBS: Após a sessão debate com os realizadores)

(total: 87 minutos).

Domingo, 25 de Novembro

15h- A Noite do Chupacabras (95’), de Rodrigo Aragão

17h- Maldita Matiné: Testículos (15’), de Christian Caselli + Street Trash (1986)de Jim Muro (90’)

19h30- Sessão de Curtas II: Raquetadas Para a Glória (7’), de TV Quase + X-Paranóia (14’), de Cristian Cardoso e Felipe Moreira  + DR (10’),de Joel Caetano e Felipe Guerra + Confinópolis – A Terra dos Sem Chave (16’), de Raphael Araújo +  O Curinga (14’), de Irmãos Christofoli + Coleção de Humanos Mortos (20’), de Fernando Rick + Rackets in London- The Olympic Dream (7’), de TV Quase. (OBS: Após a sessão debate com os realizadores).

(Total: 89 minutos).

Para ler sobre os filmes que serão exibidos, acesse o blog de Verardi.

Miooooloosss!!!!

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“The Return of the Living Dead” (“A Volta dos Mortos Vivos”, 1985, 91 min.) de Dan O’Bannon. Com: Clu Gulager, James Karen, Don Calfa, Linnea Quigley e Jewel Shepard. Roteiro de Dan O’Bannon, com ajuda de Rudy Ricci e Russell Streiner, baseado em livro de John Russo. Efeitos e Maquiagens de Allan A. Apone e Tony Gardner.

Este talvez seja, ao lado do trio “Re-Animator” (1985, Stuart Gordon), “Evil Dead 2” (1987, Sam Raimi) e “Braindead/Fome Animal” (1993, Peter Jackson), o mais famoso splatstick do cinema mundial. Mas o que é um splatstick? Splatstick é uma palavra derivada de splatter (para sangue) e splastick (para comédia física), ou seja, splatstick é um filme gore com altas doses de comédia pastelão. Aqui no Brasil o principal representante dos splatstick talvez seja eu mesmo e minha Canibal Filmes, várias de minhas produções tentam combinar violência explícita com comédia sem noção, como “Eles Comem Sua Carne” (1996), “Blerghhh!!!” (1996) ou “Zombio” (1999). Outros representantes do sub-gênero no Brasil são os cineastas Fernando Rick, dos ótimos “Rubão – O Canibal” (2002) e “Feto Morto” (2003) e Felipe Guerra de filmes como “Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-Feira 13 do Verão Passado” (2001) e “Canibais e Solidão” (2008).

“The Return of the Living Dead” já nasceu clássico. A História começa com um punk conseguindo emprego num armazém de abastecimento de produtos médicos onde Frank (James Karen) tenta impressioná-lo mostrando cilindros que estão no porão do armazém e que conteriam os mortos-vivos que teriam dado origem ao filme “The Night of the Living Dead/A Noite dos Mortos Vivos” (1968) de George A. Romero. Claro que ao mexer no cilindro a dupla libera o gás e reanima um corpo morto (e borboletas empalhadas e um meio-cachorro também) que eles não conseguem matar nem com uma picaretada no cérebro. Burt (Clu Gulager) conhece Ernie (Don Calfa), o agente funerário que trabalha no cemitério ao lado, e resolvem picar o corpo do morto-vivo para queimá-lo no forno crematório e isso faz com que o gás, através da fumaça, se misture as nuvens de uma tempestade que cria uma chuva ácida que levanta todos os mortos do cemitério. Um grupo de punks se junta ao grupo do necrotério em sua luta contra os zumbis – mais espertos que os vivos – e está reunido os ingredientes para um splatstick genial.

Em “The Return of the Living Dead” tudo funciona maravilhosamente bem. Figurinos, cenários, maquiagens, trilha sonora, atores, piadas e a direção de O’Bannon concilia tudo de uma maneira a deixar o filme um perfeito passatempo para os jovens da minha idade (não faço idéia do que essa geração apática de agora pode achar deste filme, certamente dirão: “É podre!!!”, sem conseguir esboçar mais palavras sobre a produção). Aqui os zumbis são mais inteligentes do que os vivos, em uma cena um morto vivo pega o rádio da ambulância e chama mais médicos para o suprimento de cérebros continuar fresquinho! Os zumbis aqui também são mais ágeis do que os mortos vivos do Romero e quando a Trash (Linnea Quigley) é transformada em zumbi, para nosso deleite, a temos peladinha em busca de cérebros. Impensável para o puritano cinema de horror dos dias de hoje.

Inicialmente “The Return of the Living Dead” era para ter sido dirigido por Tobe Hooper (que acabou abandonando o projeto para se dedicar ao “Lifeforce/Força Sinistra”, também com roteiro de Dan O’Bannon). Sem diretor para seu filme o produtor Tom Fox ofereceu a função ao roteirista O’Bannon que aceitou com a condição de que poderia diferenciá-lo dos filmes de George A. Romero. Como a essa altura o autor original, John Russo, já havia caído fora do projeto, Dan adicionou humor e nudez, uma combinação que sempre deixa os filmes violentos melhores e finalizou seu filme em tempo de lançá-lo junto da produção “Day of the Dead/Dia dos Mortos” (1985) de George A. Romero. O splatstick alucinado de O’Bannon fez muito sucesso, deixando o sombrio filme de Romero sem público, que naquele período dos anos de 1980 estava mais interessado em produções carregadas de humor incorreto e nudez. O filme teve quatro seqüências desnecessárias até agora: “Return of the Living Dead 2” (1988) de Ken Wiederhorn; “Return of the Living Dead 3” (1993) de Brian Yuzna; “Return of the Living Dead: Necropolis” (2005) e “Return of the Living Dead: Rave to the Grave” (2005), estes dois últimos filmados simultaneamente por Ellory Elkayem. Como curiosidade: A personagem de James Karen era para ter se tornado um zumbi e se juntado a multidão de mortos-vivos, mas James não queria filmar na chuva fria e sugeriu que sua personagem se matasse antes da transformação ser concluída. Como O’Bannon adorou a sugestão a incluiu no roteiro e criou um dos mais belos momentos do filme, tudo embalado com a canção “Burn the Flames” de Roky Erickson.

Aliás, a trilha sonora de “The Return of the Living Dead” é um achado. Além da música de Roky Erickson, trazia ainda bandas maravilhosas como The Cramps, 45 Grave, TSOL, The Fleshtones, The Damned, Tall Boys, The Jet Black Berries e SSQ, numa mistura de punk rock com deathrocks que foram a cara dos anos de 1980. Assisti este filme em 1988 quando tinha 14 anos e foi delírio puro. Punkrock, gostosa pelada dançando sobre túmulos, zumbis podrões com senso de humor parecido com meu próprio senso de humor, sangue jorrando, corpos desmembrados, diálogos hilários e um final provocadoramente anárquico. Era puro rock’n’roll! A música original do filme foi composta por Matt Clifford que trabalhou mais em teatro do que cinema. Clifford também foi responsável pela música do curta “The Basket Case” (2007) de Owen O’Neill (não confundir com “Basket Case” de Frank Henenlotter).

John Russo, para quem não sabe, foi o roteirista de “The Night of the Living Dead” e viveu a sombra deste trabalho. Logo após o lançamento do grande clássico do cinema zumbi, em 1968, a dupla Romero-Russo se separou (Russo ainda produziu “There’s Always Vanilla”, 1971, de Romero) com Romero tendo os direitos de produzir as seqüências do filme original e Russo ficou detentor do título “Living Dead” (por isso os filmes de Romero nunca puderam usar “Living Dead” em seus títulos). Russo produziu filmes como “Night of the Living Dead” (1990) de Tom Savini e “Children of the Living Dead” (2001) de Tor Ramsey; escreveu coisas como “The Majorettes/Retratos da Morte” (1987) de S. William Hinzman (que em 1968 foi um zumbi no clássico “The Night of the Living Dead”, usando o nome de Bill Heinzman), “Voodoo Dawn” (1991) de Steven Fierberg, “Night of the Living Dead 3D” (2006) de Jeff Broadstreet e “Another Night of the Living Dead” (2011) de Alan Smithee (provavelmente o nome Alan Smithee está sendo usado aqui para evitar brigas com Romero) e dirigiu tranqueiras como a comédia “The Booby Hatch” (1976) com co-direção de Rudy Ricci, “Midnight” (1982), “Heartstopper” (1991), “Santa Claws” (1996) e agora cuida da pré-produção de “Escape of the Living Dead”, ainda sem previsão de lançamento. John Russo é um picareta do cinema americano e parece possuir um senso de humor bem peculiar já que está sempre se auto-parodiando com seus intermináveis filmes de “living deads”.

Dan O’Bannon se revelou uma escolha perfeita para a direção de “The Return of the Living Dead”. Nascido em 1946 O’Bannon estreou no cinema ao lado de John Carpenter no divertido trash-movie “Dark Star”. Roteirista de sci-fi e horror, O’Bannon escreveu grandes filmes como “Alien” (1979) de Ridley Scott; “Dead and Buried” (1981) de Gary Sherman; alguns segmentos de “Heavy Metal” (1981) de Gerald Potterton; “Blue Thunder” (1983) de John Badham; “Invaders From Mars/Invasores de Marte” (1986) de Tobe Hopper; “Total Recall/O Vingador do Futuro” (1990) de Paul Verhoeven; “Screamers” (1995) de Christian Duguay; “Bleeders” (1997) de Peter Svatek; além dos já citados “The Return of the Living Dead” e “Lifeforce”, ambos de 1985. Também dirigiu “The Resurrected” (1992), baseado em H.P. Lovecraft, uma produção repleta de problemas oriundos de seu baixo orçamento. Dan O’Bannon morreu em 2009 deixando milhares de fãs de sci-fi/horror sem suas ótimas histórias que sempre tentavam fugir do lugar comum do gênero.

“The Return of the Living Dead” lançou a carreira do técnico em animatrônicos Tony Gardner, que foi o responsável pela criação do “meio-zumbi” que explica aos heróis do filme porque os mortos precisam comer cérebros. Depois trabalhou em filmes como “The Blob/A Bolha Assassina” (1988) de Chuck Russell; “Nightbreed” (1990) de Clive Barker; “Darkman” (1990) de Sam Raimi; “Blood Salvage/Mad Jake” (1990) de Tucker Johnston; “Army of Darkness/Uma Noite Alucinante 3” (1992) de Sam Raimi; “Freaked/Freaklândia” (1993) de Tom Stern e Alex Winter e “A Dirty Shame/Clube dos Pervertidos” (2004) de John Waters. O filme também trazia as maquiagens gore de Allan A. Apone que estreou trabalhando no falso documentário “Faces of Death/As Faces da Morte” (1978) de John Alan Schwartz. Depois trabalhou em divertidas produções como “Evilspeak/O Mensageiro de Satanás” (1981) de Eric Weston; “Galaxy of Terror” (1981) de Bruce D. Clark; “Parasite” (1982) de Charles Band, que trazia uma jovem Demi Moore no elenco; “Hospital Massacre” (1982) de Boaz Davidson; “Friday the 13th part 3/Sexta-Feira 13 – Parte 3” (1982) de Steve Miner; “Wacko” (1982) de Greydon Clark; “Return to Horror High/De Volta à Escola de Horrores” (1987) de Bill Froehlich. Na década de 1990 começou a trabalhar em grandes produções de Hollywood, geralmente super-produções sem nenhum atrativo para trashmaníacos.

Os atores escolhidos para viver as tresloucadas personagens de “The Returno f the Living Dead” estão perfeitos. Vale a pena destacar a participação dos veteranos Clu Gulager, Don Calfa e James Karen. Clu Gulager (1928) trabalhou na TV e cinema americano. Com sangue Cherokee correndo em suas veias, Clu serviu na marinha americana e logo após a Segunda Guerra Mundial estreou na série “The United States Steel Hour”. Ainda trabalhando na TV, foi em 1962 personagem no episódio “Final Vow”, com direção de Norman Lloyd, na série “The Alfred Hitchcock Hour”. Estreou no cinema pelas mãos do genial Don Siegel em “The Killers/Os Assassinos” (1964), onde contracenou com Lee Marvin, John Cassavetes e o futuro presidente Ronald Reagan. Outros filmes em que Clu Gulager trabalhou são “The Last Picture Show/A Última Sessão de Cinema” (1971) de Peter Bogdanovich; “McQ” (1974) de John Sturges; “A Force of One/Força Destruidora” (1979) de Paul Aaron, estrelado por Chuck Norris e “A Nightmare on Elm Street 2: Freddy’s Revenge/A Hora do Pesadelo 2” (1985) de Jack Sholder. Em 2012 pode ser visto no filme “Piranha 3DD/Piranha 2”, com direção de seu filho John Gulager. Don Calfa (1939) nasceu em New York e seu papel mais conhecido é o do agente funerário em “The Return of the Living Dead”. Calfa se especializou em comédias e deu as caras em vários filmes divertidos como “Shanks” (1974) do lendário Willian Castle; “New York, New York” (1977) de Martin Scorsese; “10/Mulher Nota 10” (1979) de Blake Edwards; “1941” (1979) de Steven Spielberg; “Treasure of the Moon Goddess/O Tesouro da Deusa Lua” (1987) de José Luis García Agraz, estrelado por Linnea Quigley; “Weekend at Bernie’s/Um Morto Muito Louco” (1989) de Ted Kotcheff e “Necronomicon” (1993) de Christophe Gans, Shûsuke Kaneko e Brian Yuzna. James Karen (1923) começou trabalhando no teatro, depois passou a trabalhar em séries de TV. Em 1965 foi ator, ao lado do genial comediante Buster Keaton, no curta de 20 minutos “Film” de Alan Schneider. No mesmo ano estrelou o impagável “Frankenstein Meets the Spacemonster” de Robert Gaffney e tomou gosto por filmes vagabundos, alternando-os com participações em filmes importantes. Está no elenco de coisas como “Hercules in New York” (1969) de Arthur Allan Seidelman, estrelado por um jovem Arnold Schwarzenegger em seu filme de estréia; “All the President’s Men/Todos os homens do Presidente” (1976) de Alan J. Pakula; “Capricorn One” (1977) de Peter Hyams; “The China Syndrome” (1979) de James Bridges; “Poltergeist” (1982) e “Invaders From Mars” (1986), ambos de Tobe Hooper; “Return of the Living Dead 2” (1988), entre vários outros. E atente para as participações de Linnea Quigley no papel da punk pelada e Jewel Shepard, atriz que já trabalhou em filmes adultos como “Hollywood Hot Tubs/Banhos Ardentes (1984) de Chuck Vincent e “Christina y La Reconversión Sexual” (1984) de Francisco Lara Polop.

Nos USA foi lançado em 2007 uma edição de colecionador de “The Return of the Living Dead”, com muito material extra e entrevistas com o elenco. Aqui no Brasil foi lançado em VHS pela Globo Vídeo e acabou de sair em DVD, sem extras e com qualidade de imagem meia boca, pela distribuidora Flashstar. Realmente o mercado brasileiro não sabe como tratar um clássico do splatstick cinematográfico mundial.

por Petter Baiestorf.

Assista “The Return of the Living Dead” aqui:

Discutir a Relação: A Sogra Metendo o Dedo na Ferida do Casal

Posted in Vídeo Independente with tags , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , on setembro 7, 2012 by canibuk

“DR” (2012, 10 min.) de Joel Caetano e Felipe Guerra. Com: Dona Oldina, Mariana Zani e Joel Caetano.

Não há nada pior num relacionamento em crise do que gente de fora dando pitaco. “DR”, curta-metragem que marca a primeira parceria entre Joel Caetano e Felipe Guerra, fala justamente sobre isso: Um casal em crise (Joel e Mariana, casados na vida real) vai discutir sua relação com a sogra (Dona Oldina) não só presente, como no papel de mediadora. A sogra e a esposa despejam acusações contra o marido que escuta tudo pacientemente calado (logo depois descobrimos que ele não se defende porque está amarrado e amordaçado), logo o que era violência verbal se torna violência física e sexual com a sogra abusando do genro imobilizado, assim que a tortura física tem início dentes e dedos quebrados vão surgindo num crescendo de violência que culmina num ataque de fúria do marido contra a sogra. Nada mais atual nos dias de hoje, quando a violência tomou lugar do diálogo. Não sei se foi intencional, mas o modo como o roteiro do filme trata do ciúme possessivo é de longe uma das melhores abordagens do tema que já vi no cinema independente brasileiro. Lógico que o filme se revela meio machista, colocando a culpa de tudo nas mulheres, como se o homem fosse uma vítima do casamento e da tirania da sogra, excluindo-o do fato de, no filme, ficar claro que ele traia a esposa. Fácil de entender quando pensamos que o roteirista é Felipe Guerra, gaúcho tradicional dos pampas. Como o filme não é sério em momento algum, este “machismo” de brincadeira não atrapalha. Não posso falar muito mais sobre a história, mas é um grande acerto da dupla de diretores.

Dividindo a direção, a dupla desenvolveu um argumento que Felipe Guerra havia escrito para filmar em apenas um dia aproveitando que Dona Oldina, sua vó, estaria em São Paulo. “Já tinha colocado minha vó como fantasma, tarada e assassina serial nos meus outros filmes e queria que ela novamente fizesse um papel onde pudesse surpreender o público. Foi quando tive a idéia de “DR”. Porque todo mundo faz filme com vampiro, assassino mascarado, zumbi, mas duas das coisas mais assustadoras da “vida real”, e creio que para ambos os sexos, são sogras e discussões de relação. Imagine que se discutir a relação já é foda, com a sogra junto é duas vezes pior. Então pensei nesse negócio de uma DR em que a sogra passasse um pouco dos limites e o curta tornou-se uma experiência meio “torture porn”, aqueles filmes em que uma personagem passa o tempo todo sendo torturado.”, nos conta Guerra, enquanto Joel explica como foram as filmagens: “Ano passado Dona Oldina veio para São Paulo para acompanhar o Cinefantasy e o Felipe me mandou uma mensagem dizendo que tinha uma idéia que dava para filmar em um dia, num apartamento e com três atores, no caso Dona Oldina, eu e Mariana Zani. Nem precisei ler o roteiro para aceitar a proposta e, depois que li, fiquei muito feliz pois era uma ótima idéia. Assim surgiu o “DR”. O filme foi feito todo de forma colaborativa. O sangue foi cedido de uma oficina que o Rodrigo Aragão estava ministrando na época (um sangue, como ficamos sabendo mais tarde, que seria descartado por não ter funcionado direito). Além de nós quatro também estavam a Daniela Monteiro e a mãe do Felipe, dona Neusa Guerra. Eu e Felipe ficamos na direção, eu mais preocupado com a direção de atores e ele com a direção de cena. O Felipe fez a câmera e fizemos juntos a iluminação. Daniela e Neusa cuidaram da captação direta do som e eu fiquei com os efeitos especiais também”. Aliás, os efeitos especiais estão extremamente convincentes, o que imprime uma força narrativa de maior intensidade ao filme. Joel Continua, “Me orgulho do efeito do dedo se quebrando, simplesmente comprei uma mão falsa, cortei o dedo dela, escondi o meu e quando a mariana dobra é o dedo falso que se move para trás, a sonorização e o corte rápido fizeram o resto, ficou bem convincente, vi algumas pessoas pulando da cadeira no cinema, o que acontece também na cena dos dentes que se quebram, eu mesmo fiquei agoniado com aquilo vendo na tela”.

“DR” é um filme onde tudo está bem realizado e aproveitado, provando que não é necessário grandes orçamentos para se produzir um bom filme. Mas Dona Oldina é quem rouba o filme para si, de longe é sua melhor interpretação e ela está fantástica como a sogra perturbada e violenta. Felipe nos conta como foi trabalhar com ela: “Com 82 anos de idade minha vó topou todas as cenas numa boa e em nenhum momento ficou escandalizada com a violência, porque ela entendia que era algo exagerado e absurdo para divertir e não para chocar. Ela não tem dificuldades com as cenas físicas, seu maior problema é lembrar as falas. Fizemos uns 20 takes só dela tentando falar a frase “discutir a relação”, porque na hora ela se embananava e falava “a questão da relação”. Dona Oldina só ficou preocupada com a possibilidade do filme ser exibido em Carlos Barbosa/RS, que é uma cidadezinha de 25 mil habitantes, e ela tem medo de ser expulsa do grupo da igreja. Minha vó também fez um improvisso hilário em que dá um rápido beijo na boca do Joel, felizmente quando ele está amordaçado”. E Joel completa rindo, “Até hoje o Felipe me chama de vô!”.

A edição do curta foi decidida também em conjunto pela dupla de diretores. “Foi uma edição em conjunto, eu estava operando o software e o Felipe do meu lado, todas as decisões de cortes foram tomadas por nós dois. A montagem só demorou mais porque em determinados momentos, principalmente na cena em que eu chuto a personagem da Dona Oldina, eu tinha crises de riso. O Felipe tinha que me sacudir para eu parar de rir!”, conta Joel. O resultado final deste trabalho em conjunto, além de impressionar o espectador, deixou ambos os diretores satisfeitos, como define Felipe ao dizer “Foi interessante fazer esse projeto em conjunto com o Joel, um cara cujo trabalho eu respeito muito com o qual tenho bastante afinidade. É difícil você encontrar alguém que tope fazer uma parada assim, sem dinheiro e filmada na raça, num único dia”, enquanto Joel dá pistas para o futuro da parceria, “Espero poder repetir a dose em breve!”.

Por enquanto “DR” pode ser visto apenas em mostras e festivais, mas espero que em breve ambos os diretores tomem vergonha na cara e lancem um box com toda sua filmografia, tanto Caetano quanto Guerra estão devendo o lançamento de seus filmes para que o público de outras regiões do Brasil possa tomar contato com suas obras.

Por Petter Baiestorf.

Clique em “Joel Caetano e seu Cinema de Recurso Zero” para ler a entrevista que fiz com ele.

Clique em “Necrófilos em Ação: O Cinema de Felipe Guerra na Terra da Polenta” para ler a entrevista que fiz com ele.

Quarta Edição do Cinema de Bordas

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Do dia 01 a 05 de agosto o Itaú Cultural abre seu espaço para a mostra Cinema de Bordas que vai trazer ao público paulista cerca de 23 filmes de realizadores independentes. Cinema de Bordas (ou Cinema de Garage ou Cinema Trash ou Cinema Caseiro, tanto faz, é tudo rótulo bom prás vendas) é o cinema independente brasileiro que faz o tudo com o nada e, na base do improvisso mesmo, mantêm viva a possibilidade do fazer sem ajuda do Estado pai-patrão. Se no cinema independente brasileiro o improvisso é o que mais se destaca, note-se que não é uma opção dos diretores (todos estariam filmando com dinheiro se pudessem), mas sim uma triste realidade deste paisinho dominado por corruptos e ignorantes que não tem investidores financeiros, nem canais de distribuição, para estes filmes realizados aos trancos e barrancos que acabam tendo uma recepção de público mais calorosa do que a maioria das produções profissionais de cinema do Brasil.

Nesta edição destaque para a exibição de “A Maudição da Casa de Vanirim” (nota do Canibuk: Sim, “maudição” escrito assim mesmo!) de Seu Manoelzinho, longa produzido em 1987, em VHS, que estava sendo considerado perdido e que agora, finalmente, terá sua primeira exibição pública. “Vermibus” (2012) de Rubens Mello estará estreiando no evento. Rubens Mello, prá quem não sabe, foi ator em filmaços como “Encarnação do Demônio” (2008) de José Mojica marins, “Ivan” (2011) de Fernando Rick e é um dos organizadores do Guarú Fantástico.

Joel Caetano e sua esposa Mariana Zani estarão ministrando uma oficina sobre como fazer filmes sem grana nenhuma em paralelo ao evento. Antes da mostra, dia 31 de julho, rola um debate no programa de TV Jogo de Idéias com participação de Kika de Oliveira (“Mangue Negro”), Dona Oldina (“Extrema Unção”), Gisele Ferran (“O Doce Avanço da Faca“), Mariana Zani (“Estranha“) e o diretor Seu Manoelzinho.

E o mais lindo desta quarta edição da mostra é que vai rolar o lançamento do terceiro livro sobre realizadores de Cinema de Bordas que é uma fonte de pesquisa sempre bem vinda. Os realizadores independentes brasileiros merecem mais iniciativas como essa.

Um fã ao lado de Seu Manoelzinho (dir.)

PROGRAMAÇÃO

1 de agosto (quarta-feira)

20h   Bate-papo com os curadores Bernadette Lyra, Gelson Santana eLaura Cánepa, seguido de exibição de seleção especial de filmes:

Onde Está Meu Rim?, de Renato Dib (1 min, Manaus, 2010)
Roquí Son Contra o Extermínio Ambiental, de Renato Dib (2 min, São Paulo e Manaus, 2012)
DR, de Felipe Guerra e Joel Caetano (12 min, Carlos Barbosa e São Paulo, 2012)
Vermibus, de Rubens Mello (25 min, Guarulhos, 2012)

2 de agosto (quinta-feira)

18h – Morte e Morte de Johnny Zombie, deGabriel Carneiro (14 min, São Paulo, 2011)
Entrega Especial, de Rodrigo Brandão (27 min, Juiz de Fora, 2006)
Fatman & Robada, de Rogério Baldino (32 min, Porto Alegre, 1997)
Brasil, um País de 5%, de Nerivaldo Ferreira e Johel Alvez Bright (36 min, Rio Real, 2011)

20h – Hipnose Para Leigos, deChico Lacerda (6 min, Recife, 2005)
Como Irritar Dandies do Hardcore, de Gurcius Gewdner (16 min, Rio de Janeiro, 2012)
Mais Denso que Sangue, de Ian Abé (15 min, Cabaceiras, 2011)
Jerônimo, O Herói do Sertão, de David Rangel (32 min, Paty do Alferes, 1996)
Seguido de bate-papo com David Rangel, mediado por Rogério Ferraraz

3 de agosto (sexta-feira)

18h – Antes/Depois, de Christian Caselli (9 min, Rio de Janeiro, 2005)
Bastar, de Gustavo Serrate (20 min, Brasília, 2010)
Black Power Jones, de Igor Simões Alonso (17 min, Osasco, 2012)
O Cabra Bode, de Milton Santos (45 min, Cícero Dantas, 2011)

20h – Necrochorume, de Geisla Fernandes (17 min, São Paulo, 2012)
Lua Perversa 2, de André Bozzetto Jr (18 min, Pinhalzinho, 2011)
A Lenda da Lagoa Vermelha II A Vingança, de Eutímio Carvalho (30 min, Cícero Dantas, 2012)
A Maudição da Casa de Vanirim, de Manoel Loreno (26 min, Mantenópolis, 1987)
Seguido de bate-papo do público com os curadores e realizadores presentes.

4 de agosto (sábado)

18h – A Lenda da Lagoa Vermelha II, de Eutímio Carvalho (30 min, Cícero Dantas, 2012)
Uma Vinchester Para Três Tumbas, de Arlindo Filho (91 min, Presidente Prudente, 2012)

20h – Lua Perversa 2, deAndré Bozzetto (18 min, Pinhalzinho, 2011)
Flor de Abril, de Cícero Filho (110 min, São Luiz, 2011)

5 de agosto (domingo)

16h – Jerônimo, O Herói do Sertão, de David Rangel (32 min, Paty do Alferes, 1996)
A Maudição da Casa de Vanirim, de Manoel Loreno (26 min, Mantenópolis, 1987)
Black Power Jones, de Igor Simões Alonso (30 min, Osasco, 2012)
DR, de Felipe Guerra e Joel Caetano (12 min, Carlos Barbosa e São Paulo, 2012)
Seguido de bate-papo entre os curadores e realizadores presentes.

18h Vermibus, de Rubens Mello (25 min, Guarulhos, 2012)
A Noite do Chupacabras, de Rodrigo Aragão (95 min, Guarapari, 2011)

Cinema de Bordas 4

de 01 a 05 de agosto

Sala Itaú Cultural

Av. Paulista 149, Estação Brigadeiro do Metrô

Estacionamento gratuito para bicicletas.

Programa Jogo de Idéias

dia 31 de julho

horários 18h30 e 20h no Itaú Cultural.

Oficina Produzindo com Recurso Zero

de 02 a 04 de agosto

inscrições pelo fone (11) 2168-1779.

Morte e Morte de Johnny Zombie

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“Morte e Morte de Johnny Zombie” (2011, 14 minutos) de Gabriel Carneiro. Maquiagens de Fritz Martiliano. Com: Joel Caetano, Charlene Chagas, Ana Luiza Garcia, Felipe Guerra e Mariana Zani.

Johnny trabalha num galpão onde é produzido o pesticida Romero e, durante um vazamento, é contaminado pelo produto, se tornando aos poucos um zumbi.

“Morte e Morte de Johnny Zombie” é o curta-metragem de estréia do jornalista e crítico de cinema Gabriel Carneiro na direção. Optando por um ritmo mais intimista, Gabriel conta uma história de zumbis sob a ótica do próprio zumbi, mostrando essa transformação aos poucos. Seus elaborados takes subjetivos ajudam a construir a morte do Johnny humano (interpretado pelo sempre ótimo Joel Caetano, herói no longa-metragem “A Noite do Chupacabras” (2011) de Rodrigo Aragão), até se tornar o clássico zumbi comedor de carne humana e enfrentar sua eventual nova morte como zumbi, filmada de maneira espetacular por Gabriel carneiro, que dá uma uma importante contribuição ao subgênero “zombie movies”. Não vou contar aqui como foi feita essa cena, ela precisa ser assistida no curta, mas posso dizer que fazia anos que eu não me surpreendia tanto com um final de filme independente brasileiro.

É importante dizer que o filme conta com atuações de ícones do cinema independente brasileiro, além de Joel Caetano, sua esposa e sócia na produtora Recurso Zero, Mariana Zani, faz uma participação especial e o diretor Felipe Guerra interpreta o incrível falastrão fã de cinema, ou seja, interpreta a si mesmo de maneira soberba.

Gabriel Carneiro, além de jornalista e crítico de cinema, é membro fundador da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), escreveu o guia de cinema “Quem Apertou o Botão de Pânico? – Como a Ficção Científica Cinematográfica Norte-Americana, de 1950 a 1964, Abusou da Guerra Fria e de seu Contexto para Ganhar Dinheiro”, ainda não publicado; também escreveu o capítulo “O Anjo Embriagado” do livro “Os Filmes que Sonhamos”, organizado por Frederico Machado, colabora com a Revista de Cinema, nos sites Cinequanon e Zingu! e, atualmente, faz a pesquisa para o longa documental “O Cinema de Ozualdo Candeias”.

Achei o curta de estréia de Gabriel Carneiro imperdível. Acho que merecia um lançamento em DVD coletânea contendo trabalhos de vários diretores independentes, sinto falta dessa união de produtores independentes na hora de distribuir seus trabalhos. E já poderia aproveitar o gancho colocando num mesmo DVD o “Morte e Morte de Johnnie Zombie”, “Estranha” (última direção de Joel Caetano), “Extrema Unção” (última direção de Felipe Guerra) e mais alguns curtas de outros diretores. Único pecado desta nova geração de realizadores está na distribuição de seus filmes que, quase sempre, ficam restritas à mostras, festivais ou net, privando o colecionador de filmes de ter uma cópia apresentável em sua casa. Só queria deixar aqui a opinião de um colecionador fanático por cinema undergournd de baixíssimo orçamento.

Segue uma entrevista que realizei com Gabriel Carneiro sobre a produção de “Johnnie Zombie”:

Petter Baiestorf: Como surgiu a idéia para filmar “Morte e Morte de Johnny Zombie”?

Carneiro: Tenho uma amiga que adora zumbis, a Marília Passos. Um dia ela veio me dizer que teve uma idéia para um filme de zumbi. Sabe esses filmes em que os zumbis são meros coadjuvantes da história para um bando de paspalhos? Pois bem, seria o contrário, uma história de um zumbi protagonista e de sua transformação. Eu já queria fazer um filme de gênero. Quando ela me contou essa idéia, logo me veio na cabeça: tem que ser mais que um zumbi protagonista, tem que ser a visão do zumbi sobre os acontecimentos, ele percebendo sua transformação. Pedi pra ela fazer um argumento, discutimos a história, mudamos algumas coisas e aí escrevi o roteiro, em três dias. Várias coisinhas foram mudadas nele, depois, mas a estrutura, a priori, sempre foi a mesma.

Baiestorf: Dá prá perceber que é uma produção modesta com um ótimo aproveitamento do material humano, como você conseguiu juntar todo este pessoal talentoso?

Carneiro: A idéia sempre foi fazer um filme o mais profissional possível, dentro das restrições orçamentárias. Para a produção em si, foram gastos pouco menos de R$ 700. Ninguém, obviamente, recebeu. Todo o equipamento foi emprestado, com exceção do shoulder pra câmera, que aluguei, e do gravador de áudio, que é meu. Não sou formado em cinema ou em rádio e TV, conheço minhas limitações. Queria pessoas que realmente entendessem o que estavam fazendo tecnicamente. Já era uma meta quando comecei o projeto, e fui caçando interessados. Fiz um anúncio no facebook e fui juntando gente, amigos que se interessaram pelo projeto e toparam fazer sem pagamento. Claro, veio também muito estudante e/ou recém-formados, mas vários deles já trabalham na área. O Fábio Yamaji, que fez a montagem, é amigo, colega de Cinequanon, já o entrevistei para a Revista de Cinema e tal. Ele é um animador super ocupado, que monta alguns filmes, e fez um curta que rodou o mundo todo chamado O Divino, de Repente. A Adriana Câmara, que foi assistente de direção, já dirigiu várias coisas para TV, como a série Sensacionalista, e foi assistente de direção de longa já, Desenrola. O Rafael Alves Ribeiro, que fez o som direto em duas das três diárias que teve captação de som direto, desempenhou o mesmo cargo nessa série do Canal Brasil sobre a Boca do Lixo. E por aí vai. Esse negócio de contato realmente funciona. Já tinha chamado o Pedro Ribaneto (fotografia), o Dênis Arrepol (produção) e a Adriana, que são mais próximos. O facebook me permitiu uma outra triagem, e muita gente angariei assim. E aí vieram os contatos dos contatos, ou seja, gente que estava na produção foi indicando pessoas para os cargos que faltavam. O Rafael Alves veio assim, é amigo do Dênis de faculdade de cinema. E, claro, não preciso nem falar que sem essa equipe sensacional, esse filme não chegaria perto do resultado que tem.

Baiestorf: E os cenários?

Carneiro: Quanto aos cenários, foram três locações. Em teoria, precisaria de dois, a fábrica, e a casa. Porém não consegui uma casa pra filmar que fosse espaçosa o suficiente para ter toda a movimentação que queria. Acabei optando então por fazer no apartamento da Adriana o cenário principal, que é o interior da casa. A Adriana se mudou pra São Paulo pouco antes do início da gravação e até hoje é meio assim, vazia de móveis e objetos, o que é excelente para usar o baita espaço a favor da movimentação do elenco, em especial na cena do ataque do Johnny. Isso também favoreceu muito nas subjetivas com outros atores, porque ficava o diretor de fotografia e o Johnny Zombie colados, fazendo os movimentos e interagindo com as demais pessoas. Filmei também numa fábrica em Atibaia, que era do irmão de uma das atrizes – e amiga minha de longa data, a pessoa que conheço há mais tempo de todos, ex-colega de colégio e de teatro, que é a Ana Luiza Garcia. Precisava de uma locação crível pra dar a impressão de que Johnny de fato poderia ter se contaminado lá. Ela me apresentou essa opção e foi ótimo. Já estava até meio desesperado. Cogitei várias alternativas e nenhuma se concretizava. Salvou o filme. E o local é ótimo, em termos de cor e espaço. Fica muito bonito no quadro e muito realista. Já o terceiro cenário foi a fachada da casa da tia da diretora de arte e figurinista Fernanda Fernandes. Queria que o último plano desse pra rua mesmo, de preferência pouco movimentada. Ficou ótimo.

Baiestorf: Rolou alguma história engraçada durante as filmagens?

Carneiro: Tem uma história ótima. Quando fomos gravar o plano final, obviamente, não tínhamos autorização alguma, nem nada. Simplesmente chegamos na locação, preparamos a cena e fomos filmar. Então tava lá um monte de gente ensangüentada, em especial uma menina deitada no chão, aparentemente inconsciente, com um monte de sangue na barrida, e tripas improvisadas com jornal saindo pra fora, e outra menina cheia de sangue na cara, subindo e descendo em direção à barriga. Aí teve um carro que passou desacelerando. De repente, ele dá uma ré, abaixa o vidro e fica perguntando: “Tá tudo bem, ai meu deus, precisam de carona, querem que ligue pra alguém?” Até alguém explicar que era um filme e que ele estava no meio da cena (risos).

Baiestorf: Como foi trabalhar com o casal Recurso Zero, Joel Caetano e Mariana Zani? Sou grande fã dos filmes deles e gostei muito de vê-los em outra produção.

Carneiro: Joel e Mariana são ótimos. Os conheci quando fui entrevistá-los para a Zingu!, em 2009, numa série de entrevistas feitas sobre o chamado Cinema de Bordas. Sempre foram super solícitos. E desde aquela época acompanho o trabalho deles. São sensacionais. Gosto demais de alguns de seus filmes. Na Mostra Cinema de Bordas, no Itaú Cultural, em 2011, fiz o convite oficial: não havia encontrado ninguém a altura deles para o papel. Eles são ótimos, mesmo. Não se importam de fazer tudo o que é solicitado, ficaram horas e horas gravando. Pobre Joel: fiz ele vestir uma calça de pijama super justa da qual ele morre de vergonha; ficou horas maquiando; besuntamos ele com óleo de cozinha para a água do suor não escorrer; ele caiu e bateu as costas; apanhou, etc. Não é à toa: Johnny Zombie não existiria sem Joel, ele é a alma do negócio. A Mariana tinha um papel menor, mas nem por isso menos dedicação. Acompanhou o Joel em todos os momentos – só não foi à fábrica por falta de verba da produção. Dei a ela um prêmio por conta disso: a oportunidade de se vingar de anos de abusos, mortes e espancamentos nos filmes dirigidos por Joel, dando uma cadeirada nele!

Baiestorf: E o Felipe Guerra? No pequeno papel que ele faz percebemos ele “interpretando” o Felipe Guerra. Tu quem pediu isso?

Carneiro: Sim. O Guerra foi uma das primeiras pessoas que se interessou em participar da produção. Nem tinha roteiro ainda e ele disse que queria fazer o filme. Então escrevi o personagem pensando nele. Foi o único personagem feito para alguém específico. E ele tá ótimo como ele mesmo.

Baiestorf: Gostei muito dos efeitos de maquiagens gore feitos pelo Fritz Martiliano. Ele foi aluno em uma das oficinas do Rodrigo Aragão e começou a fazer filmes, certo? Como foi trabalhar com ele? Tem uma cena dos efeitos que me incomodou, a cena onde o Joel aparece bem pálido, achei ele branco demais, isso foi problema na maquiagem ou iluminação errada?

Carneiro: Sim, é isso mesmo, Petter. O Fritz é ótimo. Conheci através do Guerra, precisava de alguém pra fazer a maquiagem de efeitos. Acho sensacional a maquiagem, especialmente quando Johnny vira morto-vivo. E conseguiu extrair o melhor da minha solicitação. Como Johnny era um zumbi recente, queria que as feridas e mutações ainda fossem recentes. Não queria próteses, porque dão a impressão de que o cara secou há muito. Queria manter uma certa vitalidade – e humanidade – no personagem, e Fritz conseguiu isso de maneira muito boa. Só com tinta. Foi ótimo. Quanto à questão do branco demais, assumo toda a responsabilidade. Foi falta de coordenação de minha parte. Começamos o filme gravando as cenas com todos reunidos na sala. Ou seja, a primeira vez que vemos Johnny, durante a filmagem, ele tá branco daquele jeito. Queria ele branco, mais branco do que é normalmente. Quando o Fritz me mostrou a maquiagem, pareceu boa. E na câmera também, apesar de a iluminação não ter agradado nem a mim e nem ao fotógrafo – foi a que mais demorou pra ser feita. Só que eu estava com muita pressa. Precisava filmar todas as cenas com elenco completo naquele mesmo dia, e ainda faltava todo o ataque, que tinha mais planos, mais ação, e era mais complexo. Fora as observações de Johnny no espelho. Então falei pra deixar como estava mesmo e gravei. Quando fomos gravar as outras cenas, Johnny não ficou branco gradualmente como eu queria por falta de continuidade. Parece que estava ok, mas quando foi montar, ficou esquisito. Ainda mais por que ele está branco, com camiseta branca e parede branca ao fundo, ou seja, a impressão do branco fica ainda maior. E não vi isso. Até pedi para o Rodrigo Mesquisa, que fez a correção de cor, dar uma escurecida ali, mas nada que salvasse o plano.

Baiestorf: “Morte e Morte de Johnny Zombie” é seu primeiro curta, a experiência foi satisfatória? Como foi o lançamento dele? Vai sair em DVD ou festivais?

Carneiro: Foi uma experiência muito enriquecedora e muito estressante. Durante as filmagens, quase cogitei largar tudo, abandonar no meio. Era muita pressão, tentar fazer o melhor tecnicamente, quase sem tempo ou sem dinheiro. Pessoas do elenco/equipe pedindo pra ir embora e eu tendo que terminar as gravações. E entendo que quisessem ir embora, estavam há quase 18 horas lá, mas eu tinha que terminar. E foi muito enriquecedora por isso também. Não tinha nenhuma experiência prática, então aprendi muito a planejar melhor, buscar soluções menos trabalhosas, deixar os planos rolarem, em outros ângulos, para não ter problema de edição – não deu nenhum, mas não deixei muitas opções… Acho que sem o Johnny, não estaria nem um pouco preparado para projetos mais ambiciosos. O filme existe em autoração caseira de DVD, com capinha e tal, mas sem prensagem. E nem pretendo fazer. Ninguém vai querer comprar um curta-metragem. E se começar a vender, logo aparece para download na internet e fode tudo. Tenho exibido apenas em festivais por enquanto. Até agora, passou em 7: Curta Cinema, Zinema Zombie Fest (na Colômbia), Mostra de Cinema Independente da CODE, Cinefantasy, Mostra Outros Cinemas, FIM e Autorock.

Baiestorf: Gostei dos takes com câmera subjetiva, isso tornou o curta mais intimista. Fale sobre a construção do filme e da personagem, percebi uma vontade muito grande sua de fazer cinema autoral, mas com um pé no filme de gênero:

Carneiro: Nem sei se a palavra é autoral. Tenho problemas com esse termo, especialmente pela maneira como foi apropriado pela intelectualidade. Nunca quis fazer um filme de zumbi igual a todos os filmes de zumbi. Queria que tivesse algo diferente. Para mim, MMJZ só existe por conta da subjetiva. É a graça dele, mostrar o processo de transformação através dos olhos do transformado. Mas é um filme de gênero, com uma história super convencional. E por isso ser super convencional, quis brincar com a direção, com a fotografia, com a trilha musical, para quebrar, criar anticlímax. Gosto de falar que MMJZ é um exercício com o gênero filme de zumbi, em que pude experimentar em diversos campos. Não queria que fosse convencional e não queria fazer uma paródia, não é uma comédia, mesmo que haja momentos de alívio cômico. Johnny Zombie para mim é uma vítima. É um pouco da lógica do cinema noir: em algum momento, o destino lhe resolve dar um tapa na cara, e você tem que lidar com isso. Só que no caso, por mais que julgue banal, ele está se zumbificando, e não há nada que pode fazer. Ele não morde os amigos porque é mau, mas porque um instinto é acionado. Tudo que ele quer é sair de casa, todos os seus movimentos são em direção à porta, mas sempre tem alguém que o para. É quando ele vai pra cima, morde. As referências para a personagem foram monstros clássicos do cinema: King Kong, Monstro da Lagoa Negra e Ymir (A Vinte Milhões de Milha da Terra), todos referenciados no filme fisicamente.

Baiestorf: O final de “Morte e Morte de Johnny Zombie” (que não vou revelar) eu achei muito inventivo, nunca tinha visto algo assim em um filme de zumbi e achei que foi uma colaboração bem interessante ao subgênero “zombie movies”. Como surgiu essa idéia?

Carneiro: Pô, Petter, fico lisonjeado com tuas palavras. Mesmo. O final foi muito discutido com a Marília na época que finalizávamos o argumento. Como terminar a história. Sabíamos que Johnny morreria de novo. Foi rejeitando idéias que pensei em fazer um final esperançoso (risos), em que a morte de Johnny não finalizasse com os zumbis, que mostrasse a continuidade da espécie (risos). A questão da subjetiva era a idéia principal do filme, então a última cena não poderia deixar de tê-la. É isso que conduz o término: como é um filme que mostra a percepção do Johnny, mostra sua percepção da própria morte, ele vislumbrado, caído, o horizonte. Para dar esse clima, quis que o único som audível fosse o das pancadas. O tempo também é o de sua morte.

Baiestorf: Seus Projetos?

Carneiro: Como jornalista, devo continuar na Zingu!, no Cinequanon e na Revista de Cinema, fazendo sempre que possível alguns freelas. Na produção audiovisual, devo filmar no próximo ano um clipe para a banda Drakula, de Campinas, e devo filmar outro projeto de ficção, do qual ainda não posso falar muito, que não tem nada a ver com terror e deve ser feito com grana. Tenho outros projetos que precisaria de dinheiro pra fazer, como alguns documentários, que envolveriam viagem e uma produção mais arrojada. Paralelamente a isso, continuo gravando quase todas entrevistas da Zingu! em vídeo. A Marília também está desenvolvendo uma idéia ótima para um próximo curta de horror – e dessa vez, ela diz, quer fazer o roteiro -, que se passa na Folia de Reis, e eu devo dirigir.

Estes Praticamente Estranhos Filmes de Horror Nacional

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Com um atraso incrível (as primeiras salas de exibição brasileiras surgiram em 1896 e as primeiras produções locais logo em seguida) num país sabidamente supersticioso e com um rico folclore, nossos primeiros filmes de terror e sobrenatural só apareceram durante os anos 1960, Assim sendo, a trajetória do gênero no Brasil se confunde com a de seu maior ícone: José Mojica Marins (1931). Paulista, neto de espanhóis, criado dentro de um pequeno cinema que seu pai gerenciava na Vila Anastácio, Lapa. Desde criança, se interessou por teatro, histórias em quadrinhos e principalmente cinema. Com a colaboração da família e amigos criou uma escola de atores/produtora mambembe e depois de rodar um faroeste nacional e um melodrama infantil criou o personagem Josefel Zanatas, mais conhecido como Zé do Caixão para o clássico “A Meia Noite Levarei a sua Alma” ( 1964). O próprio diretor/roteirista assumiu o papel do coveiro sádico em sua busca insana por uma mulher perfeita que lhe daria um filho superior e a imortalidade. Julgando ter encontrado a mulher ideal, Zé violenta a namorada virgem de um amigo seu. A garota desesperada se suicida, mas antes promete voltar dos mortos para buscá-lo. A figura sinistra de longas unhas, barba, cartola e capa preta iniciaria uma longa relação simbiótica entre criador-criatura/ator-personagem, que extrapolaria a mídia e criaria raízes no imaginário popular. “A Meia Noite Levarei a Sua Alma” dividiu a crítica da época, afinal a produção era recheada de blasfêmias, sexo, violência, filosofia de botequim, diálogos hilários e cenários de papelão. O terror e o trash nasceram juntos entre nós, e o público adorou. Estreando primeiro em São Paulo e depois no Rio de Janeiro, o filme foi um grande sucesso, mas por total falta de gerenciamento da produção, Mojica ficou sem nenhum centavo das bilheterias lotadas.

Em Belo Horizonte (MG), o veterinário Luiz Renato Brescia ( 1903-1988) realizador independente de pequenos documentários, também se aventurava em gêneros pouco comuns por aqui. Tentou rodar um Western em 1945 e sete anos depois produziu um Peplum (Épico romano) “Nos Tempos de Tibério César” com direção de seu filho Ettore. Com parcos recursos começou a rodar nos fins de semana, “Phobus, Ministro do Diabo” (1965), sobre um ser nascido com a missão de espalhar o mal sobre a terra. Realizado com um elenco de amadores, equipe técnica diminuta e contando com inúmeros “defeitos especiais” óticos desenvolvidos pelo próprio diretor, a obra só ficou pronta na década seguinte e recebeu um lançamento precário em 1974, encerrando a carreira de Brescia e lhe legando um status cult/trash digno de um Ed Wood nacional.

Após transferir seus modestos estúdios para uma sinagoga abandonada (e com fama de assombrada, um ótimo marketing!), Mojica entusiasmado com o sucesso de seu primeiro filme de terror, decide dar continuidade a história. Em “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” (1966), Zé do Caixão continua sua busca insana e com a ajuda de seu fiel criado, o corcunda Bruno rapta várias jovens e as submete a torturas que envolvem aranhas caranguejeiras e um poço com serpentes (exigindo realismo e poupando nos efeitos especiais, Mojica utilizou bichos de verdade, uma tortura verdadeira para o elenco feminino e técnicos). Atormentado pela culpa de ter assassinado uma mulher grávida, Zé sonha que é arrastado para um inferno gelado e a cores (o filme assim como o anterior era em p&b, com exceção desta seqüência antológica) e no fim acaba morrendo afogado e blasfemando. A rígida censura da época, já preocupada com as ousadias do diretor, o obrigou a realizar uma re-dublagem tosca mostrando o personagem amoral e agnóstico se convertendo no último instante. Promovido pela imprensa a superstar e paparicado pelos cineastas do movimento “Cinema Marginal” (Sganzerla, Reinchenbach e outros), José Mojica ganhou um programa na TV Bandeirantes: “Além, Muito Além do Além” (1967/1968) que tinha episódios de uma hora de duração com direção sua e tendo Zé do Caixão como mestre de cerimônias. O sucesso de audiência muito se deve as histórias escritas por Rubens Francisco Lucchetti (1934), autor de centenas de livros populares de bolso, histórias em quadrinhos e roteiros para cinema e TV. Baseado nas histórias de Lucchetti para o show, o produtor Antonio P. Galante (1934), astuto empresário da “Boca do Lixo”, investiu em um filme de episódios de terror. Mojica dirigiu “Pesadelo Macabro”, sobre catalepsia e enterro prematuro, enredo bastante influenciado pelo escritor americano Edgar Allan Poe (1809-1849). Ozualdo Candeias (1922) adaptou “O Acordo”, sobre um pacto com o capeta, e Luiz Sérgio Person (1936-1976) conduziu “A Procissão dos Mortos”aonde apareciam guerrilheiros fantasmas. Apesar do filme se chamar “Trilogia de Terror” (1967), as adaptações dos outros dois cineastas nada tinham de assustador, pendendo para o experimentalismo marginal e a crítica política (com um explícito chamamento às armas, numa época onde as esquerdas estavam abaladas pela morte do líder guerrilheiro Che Guevara). Mas Mojica gostou da fórmula de um filme em episódios e tocou a produção de “O Estranho Mundo De Zé do Caixão” (1968), que ele encomendara para R.F. Lucchetti antes ainda do programa televisivo. As três histórias macabras foram rodadas em apenas  17 dias, em cenários construídos na sinagoga. Em “O Fabricante de Bonecas”, marginais invadem a casa de um  artesão para roubar e abusar de suas filhas e descobrem da pior forma  como o velho conseguia olhos realistas para seus brinquedos; em “A Tara”, um pobre corcunda vendedor de balões é apaixonado por uma bela jovem e só consegue consumar sua paixão depois que ele morre; finalmente em “A Ideologia”, Mojica apresenta seu “novo” personagem, o Professor Oaxiac Odez, que desafiado em um programa de debates na TV a provar sua tese que o instinto supera a razão, tranca um casal em sua masmorra e os submete a torturas, humilhações e canibalismo, se o nome do professor era  Zé do Caixão ao contrário, suas idéias e métodos são muito parecidos e até mais cruéis. “Trilogia do Terror” e “O Estranho Mundo De Zé do Caixão” estrearam em 1968 com uma infinidade de cortes exigidos pela censura.

O formato de longa com histórias curtas foi utilizado em 1969 em “Incrível, Fantástico, Extraordinário”, adaptação de um programa radiofônico muito popular nos anos 50/60. Realizado por Adolpho Chadler (1931), com o astro-cantor Cyll Farney (1925) num elenco que vivia 4 histórias populares de sobrenatural: “A Ajuda”, sobre um motorista que é avisado por uma mulher de um trágico acidente e ao salvar o filho dela descobre que ela já estava morta; “O Sonho”, com uma garota que pode prever mortes em sonhos, inclusive a sua; “A Volta”, onde uma viúva é atormentada pelo retrato do falecido e “O Coveiro”, sobre um ladrão de túmulos que recebe o castigo merecido.

Chadler voltaria com outra antologia “O Impossível Acontece” (1970), agora com roteiro e co-direção dos famosos Anselmo Duarte (1936) e Daniel Filho (1937) e os episódios fantásticos ”O Acidente”, “Eu, Ela e o Outro” e “O Reimplante” (com os hilários Tião Macalé & Wilza Carla) ao estilo do seriado americano “Além da Imaginação” (Twilight Zone) com um tempero nacional. Uma sátira ao gênero, com a brasileiríssima fórmula da Chanchada trouxe em 1969 “Um Sonho de Vampiros” de Iberê Cavalcante (1935), O humorista Ankito (1923) vive o Dr. Pan, um velho médico da pacata cidade de Paraíso Tropical que faz um pacto secreto com a Morte e acaba se transformando em um vampiro que ataca e transforma as principais autoridades de sua pequena cidade. Fugindo da infestação de vampiros, um jovem casal de namorados vive várias aventuras.

José Mojica apesar de ter se transformado em um artista multimídia (cinema, TV, histórias em quadrinhos, disco de carnaval, marca de cachaça e até uma linha de perfumes!) continuava não administrando sua carreira e estava falido. Com a ajuda de seus alunos, amigos do Cinema marginal e um providencial financiamento bancário, decidiu rodar um filme radical, misturando horror, violência urbana, drogas e metalinguagem seguindo a onda sessentista de filmes psicodélicos. “Ritual dos Sádicos” escrito por Lucchetti e dirigido por Mojica, contava como um psicólogo utilizava quatro cobaias humanas, fazendo-as ter alucinações envolvendo Zé do caixão através de injeções de LSD. Rodado e divulgado em 1969, foi totalmente barrado pela censura e só liberado em 1983, já com o título de “O Despertar da Besta”, tendo lançamento apenas em festivais e mostras especiais.

A década de 70 foi a mais promissora para o Horror brazuca, o movimento Udigrudi (Underground verde-amarelo, também conhecido como Cinema Marginal) e a emergente produção da chamada “Boca do Lixo” providenciaram o estufo “B” necessário. “Os Monstros de Babaloo” de Elyseu  Visconti Cavallero (1939) e “A Possuída dos Mil Demônios” de Carlos Frederico (1945), ambos de 1970, são fantasias bizarras e simbólicas que tanto podem ser vistas como variações burlescas do terror, como alucinadas críticas a sociedade. O primeiro à sociedade burguesa com um humor negro pré John Waters nas desventuras de uma família grotesca em uma ilha; e o segundo à pobreza e ignorância de nossas favelas onde afloram superstições  e loucura à lá Passolini.

“Fantasticon, Os Deuses do Sexo”, de 1971 é mais um filme em episódios. “A Curtição” de Teresa Trautman (1951) e “Os Últimos” e “Kelak, A Bruxa” de José Marreco (1946), possuem toques de psicodelia, ficção científica e sobrenatural, respectivamente, e narrativas experimentais, em uma produção de baixíssimo orçamento realizada pelo casal com equipamentos emprestados.

“O Macabro Dr. Scivano” (1971) de Raul calhado(1938) e Rosalvo caçador (?), mostrava como um político fracassado se envolvia com magia negra e em troca de riqueza e poder se transformava numa espécie de vampiro tupiniquim. No final, depois de reduzido a pó pela força de uma cruz, um psicólogo diagnostica que ele era apenas um paranóico (em um final copiado descaradamente de “Psicose” de Alfred Hithcock de 1960). Promovido na época como “O Primeiro filme brasileiro de Ficção Científica” (?!), era na verdade uma tentativa de imitar o terror de Mojica, inclusive com o ator e co-diretor Calhado fazendo aparições públicas caracterizado como o seu personagem.

O ítalo-brasileiro Raffaele Rossi (1938), escreveu, dirigiu e estrelou uma fábula de horror questionando a autoridade paterna e a negligência familiar intitulada “O Homem Lobo” (1971), onde um professor de uma cidade do interior  descobre que seu filho adotivo, que fora criado longe dele  sofre de licantropia , e nas noites de lua cheia se transforma em uma criatura que ataca as mulheres da região. Primeiro ele tenta encobrir os crimes assumiando a culpa e depois decide caçar e eliminar o lobisomem.

Rituais de magia negra e cultos jovens com líderes ao estilo do americano Charles Mason são o tópico de “O Guru Das Sete Cidades” (1972) de Carlos Binni (1940), sobre um casal de milionários em crise que se envolve com uma seita hippie que exige sacrifícios humanos. Outro casal se enreda com o capeta e seus seguidores em “O Diabo tem Mil Chifres” (1972) de Penna filho (1936). Recém casados, eles recebem uma carta de uma misteriosa “corrente” e logo aparece um artista plástico determinado a seduzir e levar a mulher. O marido recebe uma proposta do demônio para resolver toda a questão… A Licantropia, tema presente em inúmeros relatos de nosso folclore e certamente trazido da Europa por nossos colonizadores, retornou a tela em 1974 com “Lobisomem, O Demônio da Meia Noite”. A pobreza da produção, a edição caótica e os diálogos beirando o surrealismo marcam outro udigrudi típico de Eliseu Cavallero. Wilson Grey (1923-1993) em seu primeiro papel principal, é um milionário exêntrico, que mora em  um chalé próximo a uma mata e que preside um culto de bebedores de sangue, se transformando em um lobisomem (que mais parece um vampiro), até ser exterminado por uma figura mística chamada Branca Justiça.

Já “Quem Tem Medo de Lobisomem?” de Reginaldo Faria (1938), do mesmo ano, brinca com o tema e coloca dois rapazes da cidade grande em busca de suas raìzes e da lenda do “lobisomem das sete encruzilhadas” e que acabam encontrando uma família do interior que parece asombrada por fantasmas e que tem seis filhas mulheres e um caçula que seria um homem lobo. Uma mistura confusa que seu diretor/ator definiu como “um filme de terror com bom humor”.

O suceso internacional do terror-católico “O Exorcista”, de 1973, levou o produtor Aníbal Massaini Netto (1945) a investir em um similar nacional : “Exorcismo Negro”(1974) de e com… José Mojica Marins. Na trama bolada por Lucchetti, o diretor Mojica descança na casa de campo de uma família tradicional e pacata (com um elenco Global da época) e acaba enfrentando uma bruxa (Wanda Kosmo), um filho do capeta e o próprio Zé do Caixão, que é convocado pela feiticeira para cobrar uma dívida infernal. Numa produção refinada e bem acabada para os padrões de Mojica, ele acabou representando uma auto-paródia, ao ser mostrado como um intelectual de muito sucesso. Numa jogada publicitária genial, o próprio Zé do Caixão improvisava comícios na frente dos cinemas que exibiam o filme gringo e anunciava “O diabo é nosso! O diabo brasileiro é melhor!”, conclamando o público a assistir sua versão.

Ainda em 1974 tivemos o surpreendente “O Anjo da Noite” de Walter Hugo Khoury (1929-2003), um drama de suspense e terror psicológico baseado em um fato verídico vivido por uma babá brasileira nos EUA (que também inspirou o americano John Carpenter  a criar seu clássico “Halloween” em 1978). Na história, premiada no Festival de Cinema Fantástico e de Terror de Sitges (Espanha), uma jovem universitária (a linda e expressiva Selma Egrei) aceita cuidar de duas crianças durante uma noite em uma mansão isolada. Pouco a pouco ela é assustada por misteriosos telefonemas e por uma presença sinistra dentro da casa. Uma pequena obra prima densa e perturbadora. O argentino Carlos Hugo Christensen (1914-1999) também fez uso do telefone como instrumento torturador em “Enigma para Demônios” (1975), baseado no conto de Carlos Drumond de Andrade “Flor, Telefone, Moça”. Monique Lafond vive uma mulher que após perder seu filho, volta para a casa da família. Depois de retirar uma rosa depositada em um túmulo, passa a ser aterrorizada por contínuos telefonemas, em que uma voz  pergunta “onde está a rosa que você tirou da minha sepultura?”. Ela refugia-se em um sítio onde não há telefone, mas outros fatos misteriosos parecem confirmar uma trama sobrenatural. Christensen voltaria ao suspense fantástico com “A Mulher do Desejo” (1976) baseado em idéias do escritor Nathaniel Hawthorne sobre a sobrevivência do espírito e com diálogos precisos de Orígenes Lessa. Recém casados vão morar em um casarão do sec.XVIII e o homem parece possuído pelo fantasma de seu tio, adquirindo até algumas características físicas do morto, o que obriga sua esposa a procurar um exorcista. Foi filmado sob o título de “A Casa das Sombras”, utilizando atores amadores e a arquitetura peculiar de Minas Gerais. “Seduzidas pelo Demônio”(1975) foi a volta de Raffaele Rossi (que faria fortuna anos depois ao iniciar o ciclo de sexo explícito com seu “Coisas Eróticas”) ao terror misturado com conflitos familiares tendo como pano de fundo o tema da moda, a possessão diabólica. Um universitário é possuido espírito do mal e provoca a morte de várias mulheres. Seu pai adotivo vem em seu auxílio e descobre que ele fora resgatado quando criança de um grupo de adoradores do diabo. O conflito final entre os dois é inevitável, assim como o uso de uma cruz como arma contra o Tinhoso…

Uma livre adaptação da história policial “O Caso dos Dez Negrinhos” da escritora Agatha Christie, gerou o suspense “O Signo de Escorpião” de Carlos Coimbra (1928). Um grupo de doze pessoas  é covidado por um famoso astrólogo a visitar sua ilha e passam a ser assassinados  um a um, de acordo com seus signos do Zodíaco. Em meio a um elenco de atores conhecidos, a presença sinistra de Wanda Kosmo; da gostosinha Kate Lyra e do famoso na época , astrólogo televisivo Omar Cardoso. A participação especial de Cardoso era um Gimmick para atrair telespectadores e dar uma certa credibilidade a história envolvendo o horóscopo, mas ele ficou parecendo uma versão tupiniquim de Criswell nos filmes Ed Wood Jr.

O discípulo de Mojica, Marcelo Motta (1952), dirigiu seu mestre  em “A Estranha Hospedaria dos Prazeres” (1976), sobre uma pousada mal-assombrada, que seria uma espécie de purgatório gerenciado pela própria morte (Mojica, trocando a cartola por um chapéu-côco). Em uma noite de tempestade, casais adúlteros, malandros, criminosos e um grupo de engraçados hippies motoqueiros  acabam se refugiando no local e encontrando a danação eterna. A pobreza e o amadorismo da produção (Mojica enfrentava sérissimos problemas financeiros e pessoais) se repetiram em “Inferno Carnal” (1976), uma refilmagem de um episódio televisivo de sua série de 1969. Tentando acertar com um terror mais tradicional, Mojica acabou fazendo um Trash muito parecido com os melodramas sobrenaturais mexicanos dos anos 60, com uma história clichê de um cientista traído e deformado que se vinga  da esposa e sócio adúlteros. Um dos acertos do filme foi a escalação da linda Helena Ramos (1955), a futura “Rainha do cinema erótico brasileiro” no papel de uma garota sexy, mas ingênua protegida pelo cientista atormentado.

“Excitação” (1976), de Jean Garret (José Antônio N.G. Silva, 1947-1996, português de nascimento), por detrás de mais um título com chamariz sexual, é uma mistura de macumba, reencarnação  e fenômenos parapsicológicos. Uma mulher (Kate Hansen) vai morar em uma casa de praia para se recuperar de uma crise nervosa, passando a ter visões com um suicida e enlouquecendo quando aparelhos eletrodomésticos passam a funcionar sózinhos e a ameaçam. A produção paulista “A Virgem da Colina”(1977), de Celso Falcão (?) chegou a ser lançada nos Estados Unidos com o título de “The Ring of Evil”, contando o caso de um anel que pertencera a uma prostituta com poderes sobrenaturais e que divide a personalidade de uma jovem noiva (Cristina Amaral) e acaba deformando seu rosto obrigando-a a usar uma máscara.

Um curioso mix de subgêneros surgiu no argumento criado pelo produtor  Antônio  P. Galante  (1934) para “Escola Penal de Meninas Violentadas” (1977) de Antonio Meliande (1945): Garotas marginais são recolhidas para uma escola penal dirigida por um grupo de freiras. Um cadáver encontrado nas redondezas trás a tona uma série de crimes e torturas ocorridas no local. Um policial veterano descobre que a tirânica madre superiora é na verdade uma psicopata fugitiva que assassinara e tomara o lugar da religiosa, transformando a instituição num lugar infernal. Um carcereiro brutamontes e mudo, uma freira possuída pelo diabo, detentas com pouca (ou nenhuma ) roupa e a presença dos ótimos Sergio Hingst e Zilda Mayo e de uma muito jovem Nicole Puzzi no elenco, completam o coquetel.

O prolífico diretor-produtor Fauzi Mansur (1941) flertou com o gênero a primeira vez com “Belas e Corrompidas” (1977), sobre uma psicopata (Maria Izabel de Lizandra) que se diverte seduzindo homens para depois assassina-los de maneiras variadas, sempre com a ajuda de sua fiel assistente corcunda Tula (contrapartida feminina do personagem clichê “Ygor”) num suspense erótico que tinha o saudável sub-título de “Sexta-Feira as Bruxas Ficam Nuas”.

Inspirados por manchetes sensacionalistas sobre um gênero de filmes onde atores desavisados seriam mortos em frente às câmeras, Claudio Cunha e Carlos Reichenbach escreveram “Snuff – Vítimas do Prazer” (1977) dirigido por Cunha, onde uma dupla de produtores de filmes pornográficos americanos aporta em nosso país em busca de equipe e principalmente elenco feminino para ser assassinado.

A atriz Rosângela Maldonado (1928), fã de Mojica, procurou seguir seus passos. Primeiro escreveu, produziu, musicou e atuou sob a direção dele, a comédia erótica de cunho fantástico “A Mulher que põe a Pomba no Ar” (1977) sobre uma cientista traída que cria mulheres-pombas para se vingar dos homens. A maquiagem das mutantes consistia em braços com penas, asas coladas nas costas e esquisitos capacetes com bicos. O filme foi um fracasso total, mal sendo distribuido. Obstinada, ela em seguida escreveu, produziu, dirigiu, fez a cenografia, maquiagem, figurino e (ufa!) atuou em “A Deusa de Mármore – Escrava do Diabo” (1977). Uma mulher misteriosa (Maldonado) com 2000 anos de idade, conserva a juventude atravéz de um pacto com o demônio, em troca de um fluido mágico ela extrai a alma de homens durante o ato sexual, sendo constantemente cobrada pelo enviado do capeta “seu Sete Encruzilhada” (Mojica). A mistura de terror com pornochanchada teve uma mãozinha de Mojica na direção, auxiliando sua  discipula atrapalhada com as múltiplas funções. Em destaque na produção mambembe, os créditos de abertura desenhados de forma arrojada pelo artísta plástico Akira Murayama, que também faz uma ponta no filme. Segundo Horácio Higuchi, Mojica estava desapontado com a aluna: “…ela queria que eu fissesse uma espécie de diabo-gay, porque no meu inferno só tinha Homem. Eu reclamei e disse pra ela que meu personagem tinha que ter pelo menos uma assistente mulher. Ela colocou quatro diabas, mas todos os pecadores no inferno eram homens! Que porra de diabo era este, um diabo que só gosta de torturar homens?”.

O filipino Juan Bajon (1948) fez sua estréia escrevendo e dirigindo o policial de suspense “O Estripador de Mulheres” (1978), sobre um assassino psicopata procurado pela polícia e pela imprensa e que acaba condenando injustamente um funcionário de um frigorífico. No elenco, além do ótimo Ewerton de Castro, a linda gaúcha Aldine Müller (1953), que também estrelaria o primeiro filme de outro oriental radicado por aqui, o chinês John Doo (Chien Lun Tun, 1942). Trabalhando no cinema paulista desde os anos 60, em diversas atividades, Doo passou a escrever e dirigir quase sempre misturando erotismo com elementos fantásticos, revelando uma criatividade acima da média da produção da época. Em “Ninfas Diabólicas” (1978) ele coloca Úrsula (Aldine Müller) e Circe (Patricia Scalvi), duas jovens e belas estudantes que pegam uma carona com o bem comportado Rodrigo (Sérgio Hingst-1924-) e após serem levadas para uma casa na praia se revelam assustadoramente sedutoras e perigosas.

A nova incursão de Walter Hugo Khouri no terreno fantástico também é acima da média: “As Filhas do Fogo” (1978), com produção requintada, atriz estrangeira (a bela italiana Paola Morra) e roteiro intelectualizado. Numa mansão na serra gaúcha, duas amigas, após uma experiência com uma vizinha parapsicóloga, passam por estranhas situações com vozes de espíritos angustiados, estranhos rituais e um final onde a casa parece ser devorada pela vegetação local.

Absolutamente sem dinheiro para fazer um novo longa metragem, José Mojica Marins  filma 30 minutos de um drama, onde um psiquiatra é atormentado por pesadelos onde Zé do Caixão quer roubar sua esposa. Completa os outros 56 minutos com cenas extraídas de quatro filmes seus anteriores,  principalmente as que conseguira liberar da censura e tem pronto “Delírios de um Anormal” (1978), um calendoscópio de alucinações repetitivas… demencialmente trash!

O dublê de crítico e cineasta Alfredo Sternheim (1942), escreveu e dirigiu suspense erótico “A Mulher Desejada” (1978) baseado em uma epígrafe de Edgar Allan Poe. Kate Hansen  vive uma estrela de TV em crise que procura refúgio em uma casa de campo de uma amiga. Lá se envolve com Waldo (Eduardo Tornaghi) filho da caseira e acaba descobrindo que mãe e filho não são nada normais, o que a leva para um pesadelo que pode ou não ser real…

Já  “A Força dos Sentidos” (1979) de Jean Garret,  apresenta  um clima fantástico-fantasmagórico recheado de erotismo e a presença mágica de Aldine Müller ao acompanhar um escritor que vai para uma pequena praia para escrever um romance. Lá sente-se atraído por uma bela jovem surdo-muda (Aldine) e descobre um estranho ritual dos moradores locais que envolve um defunto que aparece na praia todas as noites e é levado de volta para o mar em procissão. A inspiração vem da frase de H.P. Lovecraft que abre o filme “Não está morto aquele que pode jazer, e após a eternidade até mesmo a morte pode morrer”.

Mojica em uma fase mais “realista” tivera a idéia de um filme chamado “Estupro”, sobre um industrial milionário chamado Vitorio Palestrina (Mojica!), sádico que gosta de humilhar e torturas suas conquistas (Pete Tombs, em “Mondo Macabro”,  diz que Palestrina é o que Zé do Caixão seria se ganhasse na loteria). Um dia ele estupra uma jovem e lhe arranca um mamilo a dentadas. Passa então a exibir o bico do seio guardado em um vidro como um troféu. Assim como Zé, Palestrina procura uma companheira perfeita, amoral como ele. Conhece a bela Vitória (Arlete Moreira) e se apaixona, mas durante o ato sexual ela lhe arranca os testículos, revelando ser a irmã da garota que ele mutilou. Este melodrama gore acabou sendo exibido no Festival de Cinema Fantástico de Sitges (Espanha) e foi lançado no Brasil com um título mais ameno “Perversão” (1979), exigência da censura.

Elogiado pela crítica e com sucesso de público graças a “Ninfas Diabólicas”, John Doo planeja uma segunda parte para o filme, mas aceita conduzir uma produção mais cara, com elenco orindo das telenovelas. “Uma Estranha História de Amor” (1979) com Nei Latorraca e Selma Egrei, aonde a paixão trágica de um casal sobrevive a morte, reencarnações e graças aos poderes de uma menina vidente acaba influenciando outros amantes. De volta ao sistema independente da Boca do Lixo, Doo dirige “Ninfas Insaciáveis” (1979), policial-erótico com Zilda Mayo e Alvamar Taddei e toques fantásticos; e segmentos eróticos-sobrenaturais  para “A Noite das Taras” (1980), episódio ”A Carta”; “Aqui Tarados” (1980) o gore e irônico “O Pasteleiro” (onde também atua dirigido por David Cardoso); ”Delírios Eróticos” (1981), episódio “Amor por Telepatia” e “Pornô” (1981), o exelente “O Gafanhoto”. Prolífico e criativo, John Doo ainda foi ator várias vezes e escreveu e dirigiu o terror “Excitação Diabólica” (1981), com Wanda Kosmos (a bruxa oficial do cinema nacional) como uma prostituta com poderes sobrenaturais. Maltratada por três motoqueiros metidos a machões, ela se transforma na mulher dos sonhos de cada um deles (Aldine Müller, Zaira Bueno e Silvia Gless), levando-os a loucura e a morte.

A dupla Luiz Castillini (1944) e Cláudio Cunha (1946), especialistas em sacanagem, realizaram em 1982 uma pretenciosa adaptação de um conto de Boccagio, que se chamou  “A Reencarnação do Sexo”, mas a história do espectro de uma bela mulher (Patricia Scalvi) dominado pela vontade da cabeça decepada de seu amante que exige vingança, é na verdade uma cópia erótica do argumento do clássico da Hammer Films inglesa “Frankenstein Criou a Mulher” de 1966.

“Fantasias Sexuais”(1982) seria mais um filme erótico em episódios rotineiro, mas Juan Bajon ousou e  no segmento “Os Caronistas” , três jovens são perseguidos por um psicopata tarado, e em “A Mulher Abelha”, a perturbada personagem título, ameaça suicídio e atraí homens atenciosos que acabam sendo consumidos  sexualmente por ela até a morte.

O carioca Ivan Cardoso (1952), fotógrafo, superoitista e cinéfilo inveterado, driblou todas as dificuldades para realizar de forma independente sua homenagem-paródia  aos clássicos de terror  da Universal/Hammer, com roteiro de R.F.Lucchetti,  “O Segredo da Múmia” (1982), onde o cientista louco brasileiro Expedito Vitus (Wilson Grey) descobre um soro da vida e ressucita uma múmia egípcia para ajuda-lo em uma vingança pessoal. Perfeito em sua combinação de terror com chanchada, sacanagem e deboche tem seu ponto alto no elenco recheado de atores famosos, mulheres maravilhosas, participações especiais (até José Mojica faz uma ponta no começo da história), amigos pessoais de Ivan e estreantes de muito talento,  como o advogado Felipe Falcão no papel do alucinado assistente Igor. O filme, com uma ajuda da Embrafilme na pós produção e distribuição, foi um sucesso de público e crítica e inaugurou um gênero apelidado de “Terrir”.

Nesta época, o terror era uma moda internacional e a tônica da produção brasileira era calcar nos modelos e clichês americanos com doses generosas de nudez e sexo para ajudar nas bilheterias. “Shock” (1982) de Jair Correa (1956), com as belas Aldine Müller, Claudia Alencar e Mayara Magri, era uma tentativa de realizar um suspense ao estilo “Slasher” com um maníaco (metido a bateirista!) eliminando jovens após uma festa  em uma mansão isolada. No erótico “Banquete das Taras” (1982) de Carlos Alberto Almeida (1942), um jovem escultor recebe uma visita da Transilvânia com uma missão: sossegar seu antepassado o Conde (Drácula?!) no sepulcro a mais de 500 anos, fazendo sexo e sacrificando quatro mulheres durante quatro noites. Já no “Banquete das Taras” (1982) de Julius Belvedere (?), um grupo de estudantes que se dedica a pesquisas com o sobrenatural, acaba invocando o espírito do Marquês de Sade, que possuí um deles e transforma tudo em uma orgia de sexo e violência até a intervenção de um espírito do bem que termina com a festa.

Filho de um lendário documentarista francês radicado no Brasil, Jean-Pierre Manzon se aventurou uma única vez em um filme ficcional, numa produção bem cuidada, elenco de primeira (Emílio de Biasi, Aldine Müller, Ênio Gonçalves, Selma Egrei), música original e roteiro nem tanto. “Força Estranha” (1983) reconta a velha história do casal de amantes que planeja enlouquecer a mulher dele, no caso uma jornalista, que passa a ter esquisitas aluninações com uma mulher morta e um casarão antigo. No “final surpresa” ela parece genuinamente possuída e mata os traidores afogados em uma piscina. O filme acabou sendo relançado com o título mais comercial de “Estranhos Prazeres de Uma Mulher Casada”.

Significante e premonitória é a premiação no II Festival Fotóptica de São Paulo do filme gaúcho “Beijo Ardente/Overdose” (1984) de Flávia Moraes e Hélio Alvarez, onde um vampiro entediado da vida eterna (o italiano Andrea L’Abate), auxiliado por seu mordomo sinistro (o hilário Antônio Carlos Falcão), procura um meio alternativo de saciar sua entediante necessidade de sangue humano. Divertido e melancólico, foi rodado em vídeo (Betacam), antevendo uma tendência  que quase dez anos depois seria uma forma de manter o cinema macabro em ação.

Com o domínio dos filmes pornôs importados ocupando cada sala de cinema do país, centenas  de similares  nacionais começaram a emergir rapidamente da Boca do Lixo, e mesmo produções apenas eróticas passaram a ser remontadas sofrendo inserts de cenas hardcore (como um filme de John Doo que acabou virando “A mansão do Sexo Explícito” (1984) e foi assinada por seu diretor de fotografia, Henrique Borges). “As Taras do Mini-Vampiro” (1984) de José Adalto Cardoso, colocou o anão Chumbinho (figura onipresente no gênero) como o personagem título, atacando casais em pleno ato sexual  no interior de São Paulo, provocando confusões em vez de terror e sendo perseguido por um subnutrido caçador de vampiros. O esperto  Fauzi Mansur assina como Victor Triunfo “A Seita do Sexo Profano” (1985), pornô-terror sobre uma mulher que se envolve com os praticantes de uma seita satânica. “Arrepios – O Monstro do Sexo” (1986) de Sylas Bueno e Carlos Nascimento, se servia da fórmula de terror em episódios para mostrar talvez que os maiores “monstros” nacionais foram algumas atrizes da Boca do Lixo, já que elas rivalizavam em feiúra com o mutante-aranha e o monstro da caverna (com máscara e luvas de latéx de carnaval) deste trash absurdo que foi relançado em vídeo em 1992 com o título de “Aberrações”.

O ator/diretor/produtor/roteirista Francisco Cavalcanti rodou “A Hora do Medo” (1986) como um terror-pornográfico sobre um psicopata que com a ajuda da mãe, estupra, mata e esconde os corpos de mulheres no fundo da antiga casa em que moram. Decidido a abocanhar a moda de filmes de terror da época (chamada por aqui de “Espantomania”) pediu ajuda para José Mojica Marins para subtituir as cenas de putaria explícita por mais sangue e horror. O veterano mestre nacional, aproveitou e exagerou, sendo que seus 13 minutos de gore demencial destoam completamente do resto deste sub-Psicose terceiromundista.

Caminho inverso seguiu Ivan Cardoso em seu segundo Terrir, agora o deboche respeitoso do diretor com os clichês do gênero resultaram em  uma pornochanchada noir-musical-macabra chamada “As Sete Vampiras” (1986). Uma espécie de “fantasma do cabaré” assombra o Rio de Janeiro dos anos 50, com direito a mortíferas plantas carnívoras, cientistas loucos, vampiras de mentira, mulhers gostosas nuas de verdade, detetives babacas e figuras icônicas como o Fu-Manchu de Wilson Grey. Tudo com muitas citações ao gênero, reconstituição de época e elenco classe A em um grande e afinado besteirol de sucesso.

Mais de dezesseis anos depois de ser proibido, Mojica conseguiu liberar sem cortes seu “Ritual de Sádicos”, agora “O Despertar da Besta” que foi exibido no Rio Cine Festival onde recebeu o prêmio de Melhor Ator e R.F.Luchetti o de melhor roteiro pela obra.

John Doo conseguiu em seu último esforço autoral, um co-financiamento com a então agonizante Embrafilme para terminar seu “Presença de Marisa” (1986/1988) com Joel Barcelos e Claudia Magno, um melodrama sobre crise existencial, feitiçaria e fenômenos paranormais, ou seja, seus assuntos favoritos. Apesar de um prêmio no Festival de Cinema de Brasília (melhor atriz para Claudia Magno) daquele ano, o filme ficou praticamente sem lançamento e Doo passou a trabalhar apenas como técnico ou ator eventual. O canto de cisne, ou melhor de corvo, para uma década…

Os anos 90 nos trouxeram o “presidente-bandido” Fernando Collor e uma pá de cal no que restava do cinema nacional. Mas dois fenômenos trariam o cinema macabro de volta da tumba: A internacionalização de nossos representantes,  José (agora “Coffin Joe”) Mojica Marins e Ivan (“The Terror”) Cardoso lançados em VHS nos Estados Unidos e o nascimento de uma nova geração, a dos videomakers, jovens cheios de referências via Histórias em quadrinhos, TV e vídeo cassete.

Fauzi Mansur  realizou, com vistas no mercado internacional, “Atração Satânica” (Satanic Atraction) em 1990. Uma série de assassinatos em uma cidade do litoral são motivados por um casal de gêmeos que haviam sido criados por uma seita demoníaca. Um bom Splatter com produção convincente e elenco correto, que só pecou por um roteiro previsível e por sua hilária dublagem em um inglês “caipirônico”, apesar de exibido em mais de dez países (incluindo EUA, Itália e Alemanha) foi  ignorado por aqui, graças a uma péssima distribuição. Mesmo assim, Mansur realizou “Ritual Macabro” (Ritual of Death,  1991) rodado em São Paulo e lançado no exterior com elogios da crítica especializada, mas que continua inédito no Brasil. Um grupo de teatro, durante ensaios sofre diversas mortes sangrentas, provocadas aparentemente pelo espectro de um pastor psicopata ao estilo Jim Jones que possuí o corpo de um ator/roteirista após ele consultar um antigo livro amaldiçoado para escrever uma peça de terror. Destaque para uma cena de sexo sangrenta em uma banheira, envolvendo um casal e uma… cabeça de bode decepada!

Com a impossibilidade técnica e financeira de realizarem obras em película, uma série de novos diretores/produtores passaram a utilizar suas câmeras caseiras de vídeo amigos, parentes e vizinhos como equipe técnica e elenco e filmes de terror trash pipocaram por todo o país. Em Recife, o camelô alagoano Simão Martiniano (1931) realiza “A Rede Maldita” (1992) uma história de suspense sobrenatural sobre um fazendeiro  que rouba uma botija cheia de dinheiro achada por um pobre agricultor, sem saber que a fortuna é amaldiçoada e provoca  a vingança da alma do dono que não consegue descançar. A fita, assim como toda a produção caseira de Martiniano é comercializada diretamente em sua barraca em um camelódromo, em meio a velhos discos de vinil. No Espírito Santo Seu Manoelzinho, um pedreiro, realiza longas em VHS como “O Espantalho Assassino” e “O Aluguel Assombroso”, onde o amadorismo das produções é levado às últimas conseqüências.

Petter Baiestorf & Seu Manoelzinho.

Na pequena cidade de Palmitos, oeste de Santa Catarina, um jovem sócio de uma locadora de vídeo, Petter Baiestorf (1974), reune alguns amigos e com parcos recursos e uma câmera emprestada, roda “Criaturas Hediondas” (1993), uma ficção científica de terror-trash sobre um cientista marciano transloucado que quer invadir a terra. ”Criaturas Hediondas II” (1994) mostra o dia seguinte a invasão, com óbvias influências de Ed Wood Jr., Roger Corman, seriados japoneses e filmes splatter como “O Massacre da Serra Elétrica” (1974). Inventando (assim como Martiniano) seus próprios efeitos especiais e recursos técnicos e descobrindo atores amadores com a cara do gênero, Baiestorf e sua Canibal Produções passam a regurgitar centenas de informações da cultura pop (com um grosso caldo de transgressão e deboche), tomando de assalto o circuito nacional underground de bandas de rock e fanzines. Uma onda de modismo pelos trash-movies e o aparecimento da primeira convenção nacional de horror em São Paulo aceleraram o movimento do  chamado Cinema-de-Garagem. Contando com uma equipe mais numerosa e aprimorando autodidaticamente sua técnica, Baiestorf lança “O Monstro Legume do Espaço” (1995) com as desventuras de uma criatura alienígena (Loures Jahnke) de origem vegetal e ímpetos filosóficos que é aprisionada por um cientista tupiniquim e seu assistente coprófago Caquinha (o maquiador Leomar Wazlawick). Mesmo sem um circuito de exibição e distribuição, o vídeo virou mania, influenciando novos realizadores encantados com  seu clima trash escatológico.

Em São Paulo, Diomédio Piskator adapta uma história em quadrinhos do grande desenhista Júlio Shimamoto numa produção independente em 35mm chamada “Urubuzão Humano” (1996), sobre um médico que depois de ingerir carne humana morta para sobreviver a um acidente aéreo na selva, sofre mutações e se transforma em uma criatura que come cadáveres em cemitérios. A iniciativa ousada encontra o eterno problema brasileiro de finalização e distribuição e jamais é lançada comercialmente.

Influenciado pela história verídica de dois irmãos canibais necrófilos que aterrorizaram o interior do Rio de Janeiro em 1995, Petter Baiestorf concebe “Eles Comem Sua Carne” (1996), onde um grupo de amigos antropófagos, isolados da civilização, tentam viver  em harmonia enquanto caçam  fiscais da prefeitura e estranhos incautos para servir em um banquete de casamento. Procurando misturar ainda mais os gêneros (marca de sua produção futura), Petter Baiestorf lança “Caquinha Superstar A-Go-Go: The Gore Horror Picture Show” (1996), uma tentativa de comédia musical escatológica desenvolvendo o personagem cult aparecido em “O Monstro Legume do Espaço”. Agora o pavoroso Caquinha (E.B.Toniolli) vive feliz ao lado de sua amada Lena, que aplaca seus instintos doentios. Quando ela é atacada por uma dupla de caçadores caipiras, o retardado coprófago se vê sozinho em um mundo com criaturas tão estranhas quanto ele. Contrastando com detalhes de seu lançamento, como trilha sonora original lançada em Cd, o longa rodado as pressas em apenas um fim de semana ficou abaixo das expectativas.

Mojica, que já ganhara até um clone: Antônio Firmino, o “Toninho do Diabo” (criador & criatura nos curtas “O Caçador de Almas” e “O Caçador de Falsos Profetas”) aderiu a nova “boca do lixo eletrônica”. Dirigido por Andrea Pasquini atuou em “Contos de Horror – A Filha do Pavor”(1997), em dois papéis, como um padre e como o narrador “O Cavaleiro do Medo”, da história de uma mulher estuprada e morta que volta para se vingar. O vídeo faria parte de uma pretensa série de vinte episódios realizados para a tv, mas apenas este exemplar seria lançado anos mais tarde para o mercado de videolocadoras. Outra ponta de Mojica seria no decepcionante “Babu – A Vingança Maldita” (1997) de César Nero, sobre um líder de uma seita de adoradores do diabo que é assassinado para retornar com estranhos poderes.

“Blerghhh” (1996/97) de Petter Baiestorf, contando com grande equipe/elenco e efeitos especiais mais elaborados, trás  um grupo de terroristas atrapalhados que seqüestram o filho de um milionário e sua sexy guarda costas e provocam uma série de incidentes que envolvem sexo, drogas, violência gratuita e um morto vivo (o primeiro da filmografia nacional) que se recusa a morrer mesmo quando tem a cabeça decepada. Mesmo tendo sua exibição pública proibida na terceira edição da Horrorcon (mesma convenção que ajudou a Canibal a ser conhecida  nacionalmente) e uma  edição deficiente, o vídeo obteve ótima repercussão. A chamada “fase 1998” da produtora catarinense seria marcada pela transgressão, deboche e sexualidade exacerbada. “S.B.A.F. – Sacanagens Bestiais dos Arcanjos Fálicos” (1998) começou a ser rodado como um vídeo pornô sobre um psiquiatra estudando as taras de dois pacientes, mas acabou se transformando numa mistura (indigesta para grande parte do público) de violência com sexo explícito. Já “Gore Gore Gays”, do mesmo ano, tinha como protagonistas  um casal de bissexuais apaixonados e perturbados (vividos pelos realizadores Baiestorf e Coffin Souza) que embarcam em uma viagem de auto-conhecimento, mutilações e assassinados violentos. Novamente a fórmula sexo explícito + deboche + gore saí pela culatra e os produtores se vêem à beira da falência.

O rockeiro e videomaker do interior paulista Cleiner Micceno, depois de vários curtas metragens divertidos, consegue finalizar “Dominium” (1999) sobre uma invasão de mortos vivos demoníacos que traz o apocalipse sobre a terra. Zumbis também seriam o tema de “Zombio” (1999) de Petter Baiestorf, um média metragem inspirado nos filmes do italiano Lucio Fulci, com um casal em uma ilha que seria paradisíaca se não fossem um psicopata travestido e uma sacerdotiza que acorda uma legião de mortos apodrecidos famintos por carne humana.

Assim, como a praga de zumbis se alastra nos filmes impregnando inocentes transformando-os em criaturas malignas, o vírus do “faça-você-mesmo-e –se –divirta” vai tomando conta do sul do país.

Do interior gaúcho surge “Soul Crusher 2 – O Retorno do Homem Coisa” (1999) do jovem videomaníaco Cristian Verardi, um média da produtora Toque de Muerto, com influências de “Evil Dead” (1984), Spaghetti Westerns, filmes orientais, Troma Films e Canibal Filmes, com uma criatura deformada e sanguinária que procura um livro maldito (que teria sido roubado na imaginária parte 1) por ordens de um lendário demônio chamado Amazarel de Nicodemus. De Chapecó, SC, Fabiano Boni conta a origem de seu personagem Boni Coveiro (calcado nitidamente em Zé do Caixão) em “O Mensageiro das Trevas” (2000), onde o psicopata satanista se diverte matando inicentes escoteiros. Carlos Barbosa, no interior do Rio Grande do Sul, é assolada por um assassino mascarado em “Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-Feira 13 do Verão Passado” (2001) de Felipe M.Guerra, uma divertida homenagem satírica aos filmes de terror adolescente dos anos 90 (principalmente a série “Pânico”de Wes Craven). Boni Coveiro retorna dos mortos para se revelar “O Guardião do Inferno” (2001) dirigido e vivido novamente por Fabiano Boni, com participações especiais de Toninho do Diabo, do músico Wander Wildner e de outras personalidades sulinas.

Petter Baiestorf retoma suas atividades e filma “Raiva” (2001), uma mescla de filmes de ação (satirizando Quentin Tarantino) com terror gore, nas atividades de um bando de criminosos que são pegos de surpresa por colonos contaminados por uma droga (testada pelo governo) que libera seus instintos assassinos. Na frente da câmera, praticamente o mesmo grupo de atores/colaboradores que acompanha a Canibal Filmes a anos, por trás muito mais cuidado com a técnica e o amadurecimento da linguagem cinematográfica.

O pioneiro do gore americano H.G.Lewis (2000 Maniacs), Troma & Canibal Filmes foram a influência  para um grupo de paulistas capitaniados por Fernando Rick ao realizarem o trash debochado “Rubão – O Canibal” (2002) e inserirem sua produtora, a Black Vomit Filmes, no circuito de bares e shows de metal, principal reduto de culto a toda esta produção de terror em VHS. A mesma trupe foi (i)responsável  pelo primeiro terror-trash lançado em formato digital (DVD) por aqui: “Feto Morto” (2003), sobre um nerd (Rui Villani) que tem um feto grudado em sua cabeça (resultado de uma relação incestuosa de seu pai) e é hostilizado por uma gang. Escatologia, sexo e gore no que Fernando Rick chama de “estilo Troma de ser”.

Juntando a suas influências básicas, sua admiração pelo grupo de humor britânico Monty Python, Petter Baiestorf realiza o pastelão de terror “Cerveja Atômica” (2003), onde um cientista punk  desenvolve a fórmula da bebida mortal que transforma bêbados em zumbis alucinados e desperta a fúria da avó de Chapéuzinho Vermelho (!?) e suas colegas de chá da tarde, que armadas e perigosas resolvem se vingar.

O cenário de produção desta época começa a mudar, já não existe mais espaço para a divulgação dos vídeos toscos em VHS, os computadores caseiros passaram a substituir as prosáicas mesas de edição linear e o cinema profissional brasileiro começava a se reerguer. Curtas de horror com qualidade técnica e artística (como “Amor só de Mãe” de Denninson Ramalho; ”Sózinho”de André ZP; “Conrad : Bruxaria, Pajelança & Canibalismo” de Luciano Maciel e “Coleção de Humanos Mortos” de Fernando Rick) conseguem espaço e até reconhecimento internacional, apontando novos caminhos para o cinema fantástico nacional.

Ivan Cardoso, ausente das telas por anos, perseguindo orçamentos a altura de suas produções, consegue apoio da Diler Associados e contrata o astro de terror espanhol Paul Naschy (Jacinto Molina) para seu aguardado “Um Lobisomem na Amazônia” (ex-“Amazônia Misteriosa”) em 2005. A interferêcia dos produtores acostumados com produções de cunho televisivo-cinematográfico (leia-se Xuxa/Globo) amenizam muito suas pretenções de uma história envolvendo o personagem clássico Dr.Moreau (baseado em H.G.Wells), guerreiras Amazonas e um lobisomem latino. Remontando material antigo seu (principalmente “O Lago Maldito”de 1977, inacabado e embrião do “Segredo da Múmia”) com cine-jornais antigos e cenas novas cria depois uma obra muito superior,mas pouco vista, chamada “O Sarcófago Macabro” onde um agente americano da CIA (Carlo Mossy) descobre um dossiê sobre um cientista louco brasileiro (Expeditus Vitus, leia-se Wilson Grey, morto em 1993) que colabora com os nazistas e trás para o brasil diversos carrascos da SS, inclusive o próprio Adolf Hitler, como múmias.

Enquanto o paulista Rubens Mello divulga seu média “Lâmia, Vampiro!” (2005), sobre a ressurreição da matriarca dos sanguessugas para evitar o apocalipse planejado por seus rebentos,  Petter Baiestorf planeja uma refilmagem do clássico B “O Incrível Homem que Derreteu” (1978 ), mas o roteiro é mudado para uma história anarco-ateísta sobre a volta de Jesus Cristo como um monstro pegajoso, e finalmente é transformado em “A Curtição do Avacalho” (2006), agora uma comédia que homenageia o cinema marginal  e mistura um cientista louco, um padre fanático, um psicopata mascarado paraguaio, monstros clássicos, heróis atrapalhados, mocinha em perigo e cineastas frustados em uma grande sopa de metalinguagem e auto-referências. No mesmo ano a Canibal cometeria a tão aguardada continuação de seu clássico “O Monstro Legume do Espaço 2”, contando o dia seguinte da suposta morte da criatura, mas o orçamento zero e uma equipe abaixo do mínimo frustaram realizadores e fãs, que ainda aguardam a volta por cima do “ícone do Terror VHS” (atualmente Petter Baiestorf está correndo atrás de investidores para refilmar a primeira parte do “O Monstro Legume do Espaço” com efeitos de Rodrigo Aragão).

No cinemão, o cineasta Walter Rogério conduz o policial com toques de humor negro “Olhos de Vampa” (2006), sobre uma série de crimes que aterrorizam São Paulo com as mesmas características, mulheres  tem o sangue do corpo sugado por uma mordida na bunda e são encontradas seminuas em poses eróticas. Dois policiais que investigam descobrem um suspeito que apelidam de Vampa (o sinistro Joel Barcellos), que vive recluso e protegido por uma velha mendiga.

Um filme realizado por José Mojica e seus alunos em 1979 na bitola amadora Super 8mm é finalmente editado por Eugênio Puppo como parte das comemorações dos 50 anos de carreira do cinesta maldito. “A Praga” (1979/2007) escrita por Lucchetti conta como um homem é amaldiçoado por uma bruxa (Wanda Kosmo, é claro!) e uma misteriosa ferida em sua barriga precisa ser alimentada constantemente com  carne, mesmo que seja carne… humana. Falando em canibalismo, eclode nesta época uma verdadeira epidemia de zumbis antropófagos nacionais. Primeiro é o descolado “Era dos Mortos”(2007) média metragem do mineiro Rodrigo Brandão, com um rapaz que fica preso em um elevador e ao conseguir sair se vê em meio a uma invasão de cadáveres ambulantes e famintos; seguido do pretensioso longa “A Capital dos Mortos” (2008) de Tiago Belotti, com Brasília sendo invadida por mortos vivos como previsto em uma antiga profecia apocalíptica de um padre (com direito a uma rápida ponta de Zé do Caixão em pessoa) e chegando até o cultuado “Mangue Negro” (2008) com roteiro, direção e maquiagens de Rodrigo Aragão (1977). Em meio a um manguezal no interior do Espírito Santo, a pobre comunidade local assiste aterrorizada os mortos levantarem da lama em busca da carne dos vivos. O apavorado catador de caranguejos Luis da Machadinha (Walderrama dos Santos) precisa a todo custo proteger a lavadeira Raquel, sua amada. Maquiador profissional  e realizador de curtas de horror (“Peixe Podre”, “Peixe Podre 2” e “Chupa Cabras”), Aragão utiliza seus conhecimentos para ótimos efeitos especiais, unindo a isto um cenário exótico, um elenco afiado de profissionais e amadores e um roteiro que coloca os zumbis em um contexto verdadeiramente nacional, sendo premiado aqui e no exterior. Este “ciclo nacional” de mortos ambulantes teria ainda a participação do longa gaúcho “Porto dos Mortos” (2009) de Davi de Oliveira Pinheiro, mas não se sabe ao certo se o projeto muito comentado foi  realmente finalizado.

No oeste catarinense o “canibal-mor” Baiestorf exercita estilo e linguagem com médias metragens na linha sexploitation unindo sexo simulado e violência explícita homenageando o diretor espanhol  Jesus Franco e o cinema da Boca do Lixo com “Arrombada-Vou Mijar na Porra do Seu Túmulo” (2007) e “Vadias do Sexo Sangrento” (2008) contando com a edição precisa do músico/cineasta-experimental Gurcius Gewdner.

Depois de trinta anos de tentativas frustradas, bicos em parques de diversão, shows de rock, mestre de cerimônias de filmes vagabundos na TV e pontas em filmes alheios (inclusive pornôs), Josefel do Caixão Zanatas ressurge da tumba para completar a sua saga! Com apoio do produtor Paulo Sacramento e do fã-cineasta Dennison Ramalho, José Mojica Marins tira a poeira de seu roteiro escrito em 1966 e o adapta para os dias atuais em “Encarnação do Demônio”(2008). Depois de passar quatro décadas atrás das grades por seus crimes insanos, Zé do Caixão é posto em liberdade e escolhe novos seguidores, retomando sua busca pela mulher perfeita. No seu encalço estão um padre enlouquecido, dois policiais veteranos e os fantasmas de suas vítimas, todos sedentos de vingança. Com uma produção digna, efeitos especiais elaborados e elenco estelar (Jece Valadão, Adriano Stuart, Débora Muniz, Zé Celso, Helena Ignez e Rui Rezende), Mojica consegue mostrar a força e o horror de seu personagem imortal e é consagrado pela crítica, aparece em capa de revistas sérias e é premiado no Festival de Paulínia. O grande público não corresponde nas bilheterias, mas fãs brasileiros e estrangeiros assistem  ao filme diversas vezes no cinema e em um DVD caprichado com diversos extras.

Em Curitiba(PR), Paulo Biscaia Filho escreve e dirige “Morgue Story – Sangue, Baiacu e Quadrinhos” (2009), humor-negro sobre um estranho triângulo envolvendo Ana Argento, uma desenhista de quadrinhos, um vendedor de seguros cataléptico e um legista psicopata que dopa suas vítimas com veneno de Baiacu para estupra-las e assassina-las no necrotério. Também do Paraná, é “A Bruxa do Cemitério 2” (2009) de Semi Salomão, com um colono sendo atormentado pelo espírito de uma feiticeira que exige vingança e atraí vítimas para um local onde ela domina forças maléficas.

Enquanto o paulista João Paulo Brasile Takada escreve, dirige e edita o longa em duas partes “Fúria Alucinante” (2010), com ação e ultra-violência na história de um ex-militar que através de experiências genéticas se transforma em um super-assassino vingativo, a atriz Gisele Ferran é arregimentada para as hordas da Canibal Filmes e estrela o média “O Doce Avanço da Faca” (2010) de Petter Baiestorf, mostrando que uma mulher também pode virar uma máquina de matar ao se vingar de uma seita de crentes pela morte de seu amado.

arte de Leyla Buk para o filme "O Doce Avanço da Faca".

A nova década mostra o amadurecimento técnico e artístico do nosso cinema “de gêneros”. Felipe Guerra retoma seus personagens para a continuação de sua engraçada sátira aos filmes de terror Hollywoodino com “Entrei em Pânico ao Saber o Que Vocês Fizeram na Sexta-Feira do Verão  Passado 2 – A Hora da Volta da Vingança dos Jogos Mortais de Halloween” (2011) com os novos crimes (risadas) provocados pelo assassino interiorano Geison.

“Pólvora Negra” (2011) de Kapel Furman, é um policial de ação, suspense e muito sangue, com estilo e ótima produção. Também em São Paulo, Sandro Debiazzi finaliza (em 20 anos de filmagens) seu média-metragem “O Tormento de Mathias” (2011), estrelado por Felipe Guerra e Joel Caetano. Mas o novo marco da produção independente cabe novamente ao capixaba Rodrigo Aragão com o maravilhoso “A Noite do Chupacabras” (2011). No interior do Espírito Santo, o conflito entre duas famílias rivais é acentuado com a chegada de um casal e com a presença de uma criatura monstruosa e sanguinária que sai da mata e provoca baixas nas duas facções em guerra. Assim como em “Mangue Negro”, Aragão prova que podemos produzir maquiagens e efeitos especiais de primeira categoria e originalidade. E que monstros como o lendário Chupacabras (vivido por Walderrama dos Santos) podem ser integrados a uma realidade nacional-regional, algo só conseguido antes com o Zé do Caixão de Mojica. Significativa também é a presença de outros cineastas brasileiros em destaque no elenco, como o vilão alucinado de Petter Baiestorf, o herói apalermado de Joel Caetano (diretor de vários curtas de horror, como  “Minha Esposa é um zumbi” (2006), “O Gato” (2009) e “Estranha” de 2011) ou o “Velho-do-Saco” (outra figura mítica/sobrenatural presente na trama) de Cristian Verardi (“Colt Romero”de 2008 e outros).

Como o mundo não acabou como previsto no ano 2000 e me disseram que ainda não vai se aposentar em 2012… assim como o cinema nacional… esperamos novas, emocionantes e assustadoras surpresas, saídas de algum cemitério público, casa mal-assombrada ou principalmente das cabeças  criativas de nossos “Horror-Makers” genuinamente brasileiros, portanto teimosos, endividados e batalhadores. Uma nova geração de curta-metragistas dedicados ao gênero fantástico está surgindo, Rubens Mello (ator em filmes ótimos como “Encarnação do Demônio” de José Mojica e “Ivan” de Fernando Rick) dirigiu recentemente “Lia”, um horror psicológico; Caio D’Andrea realizou o curta “O Solitário Ataque de Vorgon” que é ótimo (além de ter co-dirigido, com o colega Rodrigo Fonseca, o western com toques fantásticos “Duas Vidas Para Antonio Espinosa”); Armando Fonseca realizou um gore movie macabro tecnicamente muito bem realizado chamado “Velho Mundo”; o músico Márcio Júnior e sua esposa Márcia Deretti filmaram “O Ogro”, baseado na obra do desenhista Júlio Y. Shimamoto e Gabriel Carneiro acabou de lançar o curta-metragem “Morte e Morte de Johnny Zombie”, estrelado por Joel Caetano… Não percam o próximo capítulo!

Escrito e pesquisado por Coffin Souza (texto original foi publicado no fanzine “Brazilian Trash Cinema” dos editores Coffin Souza e Petter Baiestorf em novembro de 2001, revisto e atualizado em novembro de 2011)

Necrófilos em Ação: O Cinema de Felipe Guerra na Terra da Polenta

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Felipe Guerra faz filmes independentes no Brasil desde aquele tempo que cineasta independente filmava com uma filmadora VHS comum e editava tudo usando 2 vídeos cassetes. Natural da cidade gaúcha de Carlos Barbosa mostra que o cinema independente brasileiro não vive só de filmes transgressores e acredita que um cinema mais comercial é possível entre os independentes. Sem enrolação, segue a entrevista que fiz com Felipe Guerra e que tenta ser a mais completa já realizada com ele.

Felipe Guerra nas filmagens do curta "Pampa'Migo" (2011).

Petter Baiestorf: Antes de começar a fazer filmes, como era tua vida em Carlos Barbosa/RS?

Felipe Guerra: Petter, você também é de uma cidade pequena do Sul do Brasil, então acho que sabe bem como é a vida de um jovem nessas condições. Minha cidade-natal, Carlos Barbosa, fica na Serra Gaúcha, a 100 quilômetros de Porto Alegre, e hoje tem 25 mil habitantes, mas na minha infância e adolescência era bem menor. E quando você vive numa cidade que não tem nada para fazer, só tem duas alternativas: ou passa o tempo reclamando de como sua cidade não tem nada para fazer, ou inventa coisas para fazer. Por exemplo, quando eu era adolescente, desenhava histórias em quadrinhos que circulavam pela minha escola, um negócio bem tosco chamado “Os Porcos da Meia-noite”, na linha da revista Chiclete com Banana. Até hoje tenho uma pasta com centenas de páginas rabiscadas dessas histórias, e na verdade eu não desenhava porra nenhuma, mas fazia aquela meia dúzia de garranchos e meus amigos curtiam bastante. Também por esses tempos, eu editava um jornalzinho na minha escola com outros três amigos, chamado “O Jornal”, onde escrevíamos sobre cinema, música, literatura e coisas que a gente gostava. Sei que é difícil, para a garotada de hoje, conceber um mundo sem internet, sem blogs, mas na época era assim: se você queria falar sobre as coisas de que gostava, precisava criar um fanzine ou um jornalzinho de escola. Lembro que escrevíamos sobre coisas como H.P. Lovecraft e John Woo (os filmes dele estavam começando a sair em vídeo no Brasil), e também criticávamos o colégio. E como o jornalzinho circulava dentro da escola, um belo dia a diretora ficou de saco cheio e nos chamou para uma reunião a portas fechadas, onde ordenou que a gente se retratasse sobre aquelas críticas na próxima edição. Por causa disso, resolvemos parar de editar o jornal, e o colégio ficou sem retratação nenhuma. Ah, e eu formei uma banda punk com uns amigos chamada Necrófilos, que depois viria a ser o nome da minha produtora. Eu escrevia as letras e “cantava”, na verdade só berrava. Chegamos a ensaiar por uns dois meses canções estúpidas com refrões idem, tipo “Todos querem que cristão eu seja / Mas eu digo que se foda a Igreja!”, mas depois disso cada um seguiu seu rumo e a Necrófilos nunca se apresentou em público, o que no fim eu acho que foi uma ótima coisa.

Baiestorf: Você é formado em jornalismo, certo? Como é fazer parte de uma profissão tão, como costumo dizer, “copia e cola”? Porque percebo que os jornalistas e, principalmente, os críticos de filmes, estão cada vez mais acomodados. Isso te incomoda?

Guerra: Entendo o que você quer dizer, porque o jornalismo cultural que se faz hoje até me deixa envergonhado. Mas é compreensível, porque via-de-regra os jornalistas que trabalham nos grandes jornais brasileiros, hoje, são uns bocabertas de vinte e poucos anos que acabaram de sair da faculdade de jornalismo, não sabem porra nenhuma de nada, mas acham que são os fodões formadores de opinião e que vão mudar o Brasil com seus textos. E o mais engraçado é que os putos têm a internet e o Google à disposição, mas não pesquisam nada e publicam qualquer coisa como se fosse a verdade absoluta. Recentemente, por exemplo, toda a imprensa brasileira comprou a idéia de um tal “primeiro pornô em 3-D” que estaria sendo produzido na China. Eu sabia que não era o primeiro pornô em 3-D, porque tinha visto um filme de 1991 chamado “Princess Orgasma and the Magic Bed” que já era produzido em três dimensões. 1991, que é 20 anos atrás! Aí eu pesquisei sobre o assunto e publiquei um dossiê gigante sobre pornografia em 3-D, que é algo que vem desde os anos 60, no meu blog Filmes para Doidos, para ver se esses jornalistas folgados pesquisam melhor da próxima vez antes de escrever bobagem. Eu sempre idealizei a profissão de jornalista, inclusive as pessoas nunca acreditam quando digo que comecei a trabalhar no jornal da minha cidade quando tinha 12 anos. Eu era um menino prodígio do português lá em Carlos Barbosa, daquele tipo que ganha todos os concursos literários e tem o saco puxado pelos professores. Meu sonho quando criança era ser escritor, mas logo desencantei com a dificuldade para publicar e percebi que seria mais fácil ser publicado e lido como jornalista. E o jornal da minha cidade, que se chama Contexto, estava com uma vaga para revisor ortográfico. Meu pai era amigo de infância do editor e foi perguntar se eu não poderia assumir a vaga. Eles ficaram meio desconfiados por ter um moleque na redação, mas me deram uma chance e fui ficando. Então com 12 anos, enquanto meus amigos curtiam a vida de criança e pré-adolescente, eu já estava trancado dentro de uma redação de jornal, rodeado de gente fumando, tomando café e falando bobagem o dia inteiro, o que foi fundamental para minha criação. Engraçado é que peguei a fase das máquinas de datilografia e toda a transição das câmeras fotográficas com filme para as digitais, e das enciclopédias e almanaques para a internet. Foram mudanças incríveis, e muito professor de jornalismo que dá aula em faculdade nem passou por isso para poder falar. E eu comecei a escrever para o jornal logo depois. Trabalhei 16 anos no jornal Contexto, e aprendi desde cedo a escrever muito e pesquisar muito. Minhas reportagens eram enormes, e esse é um hábito que eu cultivo até hoje. Quando escrevo para sites como Boca do Inferno e meu blog, por exemplo, sempre faço textos gigantescos, em que passo semanas pesquisando coisas até esgotar o assunto. Por isso que me deixa puto esse jornalismo de hoje, que parece estar sendo escrito para débeis mentais, com matérias cada vez mais curtas e estilo “copia e cola”, como você bem disse. Os caras vão fazer uma entrevista e nem pesquisam o mínimo sobre o entrevistado antes de ir falar com ele. Querem tudo de mão beijada, só falta pedir para o entrevistado escrever a reportagem para eles! Diferente, por exemplo, dessa tua entrevista, onde percebe-se que houve um grande interesse e uma enorme pesquisa na hora de fazer as entrevistas. Já tive que aturar repórteres que não sabiam porra nenhuma sobre o que estavam me perguntando e depois ainda pediram se eu podia gravar “as melhores cenas” do meu filme num DVD para eles. Ou seja, nem querem se dar ao trabalho de assistir o filme inteiro, e esses são os caras que escrevem para os jornais e revistas! Eu e você deveríamos estar trabalhando no ramo, Petter, e ganhando salários milionários!

Baiestorf: O que te motivou a começar a fazer filmes independentes?

Guerra: Bem, eu desempenhei todas essas atividades malucas quando era adolescente – jornalista, editor de jornal do colégio, desenhista de quadrinhos, “músico” -, mas minha paixão mesmo sempre foi o cinema. Meus pais Quito e Neusa gostavam muito de cinema e me passaram esse amor pelos filmes. Sempre me levavam ao cinema para ver filmes dos Trapalhões e de super-heróis, e quando o VHS estava começando a aparecer no Brasil, na época das fitas piratas, meu pai reunia a família toda na sala para ver filmes como “Os Caçadores da Arca Perdida”, “Força Sinistra” e “Comando para Matar”, sem se importar se eu e meus irmãos Diego e Rodrigo ainda éramos muito garotos para ver filmes com tanta violência e mulher pelada. Por causa deles, a paixão pelo cinema começou desde cedo, e eu sempre gostei de pesquisar e escrever sobre filmes. Comprava as revistas SET e VideoNews, que eram a única fonte de informações cinematográficas pré-internet, e aqueles guias de vídeo da Nova Cultural, enormes e cheios de resenhas com estrelinhas. Só que eram tempos pré-internet, não é como hoje que você assiste um filme e dois minutos depois já posta uma resenha gigante no seu blog. Na época, eu escrevia textos sobre os filmes que gostava em cadernos, sonhando qualquer dia publicar. Também forçava meus amigos a assistirem os mesmos filmes que eu gostava, tipo “O Massacre da Serra Elétrica” e “Hardware”, para depois ter com quem conversar sobre eles. Era complicado. E no meio desse mundo insano, já colecionando fitas de filmes, bateu a vontade de fazer os meus próprios. Eu já criava filmes imaginários desde a infância. Meus pais não tinham câmera de vídeo, mas mesmo assim eu escrevia roteiros para filmes que sonhava fazer em algum momento da minha vida. Um desses roteiros era de um filme policial chamado “Ponto de Ebulição”, muito influenciado pelas obras do John Woo, e que tinha vários tiroteios e cenas de ação. Lembro que fiquei um tempão treinando como eu faria essas cenas. Por exemplo, colocava um colchão no chão e ficava dando saltos acrobáticos atirando com pistolas imaginárias e caindo no colchão, uma coisa bem débil mental. E nenhum desses filmes nunca saiu do papel justamente pela falta da câmera. Hoje é fácil, até telefone celular filma em boa qualidade, mas na época só existiam aquelas câmeras VHS gigantes, e só famílias abonadas tinham a sua. Até conseguir uma dessas emprestada de um amigo meu, foram longos anos em que fazer filmes parecia um sonho cada vez mais distante.

Baiestorf: Fale sobre teu primeiro curta-metragem, “A Noite da Punheta Assassina” (1995):

Guerra: Numa noite dessas, eu estava na casa do meu amigo Mathias Gusso, cujo pai tinha uma daquelas câmeras de vídeo gigantes sobre as quais falei antes. Estávamos sozinhos na casa dele e numa turma de cachaceiros, enchendo a cara com o que quer que tivesse para beber, e de repente o Mathias aparece com a câmera do pai dele para filmar todas as bobagens que a gente estava fazendo e falando. Quando aquela câmera caiu na minha mão, eu sugeri fazermos um filminho de brincadeira. Os caras gostaram e, volto a ressaltar, estavam mamados demais para terem qualquer senso crítico. E saímos pelas ruas de Carlos Barbosa filmando cenas sem diálogos, apenas com uma narração que eu ia inventando na hora, e que deram origem ao curta “A Noite da Punheta Assassina”, estrelado pelos meus amigos Mathias, Leandro Perera, Paulo Dalle Laste e meu primo Ricardo Felicetti. Basicamente, era a história de quatro rapazes que morriam de tanto bater punheta, e depois ressuscitavam como zumbis sedentos de sexo. Mas a gente cansou da brincadeira antes de filmar qualquer conclusão para a história, então no fim eu só tinha o começo e umas cenas aleatórias dos caras andando como zumbis pelas ruas escuras e desertas de Carlos Barbosa. Uns dias depois, quando assisti aquilo em casa, comecei a ter idéias para completar a história usando cenas de outros filmes, editando no esquema dois videocassetes que você conhece muito bem. Aí eu usava pedaços de outros filmes para tapar buracos no meu curta. Por exemplo, depois que os guris morriam de tanto se masturbar, eu coloquei uma cena do “Plan 9 From Outer Space” em que o disco voador toscão lança um raio sobre o cemitério, para explicar que foram os alienígenas que ressuscitaram os punheteiros. E fui fazendo essa brincadeira de colagem e montagem até terminar com um curtinha bem tosco, mas muito engraçado, de 10 minutos, que veio a ser o meu primeiro “filme”, por assim dizer.

Baiestorf: Você diz que este curta está perdido, mas como uma obra tão recente se perde? Ou é você que não quer que este seja exibido?

Guerra: Foi um lamentável acidente. O fato é que pouquíssimas pessoas viram “A Noite da Punheta Assassina” depois de pronto. Uma delas foi meu amigo, colega de trabalho no jornal e futuro colega de produtora Eliseu Demari, que veio até a minha casa para assistir e se mijou de rir. Aí os “atores” do curta e o dono da câmera também quiseram assistir, e eu, besta, emprestei a fita original, com a única cópia existente do filme. E você sabe como são essas coisas: um pega, empresta para outro, que empresta para outro, que por sua vez deixa com outro, e quando percebi ninguém mais sabia onde estava “A Noite da Punheta Assassina”! Até hoje eu desconfio que um dos quatro caras que apareceram como atores deu um sumiço na fita ao perceber que estava pagando o maior micão, o que é compreensível. Mas nunca consegui rastrear o filme, que está perdido desde 1995. Inclusive peço encarecidamente que os cidadãos de Carlos Barbosa dêem uma busca nas suas velhas fitas VHS, talvez uma delas contenha a única cópia existente do meu primeiro “filme”, e eu gostaria muito de rever essa bobagem! Particularmente, não tenho nenhum problema com a exibição de “A Noite da Punheta Assassina”, só acho que é uma obra muito estúpida e desprovida de interesse para ser exibida em qualquer lugar fora da minha casa. Uma brincadeira entre bêbados, que eu pensaria duas vezes até mesmo para colocar no YouTube. Se um dia eu ficasse famoso talvez tivesse algum valor, mas hoje não vale um tostão furado. Só tem mesmo o valor nostálgico. E uns anos depois eu pensei seriamente em refilmar a história como um longa, só que acabei transformando a idéia dos punheteiros-zumbis numa história de ficção científica trash sobre bebês mutantes que vivem nos esgotos e são gerados pelo esperma que desce vaso abaixo por causa das masturbações da galera no banheiro. Esse é mais um dos muitos roteiros que escrevi e nunca filmei.

Baiestorf: “A Noite da Punheta Assassina” foi lançado em VHS, mostras e festivais ou foi apenas assistido por seus amigos mais pessoais?

Guerra: Como eu expliquei, o filme nunca saiu do meu círculos de amigos, e as poucas pessoas que viram antes da fita desaparecer tiveram que ir lá na minha casa. Tanto que a única pessoa que tenho certeza que viu “A Noite da Punheta Assassina”, além de mim, foi o Eliseu, que inclusive desenhou uma capinha bem simplória para a fita, com a hilária imagem de um pênis monstruoso à la Godzilla. Por e-mail, eu pedi para ele agora a pouco se lembrava de alguma coisa do filme. Eis a sua declaração: “Infelizmente (ou felizmente?) lembro pouco ou nada desta obra. Fui audiência de ‘A Noite da Punheta Assassina’ uma única vez, mas a despeito da minha memória fraca, posso dizer que o que mais me impressionou não foram as cenas improvisadas, o arremedo de roteiro ou o avacalho puro e simples, e sim a, digamos, inconseqüência de quatro ou cinco adolescentes amigos meus a gravar tal situação nas ruas escuras da nossa pacata cidade. Na verdade, a única seqüência que mantenho em recônditos de minhas vias hipocampais é de dois ou três ‘atores’ circulando pelo Calçadão do Centro – talvez com o busto do Doutor Carlos Barbosa ao fundo – a simular uma masturbação furiosa em direção à câmera, com direito a feições que denotavam raiva ou ódio ou ameaça, sendo que ao final do take todos desviavam o olhar em meio a um sorriso nervoso que devo interpretar como se estivessem dizendo para si mesmos: ‘Não acredito que estou fazendo isso’.”.

"Ponto de Ebulição".

Baiestorf: E o “Ponto de Ebulição” (1996), como surgiu a idéia para fazê-lo?

Guerra: “Ponto de Ebulição” era um daqueles roteiros que eu tinha escrito quando moleque. Era tão descaradamente inspirado nos filmes do John Woo que até o título é uma referência bem óbvia ao meu filme preferido dele, “Fervura Máxima” (Hard Boiled, 1992). Esse curta surgiu porque eu vivia falando com meus amigos que escrevia roteiros e que um dia iria fazer filmes, e eles ficavam putos comigo porque era sempre a mesma conversa. Certo dia, o Eliseu duvidou e eu apostei que faria um curta-metragem num final de semana. E resolvi filmar esse “Ponto de Ebulição”, que era a história de quatro rapazes que assaltavam a casa de um bancário em busca de dinheiro para comprar drogas, mas o matavam acidentalmente. No roteiro original, era aniversário do falecido e várias pessoas chegavam à casa para uma festa-surpresa, então os bandidos tinham que ficar toda hora dando sumiço no cadáver de forma criativa, uma espécie de “Um Morto Muito Louco” misturado com “Festim Diabólico”. E várias pessoas descobriam que o aniversariante estava morto e também eram assassinadas para manter o segredo. A história terminava com dois matadores da Máfia chegando a casa, porque o bancário estava jurado de morte por um traficante para quem lavava dinheiro, e aí os jovens assaltantes lutavam contra os matadores, e no final sobrava apenas um. Como eu tinha apenas um final de semana para filmar, fui cortando páginas do roteiro para deixá-lo mais simples. Eliminei toda essa idéia da festa de aniversário do morto. Então era só o assalto, a morte acidental do assaltado, e a partir daí uma série de confusões e brigas entre os próprios criminosos, até a chegada de um único matador profissional e o duelo entre todos eles. Como eu precisava da câmera do meu amigo Mathias, tive que implorar para ele me emprestar e ainda aparecer no filme como o tal assassino contratado, e felizmente ele aceitou depois de muita aporrinhação. Os outros personagens foram interpretados pelos meus amigos Gustavo Zanuz, Paulo Dalle Laste, Gustavo Ghiddini, Guilherme Tusset e Elton Demari, e pelos meus irmãos Rodrigo e Diego Guerra. Eu não tinha muita noção de cinema na época, então todas as cenas foram filmadas na ordem linear e praticamente num único take, com o quadro aberto e todos os atores falando todos os diálogos sem cortes, um lance bem teatral. E fiz a burrada de querer interpretar um dos personagens principais, aí a câmera ficava sempre em mãos menos hábeis. Foi uma bagunça para filmar, as coisas nunca saíam como eu queria. Tudo, mas tudo mesmo era improvisado: o sangue, que eu não sabia como fazer, os tiros eram estalinhos de São João estourados por trás da câmera, porque eu não imaginava que depois dava para dublar os sons, e por aí vai. Os créditos iniciais, para você ter uma idéia, eram papéis impressos e colados na parede, com a música tocando num aparelho de CD no fundo! Apesar disso, “Ponto de Ebulição” até tinha algumas cenas legais. E eu consegui fazer num único final de semana e ganhei a aposta. Logo virou lenda em Carlos Barbosa, mesmo que na verdade seja um negócio tosco pra cacete! Eu acho até que o roteiro original do filme, com a história toda da festa de aniversário e dos caras terem que ficar sumindo com o cadáver do dono da casa, tinha potencial para virar um longa bem divertido, e talvez qualquer hora dessas eu reescreva tudo e filme decentemente. Ah, tem uma história engraçada sobre os bastidores de “Ponto de Ebulição”: filmamos o curta inteiro na minha casa, e ao final do dia estava uma bagunça por toda parte. Meu pai voltou do trabalho e, chegando em casa, estranhou que a porta estava escancarada. Aí entrou e viu sangue (de groselha) no chão e cadeiras viradas por toda sala. Pensou que alguém tinha assaltado a casa e matado todo mundo. Subiu rapidamente para o segundo andar, para pegar o revólver que guardava na gaveta do lado da cama, e, ao passar pelo banheiro, viu meu irmão Rodrigo deitado de cueca dentro da banheira, coberto de sangue falso. Eu estava com o resto da turma no quintal, filmando outras cenas, mas depois meu pai me contou que ficou branco e quase teve um treco ao ver seu filho caçula esquartejado dentro da banheira, até que meu irmão levantou a cabeça e explicou tudo. E também foi nesse filme que surgiu o nome “Necrófilos Produções Artísticas”, na época uma brincadeira por causa da minha banda de garagem, mas que eu adotaria como alcunha oficial a partir de então.

Baiestorf: Com este curta você discutiu a relação da juventude com as drogas e a população de Carlos Barbosa não aprovou a temática. Conte como foi isso. E por que você não continuou desenvolvendo roteiros com temáticas mais polêmicas?

Guerra: Na verdade não foi o “Ponto de Ebulição”, mas sim o primeiro “Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-feira 13 do Verão Passado”, em 2001, que deu problema por causa do lance das drogas. O roteiro de “Ponto de Ebulição” originalmente tinha várias referências a isso, já que os quatro protagonistas queriam assaltar o bancário para conseguir dinheiro para comprar drogas. Como cortei muita coisa do que seria o longa para poder filmar um curta, acabei deixando isso de lado – até porque pensei que era muito moralista mostrar os criminosos como usuários de drogas. No caso de “Entrei em Pânico…”, foi o seguinte: nos slasher movies tradicionais, tipo “Sexta-feira 13”, o personagem que usa drogas geralmente morre, então eu fiz com que todos os personagens do meu filme usassem drogas – maconha, cocaína e até heroína. Isso era uma realidade na época, não como hoje, que droga é modinha e muito mais fácil de conseguir, mas já era comum o uso de drogas mesmo numa cidade pequena, como a minha. Só que ninguém gostava de falar sobre o assunto, o tema era tabu, e por isso muitas pessoas reclamaram quando viram o filme, especialmente na cena em que meu irmão aparecia se picando com uma seringa. Eu vou falar a verdade: quando filmei essas cenas, estava tentando ser exagerado e engraçado, nunca pensei que fossem levar a sério. Também não era minha intenção discutir um problema social a sério, era simplesmente essa brincadeira com os clichês dos filmes de horror: se todos os personagens usam drogas, como saber quem vai morrer e quem vai viver? Mas isso chocou um pouco a sociedade de Carlos Barbosa. Ironicamente, eles nunca falaram nada da violência explícita, dos palavrões e nem das cenas em que os guris assistem filmes pornográficos. Só o consumo de drogas incomodou, até alguns pais acharam o fim da picada e vieram reclamar comigo porque seus filhos tinham assistido aquele filme “imoral” que mostrava os guris fumando maconha e cheirando cocaína como se fosse a coisa mais normal do mundo. Bem, se eu fosse ligar para tudo que falavam sobre mim em Carlos Barbosa, eu nunca mais faria nada. Mas a verdade é que em todos os meus filmes posteriores eu peguei mais leve nessa questão das drogas, não tanto pela polêmica, mas porque não queria repetir a piada. E porque, como eu disse antes, hoje o uso de drogas é tão comum, tão “modinha”, que eu prefiro nem enfocar mais.

Baiestorf: “Ponto de Ebulição” teve lançamento oficial? Como foi?

Guerra: Petter, você fica me perguntando sobre lançamentos, festivais, então deixa eu te explicar que esses meus primeiros “filmes”, tanto o “Punheta Assassina” como o “Ponto de Ebulição”, ainda eram produzidos como uma grande brincadeira, sem nenhuma pretensão de ganhar alguma exibição além do meu círculo de amigos. E eram muito toscos para eu sequer imaginar que sairiam desse pequeno grupo de pessoas. Além do quê, eu era meio trapalhão. Antes perdi a fita de “A Noite da Punheta Assassina”, e no caso de “Ponto de Ebulição” fiz ainda pior: na hora de editar, fiquei gravando e regravando as cenas de uma fita para a outra sem perceber que isso fodia com a qualidade de imagem e de som. E, depois que a montagem ficou pronta, fiz a burrada de copiar um filme pornô na fita onde estavam as gravações originais, apagando tudo. Hoje só sobrou essa cópia de cópia de cópia de cópia com qualidade sofrível de imagem e som. Se eu ainda tivesse os originais, hoje poderia digitalizar tudo e reeditar de forma decente no computador, até pela nostalgia da coisa. Mas só sobrou uma montagem porca, e qualquer dia desses quero reeditar e redublar (porque os diálogos estão inaudíveis) para jogar no YouTube. Porque, apesar de ficar restrito a um pequeno grupo de espectadores, “Ponto de Ebulição” virou uma espécie de filme de culto em Carlos Barbosa, especialmente para alguns jovens que perceberam que era possível fazer seus próprios filminhos caseiros. Conheço gente que até hoje recita os diálogos do curta de cor – pérolas como “Vamos carnear os dois” e “Ele não era tão bom assim”.

Baiestorf: Fale sobre “Patrícia Gennice” (1998), seu primeiro longa-metragem:

Guerra: Foi o seguinte: em 1997, eu tinha essa experiência frustrada dos dois curtas bestas que fiz, “Punheta Assassina” e “Ponto de Ebulição”, e pensei que nunca conseguiria fazer nada além disso. Então li uma reportagem muito interessante na Folha de São Paulo sobre um tal de Petter Baiestorf, conhece? Um cara que também estava fazendo filmes trash numa cidade do interior. Me identifiquei com aquilo e fiquei surpreso ao saber que você conseguia vender as fitas dos seus filmes. Na mesma época, um amigo comprou “Eles Comem Sua Carne” e me emprestou para ver. Aquilo me deixou maluco, porque era exatamente o tipo de filme que eu queria fazer e que achei que nunca seria possível sem recursos, mas você me provou o contrário. Foi o meu guru, por assim dizer, mas sem viadagem! Por causa daquela reportagem e do “Eles Comem Sua Carne”, eu decidi filmar o meu próprio longa-metragem. Mas, ao invés de terror, preferi escrever uma versão juvenil de “Depois de Horas”, filme do Martin Scorsese que acho fantástico. Era a história de um rapaz que marcava encontro com uma bela garota e passava o filme todo tentando chegar na casa dela, mas sempre acontecia alguma coisa bizarra que o impedia, inclusive encontros com traficantes e matadores de aluguel. Era uma comédia episódica, em que um mesmo personagem principal passava por várias situações cada vez mais esquisitas e absurdas. E como naquela época eu estava apaixonado por uma garota, resolvi fazer uma homenagem romântica chamando a personagem-título de Patricia Gennice, que é um anagrama do nome da menina de quem eu gostava, e que depois foi minha namorada por alguns anos. Só que desde o princípio, desde quando estava escrevendo o roteiro, eu percebi que jamais conseguiria fazer “Patricia Gennice” da forma como fiz meus outros filmes, com câmera emprestada de amigo e cenas filmadas num único take. Resolvi juntar minhas economias e comprar uma câmera VHS, que na época custou 800 reais, mas era tudo que eu tinha. E a partir de então comecei a chamar amigos interessados em fazer algo um pouco mais sério, sem aquele clima de brincadeira descompromissada dos meus outros filmes caseiros. Os problemas começaram desde cedo, pois o cara que faria o personagem principal, meu amigo Alberto Chies, filmou algumas cenas e depois foi embora de Carlos Barbosa para morar em Londres, onde está até hoje. Ele foi substituído por Fabiano Taufer, que gostava muito de teatro e cinema, e encarou o desafio, sem saber que passaria seis meses vestindo a mesma camisa suja, fedorenta e coberta de sangue (já que a história do filme se passa numa única noite, mas as filmagens demoraram exatos seis meses). Nós filmávamos de madrugada, quando voltávamos da faculdade, porque a história se passava à noite. Foi baseado na dificuldade de filmar nas madrugadas geladas do Rio Grande do Sul que decidi nunca mais fazer filmagens noturnas, ou pelo menos reduzi-las. Até porque a gente ficava zanzando pela cidade com armas de verdade (facas e o revólver do meu pai), e os atores cobertos de sangue falso, sem imaginar que poderia dar merda. Lembro que filmamos uma cena em que Fabiano e Eliseu Demari estavam numa escadaria, ao lado de um prédio residencial, e Mathias Gusso aparecia e matava Eliseu com um tiro. Filmamos isso perto das duas da madrugada, um silêncio sepulcral ali, até o momento em que estouramos uma bombinha para simular o barulho do tiro – porque eu ainda não sabia que dava para dublar o som depois. Depois do estouro, o Eliseu caiu gritando e se esvaindo em sangue de groselha, que saía de um saquinho por baixo da sua camisa. Quando eu parei de gravar, olhamos para cima e percebemos, apavorados, que todo mundo no prédio ao lado tinha acordado, um montão de gente com cara de sono e pijama nas suas sacadas tentando descobrir o que é que estava acontecendo. Tive sorte que eles perceberam que era tudo brincadeira e não chamaram a polícia, pois o Mathias segurava um revólver calibre 32 de verdade na mão! E como era uma pequena produção caseira, enfrentei todo tipo de dificuldades para fazer “Patricia Gennice”. Algumas passagens do roteiro não foram filmadas simplesmente porque eu não tinha como fazer, incluindo uma cena de necrofilia. Furos de roteiro e erros de filmagem eram contornados criando-se novos personagens para tentar corrigir as cagadas. Em meio aos seis meses de filmagens, por exemplo, o Fabiano cortou o cabelo e estava muito diferente das outras cenas que tinha gravado, isso para uma história que se passa numa única noite. Então tive que inventar uma cena em que ele encontra um demônio (na verdade, uma demônia), e ela corta o cabelo dele! Também enfrentei todos aqueles problemas de quem está tentando fazer cinema numa cidade pequena. Os dois personagens mais delicados da trama, um homossexual que tenta comer o personagem principal no banheiro público e um travesti, eu mesmo tive que fazer porque ninguém queria, tinham medo de passar vergonha. E era quase impossível conseguir garotas para fazer o filme, elas tinham medo e achavam que tudo era uma loucura. A atriz que faz Patricia Gennice, a Franciele Mazetti, topou e fez tudo sem reclamar, mas não era a pessoa ideal para o papel, simplesmente foi a única que aceitou. Mas no fim tudo deu certo. O filme ficou bem divertido, as piadas funcionam até hoje e ele acabou virando uma espécie de documento histórico sobre a minha cidadezinha, pois tem muitas filmagens externas, e Carlos Barbosa mudou bastante de 1998 para cá, então as imagens mostram prédios e lugares que não existem mais, o que é muito legal. Tem gente que acha “Patricia Gennice” o meu melhor filme, apesar de ter muitos problemas de narrativa e ser bastante mal-filmado.

Baiestorf: Neste seu primeiro longa, “Patrícia Gennice”, notamos que sua cidade natal, Carlos Barbosa/RS, é importante na trama desenvolvida pelo roteiro (aliás, praticamente todos seus filmes são ambientados em Carlos Barbosa). Como é filmar na cidade? Tu pede autorizações? Conta com apoio da população?

Guerra: O interessante de filmar “Patricia Gennice” de madrugada foi justamente o fato de não ter ninguém por perto para encher o saco, com exceção da cena da morte do Eliseu que eu narrei na resposta anterior. E sempre fui muito cara-de-pau, eu chegava nos lugares e filmava, sem pedir autorização para ninguém e nem avisar que estava fazendo um filme. Durante os créditos de abertura, por exemplo, a Franciele caminha pelas ruas do centro de Carlos Barbosa e passa por várias pessoas que estavam ali sem saber o que a gente fazia, e você percebe claramente que elas olham curiosas, meio assustadas até, para a Franciele e para a câmera. Achei isso divertido porque de certa forma se encaixa na trama, é como se a Patricia Gennice atraísse todos os olhares da cidade enquanto caminha, entende? Outro exemplo de como a gente era sem-noção é que tinha uma cena em que dois rapazes vão até a casa de um traficante em Garibaldi, uma cidade vizinha. As cenas internas nós filmamos em Carlos Barbosa mesmo, na casa de um dos atores, mas precisávamos de uma externa e tinha que ser em Garibaldi. Eu não queria incomodar ninguém lá em plena madrugada, então simplesmente usamos um casarão onde funcionava um consultório médico, e não tinha cerca na frente. Cara, aquilo foi muito estúpido: a gente ficou um tempão caminhando e filmando na fachada, dos lados e até nos fundos do casarão, sem imaginar que algum vizinho poderia estranhar a movimentação e chamar a polícia. Felizmente, também nesse caso, tudo deu certo no final. Eu gosto muito de filmar em Carlos Barbosa porque conheço todo mundo, então não preciso perder muito tempo explicando que estou fazendo um filme e tal, e porque sei onde encontrar as coisas que preciso. Se estou escrevendo um roteiro e invento uma cena com uma cachoeira, por exemplo, já sei onde encontrar uma para ir filmar, não preciso perder tempo procurando. Na verdade, já faz algum tempo que ando meio decepcionado com a minha cidade, principalmente com os políticos de lá. E nunca me senti muito valorizado também, considerando que levo o nome de Carlos Barbosa para o país inteiro. Mas é aquela velha história de que santo de casa não faz milagre, então aprendi a viver com isso. E querer que políticos se preocupem com alguma coisa além do próprio salário também é pedir demais.

Baiestorf: “Patrícia Gennice” foi editado de VHS pra VHS. Fale como era realizado este penoso processo de edição onde, geralmente, os cortes nunca ficavam no lugar previsto.

Guerra: Pois é, Petter, você também passou por essa triste realidade e sabe como era complicado. Aliás, eu diria que uma das maiores declarações de amor pelo cinema era editar de um vídeo para o outro, porque era um trabalho muito fodido, então você precisava gostar MESMO daquilo para fazer. Só para dar uma idéia para essa gurizada de hoje: você tinha que ficar dando REC, stop e pause infinitas vezes de um videocassete para o outro e ainda torcer para as “emendas” ficarem no lugar certo – e é claro que quase nunca ficavam. Geralmente, eu editava uns dois minutinhos e daí parava e voltava a fita para assistir se tinha ficado mais ou menos ou muito ruim. Foda era quando dava algum problema justamente nos primeiros 10 ou 15 segundos, te obrigando a começar tudo de novo. Por isso, era comum deixar um intervalo de uns dois segundos no final dos takes, para poder fazer as emendas e “re-emendas” na hora de editar. Aí você acabava com um montão de cenas em que os “atores” ficam olhando um para o outro depois do diálogo, uma bosta! Outro problema dessa forma jurássica de edição é que você tinha que montar o filme na ordem linear. Ou seja, se na metade da montagem percebesse alguma cagada lá no começo do filme, já não dava mais para mexer. A não ser que reeditasse tudo de novo! E o problema da música? Você tinha que escolher se deixava o som original da gravação ou se colocava a música por cima, porque aí apagava o áudio gravado. Então as cenas com música tinham que ser cenas mudas! Era absurdo… Como eu disse, muito amor pelo cinema e muita vontade de fazer filmes, porque aposto que muita gente desistiria já nos primeiros cinco minutos. Em 2008, quando “Patricia Gennice” completou 10 anos, eu reeditei ele completamente no computador, dessa vez fazendo os cortes direitinho e colocando as músicas junto com o áudio original. Ficou bem legal, e eu ainda incluí umas cenas filmadas diretamente da tela do computador com aquele programa Google Earth, para mostrar ao espectador que não conhece Carlos Barbosa que o personagem estava indo para cada vez mais longe do local onde deveria estar. Essa versão reeditada eu coloquei no YouTube em seis partes, para quem tiver interesse em ver. Fui tão minucioso que até chamei alguns dos atores, dez anos depois, para gravar alguns diálogos novamente e redublar cenas que estavam ruins. Em outras, que não tinha conserto, coloquei legendas para que fosse possível entender o que estava sendo falado.

Baiestorf: Teu primeiro longa teve distribuição em VHS? Como foi a recepção do público?

Guerra: Eu não cheguei a distribuir o filme em vídeo, mas ele teve “lançamento comercial” num extinto bar da minha cidade, o Beco do Rock. Acontece que o pessoal mais “underground” da minha cidade ficou curioso ao saber que eu estava fazendo um filme, a coisa se espalhou de boca em boca e os donos do bar, que eram meus amigos, combinaram de estrear o filme lá. Para mim já era uma realização. Mas o lance engraçado foi o seguinte: quando a data da “estréia” foi marcada, eu ainda não tinha acabado o filme – e como ele estava sendo gravado na ordem linear dos acontecimentos, faltava justamente o final! Por armadilhas do destino, eu só fui gravar a cena final NA VÉSPERA DA ESTRÉIA, e aí fiquei praticamente 12 horas direto editando aquilo de um vídeo para o outro. Você pode até achar que estou sacaneando, mas é a mais pura verdade: eu terminei de editar “Patricia Gennice” uma hora antes da estréia oficial, e quando cheguei com a fita no Beco do Rock o lugar já estava lotado de gente para ver o filme, que por pouco não ficou pronto! Mas o legal é que foi um sucesso e a galera do bar até marcou uma segunda sessão para aproveitar os comentários positivos, e depois “Patricia Gennice” foi exibido em mais uns dois bares de Carlos Barbosa. O auge da “carreira comercial” foi quando passamos ele num bar em Bento Gonçalves, uma outra cidade vizinha. Eu jamais achei que o filme chegaria tão “longe”. Depois ele ainda foi exibido em algumas escolas, porque os professores achavam o máximo que alguém tivesse feito um filme em Carlos Barbosa e tentavam incentivar o potencial artístico dos alunos. Fora isso, “Patricia Gennice” nunca chegou às locadoras e nem foi vendido via correio. Em 2008, quando ele completou dez anos, conseguimos fazer uma nova exibição, dessa vez no cinema de Carlos Barbosa, numa sessão marcada pela nostalgia, e onde consegui reunir boa parte do elenco do filme para conversar com o público depois. Essa versão reeditada passou também no Fantaspoa, em Porto Alegre. Ainda pretendo lançar “Patricia Gennice” em DVD. O engraçado é que em 1998 mesmo nós gravamos um making-of do filme, com depoimentos dos atores e cenas de bastidores, e, como eu sou desorganizado, perdi esse negócio! Daria um belo extra de DVD, mas na época eu nunca imaginei que algum dia existiria DVD. Ou que eu conseguiria vender meus filmes para fora da minha cidade!

Felipe como o travesti Luana em "Patricia Gennice".

Baiestorf: Entre o lançamento de “Patrícia Gennice” (1998) e as filmagens do “Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-Feira 13 do Verão Passado” (2001), se passaram quase 3 anos. O que você fez neste período?

Guerra: Sonhei alto. Todo mundo ficava me falando sobre como “Patricia Gennice” era ótimo, sobre como eu devia fazer mais filmes, e eu comecei a sonhar alto demais e bolar projetos cada vez mais mirabolantes que nunca consegui filmar. O primeiro tapa na cara que levei foi o meu filme seguinte, que comecei a filmar em 1999 e se chamava “Escrito nas Estrelas”. Quando eu escrevi o roteiro desse negócio, resolvi colocar tudo aquilo que achava o máximo em outros filmes. Então a história tinha prostitutas lésbicas, mafiosos, um personagem drogado que tinha uma daquelas latas de maconha famosas nos anos 80, um padre que era matador de aluguel, poderes mentais, magia negra, tiroteios, perseguições de carro, cenas de tortura… Enfim, era um negócio impossível de filmar com os recursos que eu tinha, mas, como disse, na época eu estava sonhando alto e achava que podia fazer qualquer coisa. Chegamos ao cúmulo de construir cenários para o filme, para as duas ou três únicas cenas filmadas. Um desses cenários era o estúdio de um desenhista interpretado pelo Eliseu Demari, e lembro que roubamos uma mesa de desenho gigante do jornal onde eu trabalhava para colocar no cenário. A princípio, íamos filmar tudo que precisava num final de semana e devolver a mesa antes que alguém desse pela falta, mas aquele trambolho acabou ficando no “cenário” (um quarto da casa do Fabiano Taufer) quase meio ano, e ninguém percebeu que ela tinha desaparecido lá da redação do jornal, uma coisa de louco! À medida que fomos filmando, percebemos que era um projeto muito ambicioso e desistimos depois de um mês de gravações. Como eu disse, ficaram essas duas ou três cenas gravadas, e o mais irônico é que acho que elas estão entre as melhores coisas que já filmei na vida: tudo era planejadinho com cuidado, tinha um montão de planos de detalhe, uma produção absurda que eu nunca mais fiz igual, talvez pelo trauma de ter sido obrigado a desistir desse projeto aí. Outros dois roteiros que escrevi em 1999, e que nunca foram filmados, eram “Puteiro Sangrento” e “Amor Atemporal”. O primeiro é um terror podreira inspirado em “Um Drink no Inferno”, sobre um grupo de amigos que vai fazer a despedida de solteiro de um deles, mas acabam contratando três putas que são vampiras. Esse roteiro é muito engraçado, inclusive um tempo atrás peguei para ler e fiquei rindo sozinho. Tem uma cena em que o herói queima o rosto de uma das vampiras com uma fatia de pizza alho e óleo. A trama toda se passa num apartamento, e seria relativamente fácil de filmar. Inclusive lembro que só não filmamos “Puteiro Sangrento” porque “Um Drink no Inferno” ainda estava muito em evidência, e também porque ele exigia meninas desinibidas para fazer cenas de nudez e sexo simulado, mas eu nunca consegui meninas dispostas a isso em Carlos Barbosa, ainda mais de graça. Até pensei em contratar garotas de programa, mas fiquei com medo de encarecer demais a produção, ou de que as putas fossem encher o saco durante as filmagens ou depois. Mas é um filme que ainda quero fazer. Não quer produzir, Petter? É a tua cara! “Amor Atemporal” é um caso mais engraçado: trata-se da história de um rapaz que inventa uma máquina do tempo para voltar 10 anos no tempo e recuperar o grande amor da sua vida, que ele perdeu por causa de uma bobagem (leia-se “outra mulher”) numa noite de ano novo. Para dar a noção de “passado” e “presente”, eu ia fazer o seguinte: todas as cenas no “passado” eu iria filmar em 1999, e então esperaríamos uns quatro ou cinco anos para filmar as cenas do “presente”, pois a paisagem urbana mudaria substancialmente, com a construção de novos edifícios, e eu achava que isso bastaria para passar a idéia de que o protagonista estava voltando no tempo. Só que esse intervalo de anos iria me dar um trabalhão dos diabos, as cenas do “passado” teriam que ser muito bem planejadas para fechar com o que gravaríamos anos depois, então achei melhor cancelar o projeto e deixá-lo para mais adiante, quando eu teria mais experiência e tempo para fazer algo minimamente organizado. E então o que aconteceu: neste ano de 2011, o Claúdio Torres lançou o filme “O Homem do Futuro”, com o Wagner Moura, cuja história é muito parecida com aquela que eu não tive recursos para filmar! Inclusive meu irmão Rodrigo, que seria o protagonista do filme lá em 1999, viu o trailer de “O Homem no Futuro” na TV e na hora me telefonou e disse: “Tu viu que fizeram o nosso filme?”. É nesses momentos que eu fico meio frustrado por não ter dinheiro nem estrutura para tirar certos projetos do papel, como esse.

Baiestorf: Como surgiu a idéia para escrever o roteiro de “Entrei em Pânico…”, uma ótima sátira aos filmes de horror adolescentes que dominaram o cinemão nos anos de 1990?

Guerra: Bem, depois de todos esses projetos que não saíram do papel, eu quase abandonei o cinema independente. Afinal, continuava trabalhando como jornalista e fazia faculdade à noite, namorava… Então o tempo era cada vez mais escasso. E estávamos em plena moda daqueles filmes de terror bundões feitos na esteira do sucesso de “Pânico”, tipo “Eu Sei o que Vocês Fizeram no Verão Passado” e “Lenda Urbana”. A garotada amava esses filmes, então os grandes estúdios continuavam fazendo mais e mais, e era um pior que o outro. Eu cresci vendo slasher movies de verdade, tipo “Sexta-feira 13”, “Halloween” e “O Pássaro Sangrento”, e tinha pena da molecada que assistia “Pânico” e achava aquilo o máximo. Ora, os slashers dos anos 90/2000 nem mesmo eram sangrentos como aqueles do passado. Mas era a modinha, então nas férias do começo do ano, em 2001, eu e o Eliseu assistimos todos os filmes da série “Sexta-feira 13” (que até então eram nove), e ficávamos rindo das bobagens, dos clichês, de como era sempre a mesma história repetida inúmeras vezes, de como o Jason nunca morria e sempre pulava para dar aquele último susto no espectador, enfim, todas essas bobagens tradicionais dos slasher movies. E foi aí que comecei a ter a idéia de escrever “Entrei em Pânico…”. Originalmente, eu queria fazer um slasher sério na linha dos primeiros “Sexta-feira 13” e “Halloween”, mas sabia que, com os poucos recursos que tinha, ninguém iria levar a sério, por isso resolvi avacalhar de vez e fazer uma comédia que brincasse com os clichês do gênero. A única coisa que me propus desde o começo era que, mesmo engraçado, o filme teria mortes bem violentas e exageradas, justamente para contrastar com esses slashers mequetrefes tipo “Pânico”, em que a câmera desviava da cena de morte para não chocar a garotada. Criei esse título escalafobético como parte da brincadeira, mas muita gente não entendeu e acha que é uma homenagem a “Pânico” e suas imitações, quando na realidade é bem o contrário. Tanto que o assassino usa a máscara do matador do filme “Pânico”, mas o personagem por baixo da máscara é um completo imbecil. E eu aproveitei para brincar com todas essas coisas que achava engraçadas nos slasher movies em geral. Sabe aquele clichê do assassino parecer morto e de repente pular para agarrar as vítimas? Pois o assassino de “Entrei em Pânico…” ressuscita tantas vezes que começa a ficar chato até, e com isso eu quis mostrar como era chato aquele negócio de o Jason sempre ressuscitar estupidamente no começo de um novo “Sexta-feira 13”. E eu estendi o poder de ressurreição ao personagem-protagonista, interpretado pelo Eliseu Demari, que sempre é mortalmente ferido pelo assassino e mesmo assim volta umas três ou quatro vezes para salvar a mocinha Niandra Sartori do perigo. Por causa disso, o Eliseu foi apelidado de “Wolverine barbosense”. Outras coisas que eu brinquei foi com o lance das drogas, como disse antes. Todos os personagens são cachaceiros ou maconheiros, todos pensam em sexo, para não ter aquele clichezinho da virgem que sempre sobrevive no final. E eu ainda inventei uma reviravolta estilo “Psicose”, pois o protagonista do filme até então, interpretado pelo meu irmão Rodrigo, é morto na metade do filme, transformando o figurante Eliseu em verdadeiro protagonista. Enfim, foi um filme bem divertido de fazer porque eu sempre quis brincar com esses clichês todos, e ao mesmo tempo tentar fazer algo diferente, o chamado “contra-clichê”. Você pega um slasher tipo “Pânico” e já sabe desde o começo quem vai morrer e quem vai sobreviver. É a coisa que mais odeio nos roteiros do gênero, porque eles nem ao menos conseguem ousar um pouquinho na criação dos personagens. Por exemplo, por que a garota que sobrevive no final não pode ser a putinha drogada da história, ao invés de sempre a virgenzinha romântica?

Baiestorf: Você e sua equipe ficaram mais de 8 meses filmando “Entrei em Pânico…”. Essa demora nas filmagens foram problemas? Fale sobre as filmagens.

Guerra: Àquela altura todo mundo trabalhava e estudava, inclusive eu, então era relativamente difícil juntar a equipe para filmar. Se você comparar “Entrei em Pânico…” com meus filmes de antes, os atores já são quase todos diferentes e pertencem a uma geração mais jovem, porque meus amigos começaram a ficar velhos e não queriam mais saber de cinema independente, partiram para fazer suas coisas e me deixaram praticamente sozinho. Então muitos dos atores desse filme são amigos do meu irmão mais novo, Rodrigo, que começaram a fazer parte da minha equipe fixa a partir de então. Além disso, eu fiz algo que sempre digo que não vou mais fazer e sempre acabo repetindo, que é escrever cenas com muitos personagens juntos no mesmo lugar, e aí eu fico dependendo da disponibilidade de todos para filmar. Era bem comum eu combinar com quatro pessoas e a quinta cancelar em cima da hora por causa de outro compromisso, e por isso as filmagens demoraram tanto – e mesmo assim, perto do rolo que foram os meus filmes posteriores, até que não demorou tanto. Também foi uma produção bem barata: gastei R$ 250,00 nas filmagens, sem pagar nenhum dos atores, gastando apenas nas fitas e nos “efeitos especiais”. As cenas de morte me tomaram um tempão, não só na execução, mas principalmente no planejamento. Na época, a internet ainda estava engatinhando. Se hoje basta você entrar no Google e pesquisa por “cabeça decepada” para aprender tintim por tintim como fazer sua própria cabeça decepada caseira, naqueles tempos tudo tinha que ser improvisado. Nem receitas de sangue falso tinha na internet, então eu fui testando fórmulas diferentes, e cada morte do filme tem um sangue de tonalidade diferente, mais claro ou mais escuro. Muita coisa eu fiz no improviso. A morte em que um rapaz (Tomás Zilli) tem uma torneirinha enfiada no pescoço, por exemplo, eu escrevi mas nem imaginava como fazer. Quando chegou a hora de filmar, eu tentei colar a torneirinha no pescoço do “ator” com cola de silicone, mas não grudava. No desespero, e com o tempo passando (porque alguém sempre tinha um compromisso e me obrigava a fazer as coisas na corrida), resolvi deitar o Tomás no chão e colocar a torneirinha de pé no pescoço dele, aí virei a câmera para parecer que ele estava de pé, e ficou razoavelmente bom – pelo menos ninguém nunca percebeu a malandragem. E tinha uma cena em que um sujeito (Mathias Gusso) perdia as tripas. Eu pensei em mil maneiras de fazer a tripa, de corda pintada de vermelho até massa, mas nenhuma ficou legal. Resolvi usar tripas de verdade. Eu sabia que um agricultor ia matar um porco na véspera e comprei as tripas do bicho por mixaria. Quando apareci com aquele negócio na hora de filmar, o Mathias surtou, não queria colocar as tripas de porco por cima da roupa. No fim, perdi a discussão e tive que colocar a tripa no chão, do lado do “cadáver”, e ficou uma das cenas mais ridículas que eu já filmei: aquele cara caído com a camisa rasgada e as tripas jogadas do lado. Porque ele estragou essa cena, que podia ter sido bem legal do jeito que eu imaginava, fiquei de birra e nunca mais chamei ele para os meus outros filmes, e isso que o Mathias tinha aparecido em todos eles até então, desde o pioneiro “A Noite da Punheta Assassina”. Mas hoje ele é um homem casado e pai de família, então não iria mais se sujeitar às minhas loucuras de qualquer jeito. Outra cena complicada foi aquela em que um rapaz é esquartejado com serra elétrica. Quando chegou a noite da filmagem, eu ainda não tinha o cara para fazer a vítima, e quase eliminei o personagem da cena. Quando estávamos a caminho do sítio do meu pai, onde iríamos filmar, encontrei um amigo, o Andrius Berté, e pedi na hora se ele gostaria de participar, com a roupa do corpo mesmo. Ele aceitou sem saber o que iria fazer. Tínhamos uma motosserra real, e foi uma sorte que ninguém se machucou de verdade. O cara que interpretava o assassino (Fábio Prina) não enxergava direito quando estava com a máscara do matador, e a lâmina da serra ligada chega muito perto do braço do Andrius. Quando você vê o desespero dele na cena, aquilo é real, não é interpretação: o Prina quase serrou MESMO o braço do cara! E mais tarde, no final da cena de morte, o Andrius ainda tinha sangue esguichado por todo o seu rosto. Nós enchemos dois tubos de catchup com sangue de groselha para disparar jatos na cara dele. O problema é que ele estava com a boca tampada com fita (porque o personagem estava amordaçado), e o sangue falso entrou todo nas suas narinas, então ele não conseguia respirar, e na adrenalina da filmagem ninguém percebeu, até que o cara começou a se contorcer desesperado! Por essas e por outras, é um verdadeiro milagre que a gente tenha conseguido terminar “Entrei em Pânico…” sem matar ou machucar alguém de verdade, e desde então eu me preocupo muito mais com a segurança do pessoal que faz essas loucuras comigo.

Baiestorf: Ele foi lançado em cinema da tua cidade. Conte como funciona essa sua parceria com o cinema. Quantas sessões, em média, cada filme teu tem no cinema?

Guerra: Quando o pessoal da minha cidade ficou sabendo que eu estava fazendo um filme novo, e que era de “terror”, foi uma loucura. Saiu reportagem no jornal da cidade, e todo mundo queria assistir para ver como era um filme de terror filmado em Carlos Barbosa! Então dessa vez eu recebi o convite do pessoal do cinema de lá – é uma sala particular pequena com 130 lugares, quase um cineclube. Iam me dar metade da bilheteria, um acordo que mantenho com eles até hoje. “Entrei em Pânico…” iria estrear em 23 de dezembro de 2001, e eu novamente repeti aquele péssimo hábito de acabar de editar na véspera. Quando cheguei no cinema, uma hora antes do horário marcado para exibição, havia uma fila quilométrica para entrar. Tanto que era para ser uma sessão única, mas o pessoal do cinema teve que exibir o filme uma segunda vez naquela mesma noite por causa da quantidade de público. Foram duas sessões superlotadas, com mais de 300 pessoas no total.

Baiestorf: E como foi a reação do público? Depois do cinema ele foi lançado em VHS/DVD, lembro que ele fez relativo sucesso entre os cinéfilos que cultuavam produções independentes, chegando até a ser resenhado na extinta sessão “Vídeo Caseiro do Mês” da revista SET.

Guerra: O público foi ao delírio, era um festival de gargalhadas e gritinhos naquele cinema como eu nunca tinha visto igual, acredito que por causa das expressões populares que os personagens falavam, e por ser estrelado por jovens da cidade. E isso que “Entrei em Pânico…” originalmente era longo pra cacete, tinha duas horas de duração, por causa da maldita edição em dois vídeos. Como expliquei lá atrás, depois que você editava o começo, não podia mais voltar para mudar. E o começo do filme tinha ficado muito longo, mas eu só percebi isso depois que já tinha editado uns 45 minutos. Aí tive que acelerar todo o resto, mas mesmo assim ficou com duas horas. Por causa disso, é o meu filme que eu menos gosto. Acho muito chato e enrolado. Em 2010 eu reeditei no computador e cortei o tempo de duração para 1h12min, e mesmo assim acho meio xarope. Mas, como eu dizia, “Entrei em Pânico…” foi um sucesso no lançamento, e me obrigou a fazer fitas para colocar nas videolocadoras da minha cidade, de tanto que o pessoal pedia. Inicialmente, eram oito fitas circulando, quatro em cada locadora, e não davam conta da procura. Comecei a pensar: “Hmmm, acho que dessa vez eu acertei”, e resolvi divulgar o filme fora de Carlos Barbosa também. O que eu fiz: gravei umas 50 cópias em VHS e mandei por correio para tudo que era canal de TV, jornal, revista e site de cinema do Brasil. A maioria nem deu bola, mas alguns sites começaram a falar sobre o filme e assim a coisa foi se espalhando. Um site chamado Brócolis VHS, de uns caras que também faziam filmes independentes, postou um trechinho de “Entrei em Pânico…”, e a partir disso surgiram dezenas de compradores interessados no meu filme (era justamente a cena da motosserra). Depois o site Boca do Inferno publicou uma longa resenha, e aí o filme estourou. Comecei a vender fitas a 20 reais, e em poucos meses tinha feito mais de 100 cópias, um negócio inacreditável para uma produção caseira e sem maiores pretensões. E então a revista SET começou uma nova sessão intitulada “Vídeo Caseiro do Mês” e divulgou “Entrei em Pânico…” na edição de novembro de 2002, com uma crítica positiva, dizendo que era melhor que muita coisa que o Casseta & Planeta fazia. Aí sim choveram compradores. Vendi muita fita, certamente foi meu filme que me deu mais grana, e também ficou bastante conhecido por causa dessas diversas resenhas. Até costumo dizer que é um dos filmes independentes brasileiros mais conhecidos e menos vistos, ao contrário, por exemplo, do teu “O Monstro Legume do Espaço”, que passou numa caralhada de festivais. Todo mundo sabe que “Entrei em Pânico…” existe, mas pouca gente viu, até porque milagrosamente nunca vazou para download. Quando o filme saiu na SET, lá em 2002, eu achei que era o máximo de notoriedade que alcançaríamos, e já estava nas nuvens com a repercussão, quando apareceu o primeiro convite para dar uma entrevista na TV. Quem me contatou foi o pessoal da RBS, a sucursal da Globo no Rio Grande do Sul, para uma reportagem que foi exibida num programa exclusivamente gaúcho, o Teledomingo, exibido logo depois do Fantástico. A garotada que tinha aparecido no filme ficou super-contente de dar entrevistas para a TV, uma experiência totalmente nova. Quando a matéria foi exibida, parou a cidade. Mas o melhor veio depois: o repórter que fez a entrevista, Cristiano Dalcin, ligou avisando que tinha mandando a matéria para a Globo, e que ela seria exibida no Fantástico. Aí foi a consagração: eles exibiram a mesma matéria, mas com alguns cortes e a apresentação do Toni Tornado (que na época fazia uma novela de vampiros na Globo) e narração do falecido Francisco Milani. Passou no Fantástico em dezembro daquele ano, e, sem brincadeira, naquela noite parecia feriado nacional em Carlos Barbosa. Era a molecada da cidade chegando ao horário nobre da Globo! “Entrei em Pânico…” também ultrapassou as fronteiras do Brasil quando um espanhol chamado Diego San José me mandou um e-mail pedindo uma cópia do filme para resenhar numa revista espanhola de cinema fantástico chamada “Fabulando Espantos”. O filme não tinha legendas em português, nem tinha como fazer isso em VHS, mas mandei mesmo assim e achei que o cara nunca escreveria nada. Um tempo depois, chega pelo correio meu exemplar da revista com uma crítica negativa ao filme, mas mesmo assim fiquei feliz porque era uma resenha de página inteira de um filme de R$ 250,00, filmado em Carlos Barbosa, numa revista de cinema da Espanha. Isso sim que é globalização!

Baiestorf: Foi graças ao sucesso de “Entrei em Pânico…” que você foi convidado a fazer o curta “Mistério na Colônia” (2003). Conte como isso aconteceu?

Guerra: Foi isso mesmo. A produção do Caldeirão do Huck viu a matéria no Fantástico e resolveu aproveitar que o Luciano Huck estaria fazendo gravações no Festival de Cinema de Gramado para promover o nosso encontro. A idéia era que eu filmasse um curta-metragem em apenas um dia – na verdade uma tarde, porque ele só apareceu no começo da tarde e quando anoiteceu se mandou –, e editasse “do meu jeito”, no esquema dois videocassetes, para exibição no dia seguinte numa barraquinha em frente ao Palácio dos Festivais, onde é realizado o Festival de Gramado. Eles iam acompanhar todo o processo de pré-produção, filmagem, edição e, depois, a exibição. É claro que eu topei, mesmo sendo uma loucura. Pedi três dias de liberação do trabalho e combinei com uns conhecidos meus para fazerem parte do elenco: meu irmão Rodrigo, meus amigos Álvaro Guerra e Enio Martin Biancho e minha avó Oldina do Monte (que tinha sido figurante no filme “O Quatrilho”, do Fábio Barreto). Como não sabia exatamente o que eles estavam esperando, escrevi três roteiros diferentes e mandei para a produção do programa: um era uma aventura estilo James Bond, outro um terror propositalmente avacalhado, e o terceiro um terror um pouquinho mais sério. E o irônico é que eles escolheram esse último, mas me pediram para fazer avacalhado! Depois, conversando com o Huck, fiquei sabendo que ele nem chegou a ler os três roteiros, foi o pessoal da produção quem escolheu “Mistério na Colônia” para a gente filmar. A história é sobre um médico carioca (Huck, é claro) que vai até uma pequena cidade do interior gaúcho e descobre, da pior maneira possível, que todos os seus habitantes são canibais – uma homenagem a “2000 Maniacs”, do Herschell Gordon Lewis.

Baiestorf: Como foi filmar, em 24 horas, com o Luciano Huck? Repetiria essa experiência se rolasse novo convite?

Guerra: Foi muito engraçado, porque eu desempenhava todas as funções sozinho – direção, câmera, fotografia, efeitos especiais –, enquanto eles tinham uma equipe gigantesca ao meu redor para registrar tudo, com produtores, câmera, boom, iluminação… Na verdade eu tinha muito medo que a presença do Luciano Huck fosse provocar alvoroço e eu não conseguisse trabalhar direito, mas, apesar de ser uma cidade pequena, ninguém ficou sabendo da presença dele em Carlos Barbosa, tanto que o próprio Huck estranhou a falta de assédio. Teve uma cena que nós filmamos numa rua no centro da cidade, na frente da casa da minha avó, mas bem no horário comercial, então havia pouquíssima gente na rua. E quem passava e via nem acreditava que aquele era o Luciano Huck. Pouca gente parou para pedir fotos e autógrafos, inclusive às vezes passavam uns conhecidos meus e ficavam com vergonha de chegar perto, aí eu chamava e apresentava ao Huck. Outro detalhe curioso foi que a maior parte da trama se passa numa propriedade rural bem no interiorzão de Carlos Barbosa, e lá o pessoal da Globo ficou literalmente escondido, porque os donos da casa nem mesmo sabiam quem era o tal de Luciano Huck! Com certeza eu repetiria essa experiência, mas ia me organizar melhor, porque as coisas foram bem corridas devido à minha tradicional falta de organização. Lembro também que, na época, muita gente não gostou da união entre “cinema independente” e Luciano Huck, mas eu não vi problema algum nisso. Na época das gravações, alguém me mandou um e-mail anônimo dizendo que eu era um vendido, que o cinema trash era mais do que fazer palhaçada com apresentadores globais, que devia ser transgressor. Eu já achei o contrário: não é justamente transgressor você colocar uma equipe da Globo para acompanhar e participar de uma filmagem de cinema independente? E ainda dar um banho de sangue falso num apresentador global? Mas cada um com suas idéias.

Baiestorf: Conte algumas histórias de bastidores do curta “Mistério na Colônia”. Sei que existem várias histórias envolvendo chiliques do Luciano Huck e o nervosismo de sua vó e atriz, dona Oldina.

Guerra: Na verdade o Luciano Huck já chegou disposto a atuar de forma avacalhada, e eu não consegui em momento algum “dirigi-lo”, apenas dizia o que era para fazer e ele fazia do jeitão dele. Eu não me importei porque esse curta era mais dele do que meu, o pessoal do Caldeirão montou o circo todo e ele era o astro do show que queria brilhar no picadeiro. Então liguei o “foda-se” e encarei não como se estivesse fazendo um filme meu, mas sim um trabalho de encomenda. E o Huck entrou no espírito do negócio, inclusive tomando um banho de sangue falso sem reclamar. A única reclamação que eu tenho é que ele não quis filmar a conclusão do curta como estava no roteiro. No final, o personagem dele era agarrado pelos moradores da cidadezinha e esquartejado para virar churrasco. Na hora de filmar isso, ele alegou que já era tarde, que estava cansado, porque a filmagem foi na ordem linear dos acontecimentos, e improvisou uma conclusão “sem sangue” que eu não gostei. Ele simplesmente interrompia a filmagem e fazia uma daquelas piadinhas sobre a viadagem dos gaúchos, como o Casseta & Planeta adorava fazer na época, então nem ao menos era algo original. Foi uma coisa que eu só consertei quando reeditei o curta no computador, anos depois. Em relação à minha avó, era a primeira vez que ela trabalhava comigo depois de ter encarado uma equipe profissional nas filmagens de “O Quatrilho”. E ainda por cima iríamos filmar na casa dela e era um papel com diálogos, então ela ficou super-nervosa. Na montagem original do curta, aquela de 2003, ela tinha apenas uma fala numa cena de almoço entre os personagens, mas não conseguiu decorar por causa do nervosismo. Deixei ela ficar com a folha do roteiro no colo, por baixo da mesa, para ir memorizando o diálogo, mas quando eu estava filmando ela ficava olhando para baixo para ler, como se fosse uma “cola”, e pensando que não ia dar para perceber na filmagem! Depois de três ou quatro repetições, ela finalmente conseguiu dizer seu diálogo e a gravação seguiu adiante.

Baiestorf: Depois que “Mistério na Colônia” foi exibido na TV você optou por deixá-lo esquecido, até reeditá-lo em 2006 com a “versão do diretor”. Como foi isso?

Guerra: “Mistério na Colônia” nunca foi exibido na íntegra na TV. O que eles passaram foi uma matéria de 20 minutos falando sobre o cinema independente de Carlos Barbosa e mostrando os bastidores da filmagem e da exibição em Gramado, com algumas cenas do curta inseridas aqui e ali para mostrar como tinha ficado. E eu deixei o filme esquecido justamente porque, como eu disse antes, considerava um trabalho de encomenda, não um filme meu, e logo em seguida comecei a gravar “Canibais & Solidão”, o que me tomou bastante tempo. Em 2006, depois do lançamento de “Canibais & Solidão”, eu estava fuçando nas fitas velhas e redescobri “Mistério na Colônia”, que acho que nunca tinha sido exibido em lugar algum, nem mesmo na minha cidade. Minha primeira idéia era aproveitar o ineditismo e transformar aquele material num longa, usando algumas das cenas com o Luciano Huck como se fossem flashbacks, e contando a história do irmão do seu personagem, que iria até a cidadezinha onde ele desapareceu para investigar o ocorrido. Mas fiquei sem saco, mesmo tendo escrito um argumento para o longa, e resolvi simplesmente reeditar o curta para ficar um pouco mais próximo do que eu tinha escrito em 2003. A primeira coisa que fiz foi filmar umas cenas extras com a minha avó, uns diálogos para tapar uns buracos do roteiro, e assim ela ganhou mais falas do que a única que originalmente tinha. Graças ao milagre da edição, ninguém percebe que estes trechos foram filmados três anos depois. E eu pensei em refilmar a cena final com alguém vestido igual ao Huck sendo massacrado pelos habitantes da cidade, mas pensei que seria um trabalhão para algo que não me daria retorno algum. Então o que eu fiz: comecei a fuçar nas fitinhas que tinha gravado desde 1998 até então. Porque na época eu tinha um hábito esquisito de sempre levar a filmadora comigo onde quer que fosse, para filmar cenas da natureza, pôr-do-sol, riachos e coisas assim, pensando em algum dia usar essas imagens em futuros filmes. Entre essas gravações de arquivo, eu encontrei cenas da chegada do trem na minha cidade, e resolvi usar essas imagens durante os créditos iniciais, como se o personagem do Huck estivesse chegando de trem. Depois, achei umas cenas de uma festa junina realizada no interior, mostrando uns caras ateando fogo num monte de palha e fazendo uma fogueira monumental. Aí me deu um estalo: “O Homem de Palha”. Três anos depois das filmagens originais, eu gravei um dos atores, o Enio Martin Biancho, falando a frase “Agora você é nosso convidado para o churrasco”, dublei isso num dos trechos em que o Huck está sendo agarrado pela multidão e cortei direto para a galera tocando fogo na palha. Então parece que eles estão incendiando o personagem do Luciano Huck naquele fogaréu. E para não deixar nenhuma dúvida, eu fiz um take completamente doido: filmei diretamente a tela do computador, passando uma cena em que o Huck estava esperneando, e taquei fogo numa folha de papel bem na frente do monitor, então gravei a imagem dele gritando através das chamas, para parecer que estava queimando no meio da fogueira! Coloquei o curta no YouTube para quem quiser ver, e, considerando a forma como isso foi filmado, com uma folha pegando fogo na frente da tela do computador, até que ficou bom demais! E finalmente eu tive a conclusão que eu queria originalmente: matei o Luciano Huck!

Baiestorf: Nesta época, do “Entrei em Pânico…” (2001) em diante, percebemos que a tua pequena equipe se manteve junta e unida. Fale um pouco sobre o pessoal que te acompanha há mais de 10 anos na Necrófilos Produções:

Guerra: Em primeiro lugar, acho legal esclarecer que esse pessoal que aparece nos meus filmes não tem nenhuma formação em artes cênicas, nem nada sequer parecido. São amadores apaixonados por cinema, como eu, que tentam dar o melhor de si na frente da câmera. Por isso eu fico puto quando leio “críticas” sobre a atuação nos meus filmes. Eu não me importo que falem mal de mim, podem me xingar o quanto quiserem, falar que eu não entendo porra nenhuma de cinema, etc e tal. Mas não critiquem meus atores, até porque eles não são atores, são pessoas comuns quebrando um galho para mim, e de graça. E eu mantenho muitos deles no elenco dos meus filmes justamente por essa fidelidade, mesmo sabendo que não são nenhum Laurence Olivier. O Eliseu Demari, por exemplo, também é produtor dos filmes. Ele está trabalhando comigo desde “Patricia Gennice”, em 1998, mas já dava pitaco nos curtas que fiz antes. Geralmente é a primeira pessoa para quem eu mostro meus roteiros e sempre dá dicas, ajuda na execução, faz as artes dos pôsteres e capinhas dos DVDs. Se tudo der certo, estamos com um projeto para lançá-lo como roteirista e diretor agora no final do ano, pois já passou da hora de ele começar com seus próprios trabalhos. Meus irmãos Rodrigo e Diego também aparecem desde o começo, desde “Ponto de Ebulição”, e esse último deu uma parada agora porque já é pai de família. O Rodrigo entrou como co-produtor com “Entrei em Pânico Parte 2”, e foi o cara que mais me ajudou a tirar esse projeto do papel, inclusive dando uma mão nos efeitos especiais e aparecendo como dublê do assassino. Minha avó está no elenco fixo dos meus filmes desde “Mistério na Colônia” e vive pedindo para que eu faça novos filmes com ela. Gosto dela porque, apesar de estar com 80 anos, ela topa qualquer negócio. Se eu chegar e disser “Vó, na próxima cena eu vou tocar fogo na senhora”, ela mesma pega a gasolina e se joga em cima. A Niandra Sartori tem feito os principais papéis femininos dos meus filmes desde “Entrei em Pânico”, em 2001. Além de bonitona, ela convence como “scream queen”, e topou fazer a Parte 2 mesmo trabalhando como médica e sem muito tempo para dedicar ao cinema independente. Outro que tem participado de quase todos os filmes é meu amigo Leandro Facchini, que tem um jeito muito divertido de canastrão e voz de radialista. E ele realmente é um bom ator, consegue fazer personagens diferentes de um filme para o outro, oscilando entre o conquistador cara-de-pau e o sujeito tímido e introvertido. Além disso, nos bastidores eu sempre tive a ajuda do meu pai Quito e da minha mãe Neusa. Meu pai gostou tanto de “Canibais & Solidão” que colaborou com a grana para eu terminar “Entrei em Pânico Parte 2” quando minhas finanças foram literalmente à zero. Minha mãe é uma contra-regra maravilhosa, porque limpa toda a sujeira que fazemos quando enchemos a casa de sangue falso, pois a minha casa é geralmente o set de filmagem das minhas produções. Então, o que eu procuro fazer é sempre reaproveitar esse pessoal dedicado e fiel, que ajuda, que não incomoda, que dá o melhor de si sem ganhar nada. E eu tento me livrar dos malas que nunca podem filmar, que ficam enchendo o saco durante a filmagem, que ficam achando defeito em tudo ou vem com aquele papinho de “Ah, isso eu não vou fazer”. Esses caras podem até fazer um filme comigo, mas depois não chamo mais.

Baiestorf: Quando você começou a pensar no roteiro do longa “Canibais & Solidão” (2006), na minha opinião, um de seus melhores filmes? D’onde surgiu a idéia?

Guerra: “Canibais & Solidão” também é o meu filme que eu mais gosto, e lamento que ele não seja tão conhecido quanto outras obras que gosto menos, como o “Entrei em Pânico”. A idéia por trás do projeto é meio maluca: eu sempre fui fã dessas comédias adolescentes tipo “Porky’s” e “O Último Americano Virgem”, e lá pelos anos 2000 estava havendo um revival desse tipo de filme com a série “American Pie”. Alguns anos antes de “Canibais & Solidão”, quando eu estava filmando o primeiro “Entrei em Pânico”, comecei a pensar num roteiro de comédia adolescente que começava com um cara só de cueca em cima do telhado de uma casa, e a partir disso a história se desenvolveria em flashback mostrando como o sujeito foi parar ali e porquê. Mas acabei deixando isso de lado. E eu sempre fui muito fã daqueles filmes italianos sobre canibalismo, tipo “Cannibal Holocaust” e “Cannibal Ferox”. Depois de “Entrei em Pânico”, queria seguir nessa linha de sangueira e fazer uma aventura homenageando essas obras italianas, e que se chamaria “O Tesouro dos Canibais”. O argumento era sobre uma expedição que vai à Floresta Amazônia – na verdade, um matagal no sítio da minha família – em busca de um tesouro levado por um avião que caiu, e acaba tendo que lutar contra uma tribo de canibais. Eu tinha visto uns filmes do Jess Franco sobre o tema (“Manhunt – O Sequestro” e “White Cannibal Queen”), em que ele era tão cara-de-pau que colocava qualquer um como canibal, tinha até uns índios de costeleta e topetes tipo Elvis Presley. Por isso, achei que poderia fazer algo igual e ficaria pelo menos divertido. Mas quando vi meu irmão Rodrigo vestido como canibal, com roupa em farrapos e uma peruca de cabelos longos, eu quase me mijei de tanto rir, e cheguei à conclusão que jamais conseguiria fazer algo minimamente sério com esse tipo de “canibal”. Aí resgatei a idéia da comédia adolescente e simplesmente misturei as duas coisas: o protagonista seria um jovem tímido que não conseguia se relacionar com as mulheres, porque tinha visto muitos filmes sobre canibalismo e começava a manifestar tendências de comê-las literalmente. Sei lá, na minha cabeça pelo menos parecia uma boa idéia. Só que enquanto fomos filmando, resolvi diminuir consideravelmente a parte sobre canibalismo, até ficar apenas uma piada interna, dando mais destaque às confusões relacionadas aos jovens virgens que tentam perder a virgindade. Mesmo assim, acho que funcionou como homenagem aos filmes sobre canibalismo, eles são citados várias vezes no filme, e o grande objetivo do protagonista é conseguir uma fita do “Cannibal Holocaust” para completar sua coleção. No roteiro tinha várias outras cenas relacionadas ao canibalismo dele, mas por vários problemas que tive, e porque o tom do filme ia ficar diferente do que eu queria, acabei nem filmando, preferindo transformar “Canibais & Solidão” em comédia romântica. E não me arrependo dessas mudanças, eu acho que “Canibais & Solidão” ficou bem legal como está. E, como já disse, é o meu filme que eu mais gosto. Inclusive me dediquei tanto a ele que resolvi fazer uma ponta em que apareço pelado, mostrando a bunda. Isso aconteceu porque os atores principais do filme (Rodrigo, Eliseu e Fábio Prina) reclamaram que passavam por muitas situações constrangedoras ao longo da trama, inclusive aparecendo só de cueca. Para que aquilo não virasse um motim e ninguém desistisse de fazer, disse que, para compensá-los, eu apareceria pelado no filme, e aí ninguém ia lembrar das cenas constrangedoras deles. A filmagem dessa cena foi hilária, porque estávamos em cima do telhado da minha casa em três pessoas, eu peladão e enrolado numa toalha e o Rodrigo e o Fábio vestindo baby-doll como parte da cena. Eu filmava os dois e, quando precisava aparecer, um deles segurava a câmera e eu tirava a toalha. O problema é que, alguns metros em cima da minha casa – que é numa descia de morro –, tem um prédio residencial. Como filmamos aquilo num sábado à tarde, havia um montão de gente desocupada em casa para ficar nas sacadas e janelas acompanhando a filmagens e conseqüentemente olhando para a minha bunda quando eu estava peladão. Em compensação, depois disso, estou tão queimado na cidade que posso fazer qualquer coisa em Carlos Barbosa e os cidadãos de lá nem vão mais se importar. Se eu baixar as calças no centro da cidade, por exemplo, é provável que o pessoal nem se escandalize, mas apenas reclame: “Ah não, a bunda do Felipe de novo?”.

Baiestorf: “Canibais & Solidão” levou 3 anos para ser concluído. Por quê? E qual foi o custo final dele?

Guerra: Tudo que pode acontecer de ruim nas gravações de um filme independente aconteceu nas filmagens de “Canibais & Solidão”. O irônico é que quando eu comecei as gravações, em 2003, pensei no filme como uma comédia rápida para terminar em no máximo dois meses e depois me dedicar a algum outro projeto! O primeiro problema foi a desistência de um dos atores principais, que interpretava o personagem Marcelo. Esse cara já estava me xaropeando desde as filmagens do “Entrei em Pânico” dois anos antes, mas dei um voto de confiança, convidei-o novamente, e a retribuição que ganhei foi o mané pular fora quando tínhamos 70% do filme pronto. Isso aconteceu já no começo de 2004, e até então as filmagens estavam se arrastando justamente por causa dele, que sempre ficava achando desculpinhas para não aparecer nas gravações. A história por trás da desistência é que o cara estava descornado por ter tomado um fora da namorada, e ela também aparecia no filme, então quando um saiu tive que tirar o outro do elenco também. E como já estávamos com o filme quase pronto, seria necessário refilmar todas as cenas em que ele aparecia – e o cara era um dos personagens principais – e também as cenas dela, que interpretava a irmã do Eliseu. Os outros dois atores principais, Rodrigo e Eliseu, não queriam gravar tudo outra vez, e eu até entendo, porque tínhamos cenas muito boas com esse ator que desistiu. Eles queriam cancelar tudo e filmar outra coisa, mas eu teimei em recomeçar do zero porque gostava muito do roteiro de “Canibais & Solidão” e sabia que iria sair um filme muito divertido. Então convidei o Fábio Prina, que foi o assassino em “Entrei em Pânico”, para tapar o buraco e interpretar o personagem Marcelo. Originalmente, nas cenas já gravadas, o Prina fazia apenas uma ponta em “Canibais & Solidão”, como um personagem que acabou sendo eliminado nas regravações. E o Prina aceitou assumir o personagem, mas fez uma série de exigências, como a de não aparecer sem roupa numa cena em que ele e o meu irmão fugiam pelados de um pai enfurecido. Como eu já estava fodido mesmo, tive que aceitar as imposições, ou chantagens. O outro problema foi achar a menina para interpretar a irmã do Eliseu, porque na cena final ela aparecia tomando banho – e nem mostrava nada de nudez na cena, mas as garotas que eu convidava eram todas cheias de frescura, era só falar em cena de banho que já pulavam fora. Para não cortar a cena inteira, tive que convidar uma colega minha de faculdade, a Daniela Vidor, que não morava em Carlos Barbosa. E no fim foi melhor assim, porque a participação dela no filme é excelente – filmamos todas as suas cenas num único final de semana. Inclusive quero convidá-la para meus próximos trabalhos. Com o “novo” elenco completo, tive que contornar mais um problema que era a falta de entusiasmo da equipe, porque a gente precisou regravar quase todas as cenas prontas. Inclusive eu assumo que algumas delas estavam muito melhores na primeira versão, depois ficaram meia-boca porque nem os atores e nem eu tínhamos mais ânimo para continuar. “Canibais & Solidão” acabou sendo finalizado meio nas coxas, eu também fiquei de saco cheio e desisti de regravar algumas cenas que eram muito legais, como uma em que o Marcelo ia espiar a Edna Costa e a Niandra trocando de roupa. E para completar a “maldição” do filme, este foi meu primeiro trabalho editado no computador, e até eu pegar as manhas foi bem estressante. Até porque o software de captura e de edição que eu usava dava pau diariamente. Para você ter uma idéia, Petter, eu simplesmente não conseguia finalizar o filme sem que o som ficasse fora de sincronia, e não encontrei solução para isso, tive que cortar o arquivo do filme no meio e dividir em dois arquivos diferentes para resolver. Deu até saudade da velha edição de vídeo para vídeo. No final, por causa desses problemas e da necessidade de regravações, até que “Canibais & Solidão” custou baratinho: cerca de R$ 600.00, sendo que boa parte desse orçamento eu usei para promover uma festa com uma banda contratada, somente para filmar uma cena de cinco minutinhos no final do filme!

Baiestorf: Como foi a reação do público? Ele foi lançado comercialmente? Recuperou o dinheiro investido?

Guerra: “Canibais & Solidão” foi meu filme mais lucrativo aqui em Carlos Barbosa, porque fizemos três sessões no cinema da cidade e todas elas tiveram um grande público. Então, meu investimento foi recuperado ainda na bilheteria, e toda grana que entrou depois foi lucro. Era até para eu ter faturado mais, só que tive um problema na noite da premiére (parte da “maldição” que citei antes), porque depois da renderização em cima da hora eu descobri que o som continuava fora de sincronia e precisei cancelar a sessão. Foi foda porque o cinema estava lotado e tinha até um repórter de jornal regional que ia fazer a cobertura da estréia, mas assim eu finalmente aprendi a não ficar mexendo nos filmes até a véspera do lançamento. Depois do cinema, eu fiz um DVD bem simplesinho que trazia o trailer e mais 15 minutos de erros de gravação. Como eu numerei cada disco, hoje sei que existem 192 DVDs “oficiais” por aí, fora os não-oficiais e os downloads, já que não demorou para o filme vazar na internet. Eu até comentei numa entrevista à revista virtual Zingu que certa vez fiz uma busca no Google e descobri que estavam vendendo DVDs piratas de “Canibais & Solidão” na Argentina, com o título “Canibales Y Soledad”. Semana passada fui procurar novamente para postar o link aqui, mas não achei mais, talvez os DVDs argentinos tenham esgotado, ou ninguém quis comprar e os caras jogaram os discos no lixo! Enfim, “Canibais & Solidão” foi um filme que rendeu muito bem. Infelizmente não teve muita circulação por festivais e exibições Brasil afora, mas consegui vender vários DVDs e praticamente comprei minha câmera atual com o dinheiro que lucrei com este filme.

Baiestorf: Algo que chama muita atenção no “Canibais & Solidão” (e nos seus filmes seguintes à ele) é a naturalidade com que seus atores dizem os diálogos mais banais do filme, o que lhe dá um saboroso charme quase nunca visto em outras produções independentes. Qual é o segredo disso?

Guerra: Se você assistir todos os meus filmes – e acho que você viu quase todos, Petter –, vai perceber que basicamente são as mesmas pessoas fazendo o mesmo tipo de personagem. Eu já escrevo meus roteiros pensando em Fulano ou Beltrano para interpretar cada papel. E eles falam naturalmente porque eu tenho esse “talento” de escrever diálogos banais, coisas que pessoas comuns falariam. Assim meus atores não precisam interpretar muito, até porque eles não são atores de verdade. Se você ficar meia hora conversando com meu irmão Rodrigo, ou com o Eliseu, vai perceber que no dia-a-dia nós falamos mais ou menos como os personagens dos filmes, e vice-versa: vários diálogos dos filmes ficaram tão marcantes lá em Carlos Barbosa que é comum você ouvir alguém dizendo “Eu sou gatão, eu sou gatão”, por exemplo. Existe um entrosamento muito grande entre toda a turma, e acho que foi por isso que eu nunca consegui fazer filmes com outras pessoas que não conheço bem.

Baiestorf: Também no “Canibais & Solidão”, algo que chama atenção é a beleza das atrizes, como funciona a seleção do elenco nos teus filmes?

Guerra: Uma das queixas em relação aos meus filmes anteriores era que tinha muito homem e pouca mulher, então em “Canibais & Solidão” eu resolvi mudar essa imagem. Além da Niandra, que já havia participado de “Entrei em Pânico”, eu convidei uma menina chamada Edna Costa, que na época era modelo, e inclusive trabalhou por um tempo em São Paulo. Foi uma escolha acertada, porque ela ficou muito bem no filme. O maior problema, como já falei, foi arrumar alguém para a inocente cena do banho, porque em Carlos Barbosa as meninas são cheias de pudores, então tive que chamar uma amiga de fora. As meninas que interpretam as duas irmãs fáceis que pedem para os protagonistas fazerem striptease também são de fora, são cantoras de uma banda que inclusive aparece tocando no final do filme. A beleza das atrizes de “Canibais & Solidão” me rendeu muitos elogios, e essa preocupação com meninas bonitas eu mantive depois ao filmar “Entrei em Pânico Parte 2”. Inclusive esse novo filme tem muito mais mulher do que homem, é o meu “Hostel 2”!

Baiestorf: Quando teremos Felipe Guerra filmando um sexploitation com essas atrizes lindíssimas do Rio Grande do Sul?

Guerra: Se depender das meninas de lá, nunca. Lembra que tempos atrás eu te sugeri fazermos parceria para filmar um sexploitation em Palmitos, Petter? Pois em Carlos Barbosa elas não querem nem tomar banho de mentirinha, quem dirá tirar a roupa de verdade! E é claro que o fato de eu não pagar cachê desestimula qualquer demonstração de nudez. Só eu para aparecer pelado de graça mesmo! Eu sou vulgar e barato!

Baiestorf: Algo que sinto falta nos teus filmes é o desenvolvimento de algumas temáticas mais polêmicas. Você pretende fazer um cinema mais ácido, ou pretende se especializar em filmes adolescentes?

Guerra: Para ser bem sincero, Petter, temas polêmicos não me interessam. Anos atrás eu pensei em fazer um filme bem apelativo para chutar o pau da barraca. Como a minha cidade é de interior, ainda tem muita gente que mata animais em casa, como porcos e bois, para obter carne e embutidos, e eu pensei em filmar essas matanças reais de bichos para fazer uma historinha polêmica com tudo que pudesse chocar a sociedade: crueldade animal, assassino psicopata, necrofilia, canibalismo. Depois pensei: “Mas quem é que vai querer ver isso?”, e lembrei desses filminhos bestas tipo “A Serbian Film”, que fazem de tudo para chocar e no fim não passam de umas grandes bobagens. Então não me interessa ser polêmico, ser forte, ser chocante. Digamos que eu não pretendo atingir apenas o público mais “underground”, eu quero que meus filmes atinjam públicos mais amplos. Se você for analisar, tirando uma ou outra bobagem, “Canibais & Solidão” e “Entrei em Pânico Parte 2” são filmes que poderiam ganhar lançamento comercial e encontrariam um grande público, pois não foram produzidos pensando apenas num público selecionado e específico como, por exemplo, o teu “A Curtição do Avacalho”. Eu já falei várias vezes em entrevistas e palestras que dirigiria filmes da Xuxa ou do Renato Aragão, e não é piada, eu faria mesmo, adoraria tentar imprimir um outro estilo, um outro tipo de narrativa a esse cinema acéfalo que ambos estão fazendo hoje. Em resumo, o que eu quero é fazer cinema popular. Eu cresci assistindo “Os Aventureiros do Bairro Proibido” e “Comando para Matar”, não Bergman ou Glauber Rocha. Se tivesse alguém colocando grana e bancando minhas produções, acho que hoje eu estaria vivendo de fazer comédias adolescentes e filmes de ação, daquele tipo cheio de porrada e tiro. Até porque já tem muito metido a Glauber Rocha nesse país, e cada vez saem mais deles das faculdades de cinema. Não é o meu caso, o meu objetivo é me divertir e divertir o público, e não passar mensagem, fazer protesto ou crítica social. Quem quer mensagem, que vá ler um livro, e não ver os meus filmes; já para quem quer protesto e crítica social, o que mais tem por aí são “anarquistas”, “agitadores” e diretores revoltadinhos estilo “Mamãe, veja como eu sou polêmico!”. Por isso, eu prefiro ser diferente e trabalhar em prol do cinema descompromissado, feito para divertir, e tentando mostrar que é possível fazer coisas mais inteligentes e interessantes que essas comédias românticas bobas da Julia Roberts e da Cameron Diaz. Ou esses filminhos bestas que da metade para o final tentam passar lição de moral no personagem principal e no espectador. Eu fico puto porque a quantidade de adolescentes que vão ao cinema no Brasil é gigantesca, mas o diretor/produtor/roteirista brasileiro não parece interessado em fazer filmes para eles. Você pega supostas comédias adolescentes, como “As Melhores Coisas do Mundo” e “Apenas o Fim”, e são ou adultos escrevendo para adolescentes (e criando situações e diálogos irreais para a faixa etária) ou jovens diretores pensando que são adultos. Não existe um meio-termo no cinemão comercial, mas eu já acho que consigo dialogar muito bem com esse tipo de público. Inclusive várias pessoas me disseram que “Canibais & Solidão” foi o mais perto de “Porky’s” que o cinema brasileiro chegou, e eu achei isso um elogio fantástico, já valeu todos os problemas que tive durante a realização do filme.

"O Horror de Paganini".

Baiestorf: Conte o que é “O Horror de Paganini”, projeto que você filmou em 2004 e nunca finalizou.

Guerra: “O Horror de Paganini” é um curta-metragem daquele tipo filmado num único dia, quando estávamos em meio às discussões sobre se cancelaríamos ou não as problemáticas filmagens de “Canibais & Solidão”. O Eliseu e o meu irmão Rodrigo queriam parar tudo e fazer outra coisa, mas eu teimei em continuar. Para fazer a vontade de ambos e dar um tempo no longa, filmamos esse curta de brincadeira na minha casa. É uma homenagem a “Paganini Horror”, um terror italiano dirigido pelo Luigi Cozzi, e foi gravado em preto-e-branco. São cinco personagens, o Rodrigo é o único que faz um papel só, e eu e o Eliseu interpretamos dois personagens cada, usando perucas e roupas diferentes. A história eu improvisei na hora, e brinca um pouco com a minha dificuldade de conseguir a fita brasileira de “Paganini Horror”, uma raridade do nosso mercado de vídeo. Eu sou colecionador de VHS e demorei exatos 13 anos para conseguir essa fita. No curta, meu irmão interpreta um colecionador de filmes com o mesmo problema. Aí o Diabo, interpretado por mim, aparece e dá uma cópia de “Paganini Horror” para o sujeito, mas quando ele assiste se transforma em demônio, e surge o Eliseu como exorcista para livrá-lo da maldição. É uma bobagem improvisada, com maquiagem horrível e interpretações pavorosas. Até tem sua graça, mas não achei interessante para compartilhar. Qualquer dia desses eu finalizo a edição e jogo no YouTube, ou coloco como extra em algum DVD dos meus filmes.

Baiestorf: Fale um pouco sobre teu ótimo blog, “Filmes Para Doidos”:

http://filmesparadoidos.blogspot.com/

Guerra: Em primeiro lugar, obrigado pelo elogio, Petter. Como eu te falei lá no começo da entrevista, eu sempre gostei de pesquisar sobre cinema e escrever sobre cinema, e inclusive uma das minhas frustrações na “Era Pré-Internet” era não haver canais disponíveis para divulgar minhas análises de filmes além de fanzines e do nosso jornalzinho. Nesse aspecto, eu tenho que dizer que a internet foi um fantástico canal para divulgação. Antes que os blogs se popularizassem, eu comecei mandando colaborações esporádicas para alguns sites de cinema, e em 2003 entrei para o quadro de colaboradores da Boca do Inferno, hoje o maior site sobre cinema fantástico da América Latina. O problema da Boca, onde estou até hoje, é que eu ficava “engessado” aos filmes de terror, no máximo ficção científica, mas eu gosto de tudo que é gênero. Às vezes até conseguia encaixar alguma podreira ali com a desculpa de ser ficção científica, como “Keruak – O Exterminador de Aço”, de Sergio Martino, ou “Os Caçadores de Atlântida”, de Ruggero Deodato, mas sentia que faltava um lugar para eu poder falar livremente de qualquer filme. Lá por 2006, surgiu uma rede social chamada Multiply, que alguns espertinhos apelidaram de “Orkut para pessoas inteligentes”, porque não era só figurinha e desenho, era um site para quem gostava de escrever bastante. E foi ali que comecei a publicar minhas primeiras resenhas de outros gêneros, dos filmes do Chuck Norris, Charles Bronson, Van Damme. Só que o Multiply era limitado, não permitia colocar fotos nem formatar muito o texto. Finalmente, em 2008, virou modinha ter blog, e vários cinéfilos criaram seu próprio blog para poder discutir cinema. Eu acompanhava vários desses blogs, mas era engraçado porque logo esse pessoal ficava de saco cheio e parava de atualizar com freqüência, ou largava o negócio de vez. Aí eu resolvi fazer o “Filmes para Doidos” para suprir essa lacuna de blog sobre cinema, digamos, “alternativo” com atualizações freqüentes. Comecei em 11 de outubro de 2008, e de lá para cá foram 218 postagens. Eu nunca me preocupei com o visual do blog, até hoje uso um dos layouts que são padrão do Blogger. E eu deixei bem claro desde o começo que era um blog para quem gostava de ler, porque tinha muita gente que me criticava na Boca do Inferno por escrever artigos muito extensos. Triste mundo esse em que as pessoas reclamam de ter texto demais, e não de menos… Bem, quem não gosta de ler que vá para o Twitter, porque o “Filmes para Doidos” mantém a média de duas atualizações semanais com textos enormes sobre produções obscuras do mundo inteiro, como “El Violador Infernal”, “3 Dev Adam” e “As Aventuras de Sergio Mallandro”, além dos escalafobéticos filmes pornográficos brasileiros da Boca do Lixo. E enquanto eu tiver dedos para digitar, prometo continuar atualizando o blog com essa mesma freqüência e com as tradicionais resenhas quilométricas sobre filmes “diferentes”.

Baiestorf: Acho o vídeo-clip “David Blyth’s Damn Laser Vampires” seu trabalho mais impessoal. Como tu se meteu neste projeto?

Guerra: É um caso parecido com o de “Mistério na Colônia”, eu considero um trabalho de encomenda. Em 2009, o cineasta neozelandês David Blyth estava participando do Fantaspoa, o Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre. Eu gosto muito de um filme dele chamado “Death Warmed Up”, lançado em vídeo no Brasil como “Guerra para a Morte”. Os organizadores do festival estavam com a idéia de fazer um curta-metragem dirigido pelo cara, e me chamaram para co-dirigir porque teríamos apenas duas madrugadas para fazer tudo, e seria mais fácil trabalhar com duas câmeras. Então o Blyth dirigia o João Pedro Fleck, que é um dos organizadores do Fantaspoa, filmando com uma câmera boa de qualidade HD, enquanto eu fazia a “segunda unidade” com minha câmera mini-DV. O curta seria estrelado por uma ótima banda gaúcha chamada Damn Laser Vampires, e os outros atores são Cristian Verardi, Kasha Lee e o Eduardo Santana, que é de São Paulo e organizador do festival CineFantasy, mas estava em Porto Alegre passeando e foi requisitado para fazer uma ponta. Não existia um roteiro, mas a proposta era fazer um grande videoclipão sem diálogos, pois as cenas seriam preenchidas pelas músicas da Damn Laser Vampires. Mesmo assim, tivemos várias conversas para escolher um argumento, e eu sugeri que os músicos da banda fossem como exorcistas ou xamãs modernos, cuja música liberaria os demônios de pessoas possuídas. Seguiu-se mais ou menos essa linha, mas na hora de filmar começaram a surgir novas idéias, como um mendigo zumbi, e no final virou uma bagunça cheia de elementos, mas sem muita lógica. Mas a lógica da história não importa, acho que o vídeo cumpriu a proposta e tem umas imagens ótimas. O Blyth ganhou o crédito principal, mas acho que eu dirigi a maior parte do curta. Ele ficou revoltado o tempo todo, porque pensava que estava num set de filmagens em Hollywood, e não numa produção de custo zero filmada quase como brincadeira. Por isso, na segunda noite de filmagens, resolveram escanteá-lo. O João me ligou e disse que iam ficar com o gringo numa sessão especial em homenagem ao conjunto da sua obra, e que nesse tempo era para eu pegar a câmera e filmar o máximo de cenas com a banda que eu conseguisse sem a interferência do convidado estrangeiro. Aí, quando o Blyth finalmente chegou para as gravações, eu já tinha filmado um montão de coisas do meu jeito. Todas as cenas dos vampiros chegando de carro e entrando no bar onde tocam fui eu que fiz, bem como aquelas em que eles saem do bar levando a garota possuída (Kasha). Considerando a forma como o projeto foi desenvolvido e a correria com que foi realizado, eu fiquei bem feliz com o resultado. Mas é como você disse, um projeto bem impessoal, eu nem mesmo participei da edição, e talvez tenha ficado melhor assim porque ficou mais a cara da banda, e é um veículo para eles. Espero qualquer dia trabalhar de novo com a Damn Laser Vampires, quem sabe dirigindo um videoclipe para alguma música deles. São pessoas muito legais e criativas, que fazem um som de primeira.

Com a banda Damn Laser Vampires e os atores do curta-clip.

Baiestorf: Você acha que o cinema deve ser feito com dinheiro público? Por quê?

Guerra: Olha Petter, eu nunca fui atrás de editais e de leis de incentivo à cultura. Primeiro porque odeio burocracia e não ia conseguir passar nem das primeiras duas exigências para colocar a mão nesse dinheiro, e depois porque fico imaginando a cara do sujeito que seleciona os projetos se ele recebesse meus roteiros com nomes como “Canibais & Solidão” e “Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-feira 13 do Verão Passado”. Na verdade, eu sou idiota e tenho uma visão romântica do processo de fazer cinema. Fico pensando que por aqui pode acontecer que nem lá fora, em que o Sam Raimi e o Peter Jackson gostam de algum filme independente e resolvem bancar o futuro trabalho do cara. Sempre considerei meus filmes como rascunhos do que eu faria caso tivesse grana e as condições ideais, e ingenuamente fico pensando que, sei lá, algum cara cheio da nota algum dia vai ver um trabalho meu, como o curta “Extrema Unção”, e pensar: “Se o Guerra fez isso com apenas 40 reais, imagine o que poderia fazer com 40 mil. Vou investir essa grana nele”. Como eu te disse, é muito romantismo e ingenuidade da minha parte, mas nunca se sabe. Agora, respondendo a tua pergunta, eu acho que não, acho que o cinema não deve ser feito com dinheiro público. Ainda mais quando não há uma cobrança do realizador de pelo menos algum retorno de bilheteria, porque aí o cara ganha o dinheiro, faz o filme, está com tudo pago e já não interessa mais se vai ter seis milhões de pessoas ou apenas seis espectadores nos cinemas. Deveria ter alguma forma de fazer com que esses cineastas brasileiros mequetrefes paguem a conta, para evitar que façam filmes só para eles. Por exemplo, se o filme financiado pelo governo for um fracasso de bilheteria, eles têm que devolver pelo menos uma parte da grana que receberam. Ou então continuaremos com essas produções monstruosas de merda que o sujeito faz só para a família dele ver. Isso quando os filmes ganham a luz do dia e não ficam encalhados no meio, estilo “Chatô”, do Guilherme Fontes, ou aquela superprodução encomendada pelo Sarney, “O Dono do Mar”, cujo paradeiro ninguém sabe, ninguém viu. Tempos atrás eu até respondi, numa outra entrevista, que não entendo como certos projetos ganham sinal verde – e grana – para serem filmados, porque é bem óbvio, do título ao argumento, que ninguém vai querer ver aquilo depois que ficar pronto. Vou dar um exemplo: digamos que você tem uma pequena produtora e quer investir seus parcos recursos em algum filme, digamos o novo trabalho de um jovem realizador ainda desconhecido. Então como é que você faz para decidir por um novo projeto, escolher no que vai investir? Eu disse, nessa outra entrevista, que existe um site chamado Filmow, que é como uma rede social de cinéfilos, onde os usuários dão estrelinhas para os filmes que viram e marcam se querem ver ou não as produções que vão estrear nos cinemas. Pois eu cadastrei meus filmes nesse site só para sentir como seria a reação do público. Se você entrar no Filmow agora, e for ver a ficha do meu filme mais recente, “Entrei em Pânico Parte 2”, vai descobrir que mais de mil pessoas marcaram “Quero ver”, e já tem quase 700 comentários dos usuários nessa ficha. Aí, para comparar, você olha um dos vencedores do Festival de Cinema de Gramado do ano passado, o filme “180 Graus”, do Eduardo Vaisman, e na ficha dele só tem três comentários, e apenas 40 usuários marcaram “Quero ver”. Já “Uma Longa Viagem”, da Lucia Murat, que ganhou Kikito de Melhor Filme nesse ano aqui, tem um comentário e míseros oito “Quero ver”. E esses filmes foram premiados num dos mais famosos festivais de cinema do país! Então eu te pergunto: se você fosse um produtor querendo colocar uma graninha em algum novo projeto e esperando ter retorno de bilheteria, ia queimar seu dinheiro com o Vaisman e com a Lucia Murat, ou iria procurar alguma coisa que tem mais repercussão e apelo popular?

Com o monstro de "Afogado".

Baiestorf: Em 2010 você topou dirigir o curta “Afogado” que até hoje não foi finalizado. O que aconteceu?

Guerra: “Afogado” foi um projeto em parceria com uma turma de estudantes de cinema aqui de São Paulo. Geralmente os caras saem da faculdade de cinema querendo ser Glauber Rocha ou Godard, mas esse pessoal gostava de cinema fantástico e queria produzir um curta comigo como diretor e co-roteirista. Esta seria a primeira vez que alguém iria produzir um roteiro meu e eu não precisaria me preocupar com nada além de dirigir, e nem tirar dinheiro do meu bolso. Apesar disso, não deu certo porque eu fui ingênuo de acreditar que conseguiria assimilar a forma de trabalho de estudantes de cinema, e também que eles fossem entender e respeitar a forma como eu estou acostumado a trabalhar. Para você ter uma idéia, as “diferenças criativas” começaram desde cedo: eu queria filmar o curta de dia e usando luz natural, não só porque já tive problemas suficientes com iluminação de cenas noturnas, mas também porque teríamos apenas duas noites para filmar, e eu achava que não era tempo suficiente. Dito e feito: o pessoal teimou de filmar à noite, mas ao invés de começar os trabalhos logo que ficava escuro, digamos 19 horas, só se começava a gravar depois da meia-noite. Então era óbvio que não ia dar tempo de acabar, a filmagem exigia um montão de maquiagens complicadas, era demorado, e a gente só tinha umas cinco horas de escuridão porque nunca conseguíamos começar mais cedo. Além disso, teve todas aquelas aporrinhações técnicas que são vícios que o cara pega na faculdade de cinema, tipo as frescuras com iluminação. Os caras demoravam duas horas para “arrumar a luz” de uma cena inútil que, se fosse o caso, até poderia ser filmada com luz natural, porque ainda era dia. E eu odeio quando a coisa não anda, aquilo que me deixava maluco. Para completar, parte da equipe estava ali só pela farra e pela festa, o que não ajudava a melhorar o clima de trabalho. Você pode até não acreditar, mas nessas bagunças conseguiram estragar uma cabeça decepada que eu e um dos atores demoramos três horas para fazer, e que seria usada na grande cena do curta, quando um dos protagonistas tinha a cabeça esmagada a pedradas. De minha parte eu assumo a culpa por não ter conseguido me adaptar ao esquema de trabalho deles. Por exemplo, me exigiram storyboards de todas as cenas e eu fiz, mesmo odiando essas porras, mas na hora de filmar eu mudava tudo. Bem, nessas confusões todas, nós não conseguimos filmar tudo que precisava e uma metade da equipe foi embora brigada com a outra metade. Nos meses seguintes, eu fiz uma edição prévia do curta com o material que tinha e mostrei para eles, sugerindo algumas novas cenas e refilmagens, mas, apesar dos meus insistentes pedidos para que terminássemos as gravações, os produtores ficaram meio decepcionados com a coisa toda e cada um seguiu seu rumo e seus projetos, deixando o curta inacabado. Eu insisti durante mais um tempo, até fiz um trailer que coloquei no YouTube para ver se sensibilizava a turma, mas eles acabaram varrendo o “Afogado” para baixo do tapete, e agora eu também não quero mais fazer. Fica como lembrança de que eu preciso ter uma equipe com maior afinidade da próxima vez, e principalmente que entenda e respeite a forma como eu trabalho. Mas pelo menos eu não investi nada no projeto, e até acho muito engraçado os caras gastarem grana do bolso – acho que investiram dois mil nas gravações – e simplesmente descartarem assim, como se o negócio nunca tivesse existido.

Baiestorf: Você foi o responsável por trazer o Luigi Cozzi e o Lamberto Bava ao Brasil para retrospectivas no Fantaspoa. Conte como foi isso. Mais algum cineasta italiano engatilhado para trazer ao Brasil?

Guerra: No começo de 2009, eu usei meu FGTS – e essa é a única vantagem de começar a trabalhar cedo – numa viagem à Europa. Um dos destinos foi a Itália. Eu sabia que o Luigi Cozzi era sócio do Dario Argento numa lojinha de artigos de horror e ficção científica chamada Profondo Rosso, que fica perto do Vaticano, e fui lá. No dia anterior eu tentei ligar para marcar um encontro com ele, porque achei que era um cara importante, super-ocupado e não recebia todo mundo. Mas ninguém atendeu. Então cheguei lá sem aviso prévio, e, para minha surpresa, encontro aquela lojinha minúscula sem nenhum comprador lá dentro, e o Luigi Cozzi em pessoa atrás do balcão, quase dormindo. Fiquei louco porque era muito fã dos filmes dele, os “Hércules” do Lou Ferrigno, “Starcrash”, “Alien Contamination”, e nunca imaginei que seria tão fácil encontrá-lo. Ficamos quase uma hora conversando, porque não entrava cliente nenhum naquela loja, e ele lembrou de mim porque uns anos antes, acho que em 2006, fiz uma entrevista com ele, por correio e telefone, para a Boca do Inferno. Um tempo depois desse encontro na Itália, o pessoal do Fantaspoa começou a investir mais nos visitantes internacionais, começando com o David Blyth na edição de 2009. E eu sugeri que talvez pudéssemos levar o Luigi Cozzi a Porto Alegre no ano seguinte. Eles gostaram da idéia e eu fiz todo o meio-de-campo com o italiano, inclusive fui curador da mostra retrospectiva da obra dele. E como o Cozzi tem contato com praticamente todos os cineastas da Itália, porque já trabalhou como jornalista, acabou ajudando nas negociações para, agora em 2011, trazer o Lamberto Bava, numa mostra retrospectiva da obra dele e do seu pai famoso, o falecido Mario Bava, em que novamente fui curador. Tenho que dizer, Petter, que trazer esses dois italianos para cá foi muito emocionante para mim, quase a realização de um sonho, porque desde moleque eu sou apaixonado pelo cinema fantástico italiano. Lembro que eu lia notícias sobre festivais de cinema fantástico em Roma, reunindo nomes como Dario Argento, Ruggero Deodato e Bruno Mattei, e ficava muito triste por não termos nada parecido no Brasil. Quando finalmente surgiu a oportunidade de fazer contato com esse pessoal e trazê-los para cá… Cara, me senti realizado! Eu achei o máximo passar esses dias com o Cozzi e o Lamberto Bava, conversando sobre esses filmes que eu adoro, e ouvindo histórias fantásticas deles sobre como era fazer cinema na Itália dos anos 70 e 80. Enfim, os Fantaspoas de 2010 e 2011 foram como um sonho para mim, acho que ainda vai demorar para cair a ficha e eu perceber que estive do lado de sujeitos que de certa forma participaram da minha juventude e ajudaram a moldar meu gosto (mau gosto?) cinematográfico. Quanto a cineastas engatilhados para futuras edições, é óbvio que eu adoraria fazer contato com todo esse pessoal de quem sou fã, o Argento, o Deodato, o Umberto Lenzi, até mesmo o Enzo G. Castellari – cujo negócio é mais ação do que cinema fantástico. Mas não sei como vai ser o Fantaspoa 2012, e pessoalmente acho que ia ficar meio estranho levar outro diretor italiano a Porto Alegre pela terceira vez consecutiva. Talvez fosse a hora de homenagear outros mestres de outras partes do mundo.

Com Luigi Cozzi em Roma.

Baiestorf: Você tem filmado 6 horas de depoimentos do diretor Luigi Cozzi falando sobre a carreira dele. Isso vai virar um documentário?

Guerra: Isso aconteceu durante o Fantaspoa de 2010. Eu conheço a fundo a filmografia do Cozzi desde moleque, mas a obra dele ainda é bem desconhecida no Brasil. Por isso, colocamos na programação da retrospectiva dele em Porto Alegre um documentário francês de 2004 chamado “Le Tunnel sur le Monde”, que é sobre o Cozzi e seus filmes. Mas enquanto eu fazia as legendas desse filme, fiquei abismado com a quantidade irrisória de informações, parecia até um trabalho de faculdade feito às pressas por alguém que nem viu os filmes. E já rolava a idéia de fazermos um curta-metragem co-dirigido pelo Cozzi, como tinha acontecido com o David Blyth no ano anterior. Aí eu sugeri que, ao invés do curta, fizéssemos um documentário sobre a carreira do Luigi, para que aquele filminho francês tosco não permanecesse como único referencial da sua obra. Foram duas tardes inteiras de entrevistas com ele, até fiquei bastante surpreso com a disposição e com a alegria do Cozzi ao ser bombardeado por todo tipo de perguntas. Ele contou tantas histórias sobre os bastidores do cinema fantástico italiano que poderíamos fazer uns três documentários diferentes com o material. Só a parte que ele fala sobre “Starcrash”, a cópia italiana de “Guerra nas Estrelas” que fez, rendeu umas duas horas de entrevista e já daria um belo e engraçadíssimo filme. Eu ainda nem tive tempo para pegar isso tudo, assistir e organizar, mas a idéia é lançar, sim, um documentário sobre a obra de Luigi Cozzi num futuro próximo. Quem sabe isso até renda vários documentários menores. O que eu preciso é de um tempinho para parar, rever tudo e pensar melhor no que fazer com tanto material.

com Lamberto Bava.

Baiestorf: Fez algo similar com o Lamberto Bava?

Guerra: Não deu tempo porque a passagem do Lamberto pelo Brasil foi bem mais corrida, ele passou literalmente voando por Porto Alegre e depois foi embora para aproveitar uns dias no Rio de Janeiro com a esposa. E também já existem inúmeros documentários sobre o Bava e o pai dele, então achei que seria redundante incomodar o coitado com mais uma cacetada das mesmas perguntas que ele responde desde sempre. Mesmo assim, num momento em que nós dois estávamos de bobeira tomando uns chopps, aproveitei para fazer umas perguntas “on câmera” sobre três filmes cujos bastidores me interessavam: “Demons”, “Roleta Macabra” e o remake que ele fez de “A Máscara do Demônio”. Filmei isso com a minha própria câmera mini-DV e ainda não decidi o que vou fazer. A princípio eu só gravei para ter subsídios para quando fosse escrever sobre esses filmes para a Boca do Inferno. Mas acho que qualquer dia desses eu jogo o material todo no YouTube. Até porque é raro ver o Lamberto falando sobre “Roleta Macabra” e seu “A Máscara do Demônio”…

Baiestorf: No final de 2010 você lançou o curta de suspense”Extrema Unção”, filme que tenta ser mais sério. Já vi duas exibições deste curta em cinemas, na Mostra Cinema de Bordas 3 (São Paulo/SP) e na Vingança do Filme B (Porto Alegre/RS) e a reação da platéia é sempre de gargalhadas descontroladas quando vê as cenas macabras? A carreira de Felipe Guerra como diretor de filmes sério acabou aqui?

Guerra: “Extrema Unção” tem três “origens”: primeiro, eu comprei minha câmera mini-DV para começar a filmar “Entrei em Pânico Parte 2”, mas queria testar seus recursos antes de sair gravando o longa, então improvisei esse curtinha filmado em apenas dois dias; segundo, pensei em fazê-lo para participar de uma competição dentro da programação do CineFantasy, aqui em São Paulo, que se chama “Mestre dos Gritos”, e que premia o curta que dá o maior susto no público; e terceiro, todo mundo vivia me enchendo o saco porque eu escrevia artigos sobre filmes de horror (no site Boca do Inferno) e só dirigia sátiras do gênero, então havia essa cobrança para que eu fizesse algo “sério”. E confesso que eu mesmo tinha curiosidade para ver se conseguiria contar uma historinha mais séria, porque sempre imaginei que, com os recursos disponíveis, era melhor partir para o avacalho. “Extrema Unção” é a história de um rapaz cético, interpretado pelo meu irmão Rodrigo, que aluga uma casa assombrada de um corretor de imóveis picareta, interpretado pelo Leandro Facchini. Minha avó Oldina é o fantasma que assombra a casa, uma fanática religiosa que morreu sem receber a extrema unção. A idéia surgiu das aulas de religião que eu tinha no colégio quando garoto, e que foram, de longe, as coisas mais assustadoras que vi e ouvi na vida. Na época (final dos anos 80), ainda era forte a prática do “terrorismo religioso” para arrebanhar novos membros para a igreja, principalmente em cidades pequenas. Os padres vinham até a escola e nos assustavam com histórias sobre o inferno para nos forçarem a sermos católicos fervorosos, ou ovelhinhas comportadas. Nunca me esqueço que, numa dessas “aulas”, a professora falava sobre a extrema unção dizendo que era o último sacramento que o cristão recebia, quando estava prestes a morrer, e que se morresse sem recebê-la, sua alma ficaria eternamente vagando pelo limbo sem descanso. Não sei o que essas professoras e padres tinham na cabeça, mas falar esse tipo de coisa para crianças era absolutamente traumatizante. E eu sempre tive muito medo da noção de “eternidade”, então a idéia de minha alma ficar vagando por aí sem paz não era das mais agradáveis. A professora inclusive disse, naquela aula: “E vocês sabem o que é a eternidade? É para sempre, e para sempre, e para sempre, até nunca mais acabar!”. Só que eles não explicavam direito as coisas, então nós, garotos, ficávamos aterrorizados com a possibilidade de morrer de repente num acidente e ficar vagando eternamente por não termos recebido a extrema unção. Pela lógica cretina daquela professora, você teria que recebê-la todos os dias pela manhã antes de sair de casa, por via das dúvidas. Então eu me lembrei desse negócio e resolvi fazer o curta. Não cheguei a escrever um roteiro, apenas criei a situação básica e os sustos. Só escrevi o diálogo da fantasma no final, quando ela diz que sua alma ficou presa ao cadáver apodrecendo dentro do caixão! Como os outros diálogos eram improvisados, algumas coisas ficaram meio redundantes, e até acho que o curta é um pouco longo demais com seus 19 minutos, se fosse editar hoje eu tiraria algumas coisas que estão sobrando. Sobre as risadas, isso realmente acontece em vários momentos, mas é porque meu irmão não consegue ser sério, ele faz uma caras e bocas bem canastronas, como quando “enfrenta” a fantasma gritando “Aparece! Aparece! Não tenho medo de ti!”. E eu também não esperava que o público levasse 100% a sério, tem umas tiradas engraçadas ali de propósito, como aquela cena com a dentadura. O que me deixou muito feliz é que quase todos os sustos funcionam. Nas exibições do filme, eu gosto de ficar olhando para a platéia, e não para a tela, nas cenas que vai ter susto: alguns até pulam na poltrona! Principalmente na cena final do cemitério, que é um “último susto” bem safado estilo “Carrie – A Estranha”. Outra coisa que me deixou bem feliz é que o curta funciona mesmo sem efeitos especiais ou de maquiagem. Quando ele foi exibido no CineFantasy, em 2010, eu estava assistindo anônimo em meio ao público e no final ouvi uma menina perguntando ao amigo como a história tinha acabado, porque no momento em que a “fantasma” aparecia, ela fechou os olhos e não abriu mais. E nem tem nada de tão forte ali, é apenas música clássica, edição, gritos e minha avó com algodão no nariz! Por isso eu acho que se um dia fizer um outro filme de horror “sério”, talvez o resultado fique bem melhor. Ainda mais considerando que “Extrema Unção” foi feito em apenas dois dias e com 40 reais, e eu sequer tive paciência para refilmar as cenas que não ficaram tão boas – afinal, era só um teste de câmera. E mesmo assim ganhei várias resenhas elogiosas e até um cachê para exibi-lo na mostra Cinema de Bordas aqui em São Paulo, cujo valor foi 12 vezes o custo total do filme!

Baiestorf: “Extrema Unção” também está disponível no YouTube, as visitas estão na média que você imaginava? Aliás, o que você acha destes sites como o YouTube?

Guerra: Eu joguei o curta no YouTube porque achei que ele não teria muito futuro em mostras e festivais, e porque já tinha cumprido seu papel e rendido mais lucro do que eu imaginava. Até o momento, ele foi visto por mais de 2.000 pessoas. Acho que é um número bom, eu não tinha muita expectativa em relação a isso. O que realmente me surpreendeu foi o número de visitações do trailer de “Entrei em Pânico Parte 2”, que já teve mais de 5.500 visualizações, e num curto espaço de tempo. É muito mais gente vendo esse trailer do que os de obras mais caras e “profissionais”, o que me dá muito orgulho, e também comprova que há espaço e público para esse tipo de filme. Sobre o YouTube, acho fantástico como vitrine para exibir nosso trabalho. Pensar que lá nos anos 90 não existia nada parecido e tínhamos que ficar mandando fitas VHS pra todo lado caso quiséssemos ser vistos, e hoje você consegue alcançar 5.500 pessoas sem sequer sair de casa ou gastar dinheiro com correio… A única coisa que eu acho ruim no YouTube e na internet em geral é que criou uma geração de acomodados que agora quer receber tudo de mão-beijada no conforto do seu lar. Eles nunca terão o prazer e a satisfação de encontrar o filme raro que procuram há anos, porque podem baixá-lo em cinco minutos em algum site. Ao mesmo tempo, não se preocupam em comprar um filme independente e ajudar seu realizador, porque acham que é obrigatório para o independente colocar seu trabalho de graça na internet. E ainda ficam putinhos se você não quiser, pensam que VOCÊ é que está errado! Como veículo de divulgação, entretanto, é surpreendente.

Baiestorf: Como está sendo a repercussão do documentário “Dona Oldina: A Fernanda Montenegro do Trash” (2010)?

Guerra: Pequena, mas infelizmente eu não esperava que fosse diferente. O documentário foi enviado para alguns festivais, mas até hoje só foi exibido na Mostra Espantomania Grajaú, aqui em São Paulo, e com um público muito pequeno. Esse documentário de meia hora conta a trajetória como “atriz trash” da minha avó Oldina Cerutti do Monte, que está com 81 anos e continua aparecendo nos meus filmes, em papéis cada vez mais, digamos, desafiadores. Ela teve uma vida difícil, foi casada com um marido alcoólatra e muito ciumento, e costuma dizer que começou a viver depois que ficou viúva. Hoje ela canta em coral, faz teatro, faz cinema. Eu até gostaria que o documentário tivesse maior repercussão, porque é uma história real bem diferente e engraçada. Mas, por enquanto, ele continua praticamente desconhecido. Um dos poucos que comprou a idéia foi o jornalista Gio Mendes, que escreveu duas páginas sobre o filme e sobre a carreira da minha avó no extinto jornal Meia Hora, aqui de São Paulo.

Baiestorf: Foi você quem dirigiu este documentário usando pseudônimo? Achei o estilo da diretora muito parecido com o teu. Pode falar sobre isso?

Guerra: Os créditos finais identificam Marie Pergufel como diretora e roteirista, e geralmente eu digo que ela é uma estudante de cinema que não quis ficar associada ao filme. Mas como você é um observador perspicaz, sou obrigado a confessar que na verdade o filme é todo meu. “Marie Pergufel” é anagrama de Felipe M. Guerra, e assinei o filme com nome falso por dois motivos: para não parecer que eu estava fazendo propaganda da minha avó, e para tentar entrar em alguns festivais onde os caras não vão muito com a minha cara (mas, pelo visto, não deu certo!).

Baiestorf: Sua vó sempre te deu muito apoio e ao assistir o documentário sobre ela dá prá sentir o grande orgulho que ela sente de você. Achei bonito a homenagem que você fez à dona Oldina durante o Fantaspoa 2011, meus olhos se encheram de lágrimas nesta hora. Conte aos leitores o que foi isso:

Guerra: “Entrei em Pânico Parte 2” estreou em Porto Alegre em 3 de julho, e no dia seguinte era aniversário de 81 anos da minha avó, por isso resolvi fazer essa homenagem como uma espécie de complemento ao documentário “Dona Oldina: A Fernanda Montenegro Trash”. Eu, sinceramente, acredito que minha avó seja um exemplo de vida, porque ela tinha tudo para viver uma velhice depressiva depois de um casamento difícil, mas deu a volta por cima e, como ela mesma diz, começou a viver de novo dedicando-se a várias expressões artísticas. Tenho muito orgulho dela e pretendo colocá-la em todos os filmes que ainda fizer. E fiquei muito feliz de vê-la na estréia do filme em Porto Alegre, porque ela passou por problemas graves de saúde em 2010 e eu cheguei a temer pelo pior. Tanto que, para não deixar “Entrei em Pânico Parte 2” incompleto, gravei todas as cenas dela em plano-detalhe só por garantia, com medo que ela resolvesse bater as botas antes do final das filmagens. Felizmente isso não aconteceu e pude regravar todas essas cenas sem a necessidade de depender dos planos-detalhe. E agora ela está me aporrinhando porque quer viajar para São Paulo caso o filme seja exibido em algum outro festival daqui. Eu tenho um sonho quase impossível de que algum grande programa de TV se interesse pela história da minha avó e consiga promover um encontro entre ela e a Fernanda Montenegro. Seria incrível, já que minha avó se considera a “Fernanda Montenegro dos pobres”. E às vezes me dá essa idéia meio estúpida de filmar cenas aleatórias com ela para poder continuar contando com sua presença em futuros filmes, mesmo depois que ela passar dessa para uma melhor, como o Ed Wood fez com o Bela Lugosi e o Fred Olen Ray com o John Carradine. Porque assim ela continuaria vivendo através do cinema, uma arte pela qual é apaixonada. Acho que seria um belo tributo.

Baiestorf: Ainda no Fantaspoa 2011 tive o prazer de assistir o “Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-Feira 13 do Verão Passado 2: A Hora da Volta da Vingança dos Jogos Mortais de Halloween” e o achei muito superior ao primeiro. Como surgiu a idéia para escrevê-lo?

Guerra: Que bom que você achou melhor que o primeiro, porque eu fiz essa continuação justamente para tentar corrigir tudo aquilo que eu não gosto no filme original! Como você talvez se lembre, o primeiro filme terminava inconclusivo, com o assassino ainda vivo e os dois sobreviventes, interpretados por Eliseu e Niandra, dizendo que voltariam na Parte 2 para matá-lo de uma vez. Isso era uma piada, nunca foi minha intenção fazer uma seqüência. Só que o pessoal que viu o original, principalmente os espectadores lá de Carlos Barbosa, começaram a inventar teorias mirabolantes de que eu teria ficado sem dinheiro para terminar a história, e viviam me cobrando a continuação para saber como tudo terminava. E eu odeio ter que explicar a piada, então finalmente resolvi fazer “Entrei em Pânico 2”. Também teve um pouco da frustração pelo meu filme anterior, “Canibais & Solidão”, não ter dado a repercussão que eu esperava, então me dediquei a algo que não era minha prioridade, mas que eu sabia que seria muito mais comentado do que qualquer outra coisa que fizesse. Confesso, porém, que me diverti bastante escrevendo o filme, porque tenho uma raiva muito grande de continuações de filmes de horror. Veja as continuações de “Pânico”, por exemplo: a Neve Campbell sobrevive a vários ataques do assassino e parece que não aprende nada de um filme para o outro. Me agradou ter essa possibilidade de trazer de volta os personagens do primeiro filme muitos anos depois, e mostrar como a vida fica fodida quando você sobrevive à chacina de todos os seus conhecidos. Eu gosto muito de uma fala do Eliseu, que reclama com um amigo: “Sobrevivi a um massacre, e o que isso me acrescentou? Nada! Não consigo emprego, não consigo dormir, vivo estressado, não consigo pegar mulher porque elas têm medo de ficar comigo”. No fundo o filme é uma comédia, uma grande bobagem, mas tentei mostrar que ter sobrevivido à matança do original não mudou para melhor a vida dos personagens, muito pelo contrário, eles agora vivem com medo de uma possível volta do assassino. A primeira versão do roteiro era bem séria e tinha uma infinidade de citações a personagens e acontecimentos do original. Aí caiu a ficha de que 99% da humanidade não tinha visto o primeiro filme, e comecei a limitar essas referências, além de inventar uma cena inicial que explicasse o que aconteceu no original. Se bem que como é um slasher nem precisa explicar muito, a história é aquela estupidez de sempre. Uma coisa engraçada de “Entrei em Pânico Parte 2” é que todo o roteiro foi sendo alterado enquanto filmávamos, e todas as mudanças fizeram muito bem para o filme. No roteiro, por exemplo, a personagem da Niandra tinha dois guarda-costas inexpressivos que apareciam em cena só para morrer. Durante as filmagens, transformei os dois num personagem só, interpretado pelo Leandro Facchini, e inventei a história de que ele era apaixonado pela sua cliente e viciado no filme “O Guarda-costas”, aquele do Kevin Costner. A cena em que ele canta a música da Whitney Houston foi inventada na hora, e é uma das melhores do filme. Outra mudança radical é que o Eliseu morria na conclusão do roteiro. E ele mesmo foi um dos primeiros a reclamar, dizendo que isso iria acabar com a mítica de “Wolverine barbosense” que ele havia ganhado por causa do primeiro filme. Resolvi, então, que ele sobreviveria no final, mas inventei esse detalhe de que ele vai sendo ferido sempre na mesma mão nos seus sucessivos encontros com o assassino! E eu aproveitei para fazer auto-critica o tempo todo. Como os personagens são fãs de cinema de horror, eles vivem reclamando que continuação de filme de terror não presta, que são feitas só para ganhar dinheiro, que somente num filme muito ruim alguém sobreviveria a um ferimento grave (o que de fato acontece em “Entrei em Pânico Parte 2”), e por aí vai. Aliás, a identidade do assassino, revelada no final, eu acho que é uma das piadas que melhor funciona, todo mundo fica surpreso quando a Niandra arranca a máscara do matador e revela quem ele é. Isso é uma espécie de protesto a essa mania babaca dos filmes de terror atuais, de que sempre precisa ter um final estilo “Scooby Doo” em que se descobre a identidade-surpresa do assassino. Puxa, antigamente era tão simples, o matador era um psicopata fugido do manicômio ou um demente assassino tipo o Jason, e pronto. Agora querem ficar inventando finalzinho-surpresa idiota e que não tem como engolir, porque geralmente os “motivos” dos assassinos nesses filmes tipo “Pânico” são risíveis de tão idiotas. Se um dia sair um “Pânico 5”, aposto que o matador vai ser o entregador de pizza, querendo se vingar de não terem pagado os 10%…

Baiestorf: Como foram as filmagens dele, já que atualmente você está morando em São Paulo e as filmagens foram no Rio Grande do Sul em finais de semana?

Guerra: As gravações começaram em 2009 e demoraram bastante porque eu filmava apenas quando voltava de São Paulo para o Rio Grande do Sul, geralmente nas férias do começo e da metade do ano. O roteiro foi escrito em 2008, e é por isso que os personagens sempre falam que os acontecimentos do filme original (2001) foram sete anos antes. Durante esses dois anos de gravação, tive muitos problemas para conseguir reunir os atores principais do elenco, Rodrigo, Niandra e Eliseu, já que cada um deles escolheu um trabalho com plantão ou necessidade de viajar nos finais de semana. Se você rever o filme, preste atenção como muitos diálogos entre eles são filmados em plano e contraplano, mas nunca com os atores juntos no mesmo quadro. Isso acontece porque eles foram filmados separadamente e “unidos” na edição, a única forma para contornar o problema de que alguém sempre estava indisponível na hora da gravação. E embora a pré-produção tenha começado em 2008, eu até gostei de ter lançado o filme só agora, porque sem querer 2011 marca o aniversário de 10 anos depois do primeiro. Inclusive era para “Entrei em Pânico Parte 2” ter sido lançado em julho de 2010, mas eu não consegui filmar uma parte da cena final e acabei adiando o lançamento por mais um ano. O que foi bem melhor, porque eu pude editar com calma, com cuidado, e até refilmar algumas cenas que não estavam boas. A primeira cena do filme, por exemplo, foi totalmente refilmada em maio deste ano, dois meses antes da estréia oficial. E eu pude assistir e reassistir várias vezes até deixar com uma duração que eu acho que ficou ideal. Daquela versão que passou em julho no Fantaspoa, por exemplo, já cortei mais dois minutos de coisas que estavam sobrando, e agora não vou mais mexer, acho que finalmente ficou bom. Não foi fácil chegar na versão atual de “Entrei em Pânico Parte 2” porque eu tinha 30 horas de material filmado para fazer um filme de 82 minutos. Só aquela cena do massacre coletivo das meninas tem cinco horas de material gravado, porque foram feitos efeitos complicados de maquiagem e eu queria ter certeza de registrar o máximo possível para poder usar depois.

Baiestorf: Como está sendo a recepção do público? E já tem data para ser lançado em DVD?

Guerra: Vou te confessar, Petter, que tinha muito medo da reação do público, considerando que é uma continuação de um filme caseiro que todo mundo já ouviu falar mas quase ninguém viu. Felizmente, “Entrei em Pânico Parte 2” está fazendo um sucesso enorme por onde passa, o que até me surpreendeu. No Fantaspoa, por exemplo, a sessão de lançamento ficou lotada, com pessoas sentadas na escada do cinema. Depois, no final de julho, o filme passou no RioFan, no Rio de Janeiro, e fiquei estupefato ao saber que ganhamos o prêmio de 3º Melhor Filme pelo Júri Popular, batendo diretores “de verdade” como Alex de la Iglesia. Eu sempre digo que o único prêmio que me interessa é o do júri popular, nunca tive pretensões de participar de festivais para ganhar prêmios, troféus, medalhas, mas sempre gosto de saber que de alguma maneira o filme encontrou o seu público. E foi o que aconteceu no Rio de Janeiro, eu jamais esperava isso. Agora ele está seguindo o circuito de festivais, mandei para vários lugares do Brasil e para alguns países vizinhos, mas a gente sempre sofre com o preconceito que os festivais têm em relação a produções independentes que não são filmadas em película nem em HD. O DVD do filme será lançado no final do ano, porque estou preparando uma edição caprichada em disco duplo. Cortei quase 20 minutos de cenas para que o filme ficasse no tempo ideal, e pretendo colocar todo esse material no DVD, assim como making-of, erros de gravação e outras surpresas. Será o DVD mais caprichado que eu já fiz, e espero conseguir vender alguns vários exemplares, porque “Entrei em Pânico Parte 2” é a minha produção mais cara até o momento: gastei cerca de R$ 3 mil e já estou conformado que jamais recuperarei essa grana, ainda mais quando o filme cair na internet para download.

Baiestorf: Percebi uma evolução técnica no “Entrei em Pânico… 2”, principalmente nos efeitos especiais. Fale como foi essa evolução:

Guerra: Em relação aos efeitos especiais, eu e meu irmão Rodrigo fizemos uma oficina com o Rodrigo Aragão, diretor de “Mangue Negro” e “A Noite do Chupacabras”, em 2008, quando ele esteve em Porto Alegre para o Fantaspoa. A idéia era usar esses ensinamentos do Aragão para criar as cenas de morte do “Entrei em Pânico Parte 2”. Anotamos tudinho, compramos os materiais, mas na hora de treinar em casa, o resultado sempre ficava bem tosco. Resolvi então que faríamos apenas os efeitos mais simples da nossa forma improvisada de sempre, e o grosso dos efeitos especiais ficaria a cargo do Ricardo Ghiorzi, o melhor técnico de FX aqui do Sul do Brasil. Eu tive a sorte de o Ghiorzi simpatizar com a minha cara e fazer os materiais e o trabalho a preço de custo. (Só espero que ninguém leia isso e vá mendigar serviço dele como eu fiz, porque o cara é bom mesmo e merecia ser mais reconhecido e bem pago.) Com a ajuda do Ghiorzi, foi mais fácil criar umas mortes bem mirabolantes. E foi bom porque, pela primeira vez, eu podia dar asas à imaginação sem ficar travado pensando: “E agora, como vou fazer essa merda?”. Dessa vez eu simplesmente pensava em cenas absurdas e pedia para o Ghiorzi se dava para fazer. Foi assim naquele lance da cabeça serrada ao meio, que cai e esparrama todo o cérebro pelo chão. Isso nem estava originalmente no roteiro, eu só coloquei porque o Ricardo estava fazendo os efeitos para mim. E como eu sou um cara econômico, reaproveitei quase tudo que ele fez em mais de uma cena. O mesmo olho arrancado de um rapaz na metade do filme, por exemplo, é esmagado pelo Eliseu na cena final; a mesma cabeça decepada que ele fez com molde do rosto de uma menina eu usei outras três vezes no filme inteiro, inclusive para simular a cabeça de outros personagens! Quanto à evolução técnica, isso foi culpa do Rodrigo Aragão. Eu sempre falo para ele que, por causa do “Mangue Negro”, o padrão de qualidade para cinema fantástico independente brasileiro subiu às alturas. Porque antes, Petter, o padrão era os seus filmes, que também são baratos, então era razoavelmente fácil de atingir – até porque nós trabalhamos da mesma forma comunitária, econômica e improvisada. Aí apareceu o Aragão com aquele puta filme que é o “Mangue Negro”, e agora todo mundo – o público, principalmente – espera que você faça um “Mangue Negro” também! Óbvio que o “Entrei em Pânico Parte 2” está bem abaixo desse nível, ainda é uma produção caseira de R$ 3 mil, mas pelo menos eu já tive um cuidado muito maior com a parte técnica, com o som e com a qualidade da imagem (eu não uso iluminação artificial, mas me preocupei em aproveitar bem a luz natural nas cenas). Acredito que sempre é possível melhorar, mesmo não tendo dinheiro para gastar, e foi o que eu tentei fazer nesse filme. Agora pretendo manter o padrão nos próximos.

Felipe e parte da equipe de "Entrei em Pânico 2".

 Baiestorf: Em 2011 você me acompanhou no desafio de filmar 4 curtas em 2 dias e 2 noites no projeto intitulado “Páscoa Sarnenta”, no qual falhei e só consegui finalizar 2 curtas: “Filme Político Número Um” e “Pampa’Migo”. O que vai virar este material todo que você coletou durante as filmagens do projeto “Páscoa Sarnenta”?

Guerra: Deixa eu explicar de onde veio essa idéia: eu estava de bobeira, procurando qualquer coisa no Google, quando fiquei sabendo da existência de um documentário chamado “Lado B”, do Marcelo Galvão, que mostra as dificuldades que o diretor teve para filmar um longa independente chamado “Quart4B” com um orçamento de R$ 30 mil. O que me deixou meio revoltado com esse documentário é o seu subtítulo (“Como fazer um longa sem grana no Brasil”) e a sua proposta de falar sobre cinema independente “barato” entrevistando diretores como Fernando Meirelles e Ugo Giorgetti! Até porque esses caras aparecem comentando as “dificuldades” de fazer filmes “baratos” com 80 mil, 100 mil reais. Oh, coitadinhos! Aí eu pensei que para fazer valer esse subtítulo sobre longas sem grana, o diretor do documentário deveria ter entrevistado gente realmente independente, como você e o Rodrigo Aragão.  Foi quando surgiu a idéia de filmar uma espécie de “resposta” ao documentário do Galvão dando voz aos realmente independentes e aos realmente “baratos”. Como já foi feito algo parecido por aqui – o ótimo documentário “Sangue Marginal”, de Marco Antonio Vaz e B.R.Simonetti –, resolvi optar por uma outra pegada, mais parecida com o filme norte-americano “Popatopolis”, que acompanha as filmagens de um longa de baixíssimo orçamento do diretor Jim Wynorski. Meu objetivo era filmar os bastidores de um curta de Petter Baiestorf para mostrar como REALMENTE se faz cinema sem grana no Brasil, mas aí você surtou e resolveu que tentaria fazer quatro curtas num feriadão. Isso deixou o documentário ainda mais interessante, porque se trata de uma proposta inédita. No fim só saíram dois dos curtas, mas acho que a mensagem foi dada. Eu pretendo começar a editar este documentário no início de 2012. Ainda não tenho muita noção do que vai sair, porque preciso reassistir as quase 12 horas de filmagens. Mas é um documentário com grande potencial, muito engraçado, e que ilustra perfeitamente as verdadeiras dificuldades de se fazer cinema independente no Brasil. Acredito até que será uma aula, um vídeo de referência para qualquer pessoa interessada em fazer seu próprio filme sem grana.

Baiestorf: Tem previsão de quando este documentário irá ser lançado?

Guerra: Se tudo der certo, vou lançar ainda em 2012.

Baiestorf: Fale sobre as edições em DVD, cheias de extras, que você está preparando neste momento. Quando estarão disponíveis e qual será o preço final?

Guerra: Até hoje, só tenho um filme oficialmente lançado em DVD, que é o “Canibais & Solidão”, e mesmo assim foi um DVD feito às pressas, sem muito planejamento, só para atender a demanda. Circulam umas cópias do “Patricia Gennice” e do “Entrei em Pânico Parte 1”, mas são apenas ripagens de VHS sem nenhum material adicional. O que eu estou preparando no momento são edições caprichadas de cada um dos meus filmes, para ver se consigo comover esse público que tem interesse no negócio mas só pensa em baixar. Está me dando um trabalho enorme, mas a idéia inclusive é lançar “Entrei em Pânico” partes 1 e 2 e “Canibais & Solidão” em DVD duplo, com cenas excluídas, making-of e, no caso do “Entrei em Pânico Parte 1”, as duas versões (a original, com 120 minutos, e a reedição, com 72). O DVD do “Canibais & Solidão” terá um making-of chamado “Canibais & Confusão”, que vai explicar todos os problemas acontecidos durante as filmagens e mostrará algumas das primeiras versões das cenas que foram refilmadas. Se bobear, esse negócio vai ser mais engraçado que o próprio filme, porque tem várias imagens dos bastidores que flagram a gente brigando e quase se matando. Outra idéia é colocar tudo num box bonitinho e vender a um preço simbólico para quem quiser a coleção completa. Ainda estou fazendo os cálculos, mas o preço de cada DVD não será maior que 15 ou 20 reais. E meu objetivo ao relançar tudo agora é juntar recursos para comprar uma câmera HD.

Lúcio Reis, Felipe e eu na mostra "Cinema de Bordas 3".

Baiestorf: Você acredita que seu estilo de fazer cinema deva continuar livre a auto-sustentável?

Guerra: Livre sim, auto-sustentável já não sei. Como expliquei antes, eu adoraria que aparecesse alguém com grana sobrando para bancar minhas próximas produções, inclusive a distribuição e quem sabe o tão sonhado lançamento comercial. Alguém que dissesse: “Felipe, vê aí do que você precisa e eu vou atrás de tudo, preocupe-se apenas em fazer um filme legal e que me dê retorno financeiro”. Eu queria muito viver apenas do cinema, o que hoje é totalmente impossível, ainda mais da forma como estou fazendo. Inclusive eu viveria só de escrever roteiros, se isso fosse economicamente viável no Brasil, porque tenho mais idéias para filmes do que tempo e recursos para fazê-los.

Baiestorf: Você está adoravelmente canastrão no seu papel em “O Tormento de Mathias” (2010) de Sandro Debiazzi. Como foi o convite para você aparecer de ator neste filme?

Guerra: O Sandro me procurou numa das edições da mostra Cinema de Bordas, aqui em São Paulo, e disse que faria sua dissertação de mestrado sobre cinema trash, e que ia analisar a minha obra, a do Joel Caetano e sua própria filmografia, iniciada anos antes, também nos tempos do VHS. E aí ele me comentou sobre esse projeto que fazia desde sempre e nunca tinha conseguido terminar, e me identifiquei na hora por causa dos meus vários filmes cancelados, abandonados ou cheios de problemas durante as filmagens. O Sandro estava pensando em fazer um novo filme usando as imagens antigas como se fossem flashbacks, e perguntou se eu tinha interesse em fazer um dos papéis. Aceitei na hora, porque sempre quis ter essa experiência de participar de um filme independente de outra pessoa, para saber se eles têm as mesmas dificuldades e problemas que eu. O Joel Caetano, cineasta independente aqui de São Paulo de cujo trabalho eu gosto muito, também foi convidado. E o legal é que fizemos uma cena juntos, em que eu me divirto muito matando o personagem dele. Não sei se eu trouxe azar ao Sandro, mas ele teve tantos problemas durante as filmagens de “O Tormento de Mathias” quanto eu geralmente tenho nos meus filmes. Inclusive precisou filmar minha cena de morte duas vezes por causa disso, o que de certa forma foi bom, porque na primeira versão, que foi para o lixo, eu tinha deixado um bigodinho muito sem noção, e na versão oficial já fiz um upgrade para um cavanhaque. Eu não sou ator, nunca tive sequer a pretensão de atuar, e alertei o Sandro desde o começo de que seria canastrão e exagerado. Ele tentou me controlar em alguns momentos, mas não teve jeito – e também fez questão de escrever um personagem gaúcho ao perceber que seria impossível disfarçar o meu sotaque. Me diverti muito durante as filmagens. O Sandro também faz tudo sozinho, inclusive os efeitos especiais, mas é bem mais organizado do que eu. Até ficava puto com ele porque nunca queria fazer muitos takes, nem tentar ângulos diferentes, já estava com tudo prontinho na cabeça e não queria ter coisa a mais para se preocupar. Há pouco tempo batemos um papo e ele sugeriu a possibilidade de fazer um “Tormento de Mathias 2”. Já pedi para não me deixar de fora, pois seria interessante aquele clichê tão sem vergonha do meu personagem morto no primeiro filme ter um irmão gêmeo em busca de vingança neste segundo…

Baiestorf: Em 2011 você fez papéis em mais 3 curtas independentes: “Morte e Morte de Johnny Zombie” (de Gabriel Carneiro), “Vermibus” (de Rubens Mello) e “Pampa’Migo” (dirigido por mim). Conte como foram essas produções. Pretende investir na carreira de ator canastrão?

Guerra: Como eu disse antes, nunca me imaginei como ator, todas as aparições que fiz antes de “O Tormento de Mathias” foram nos meus próprios filmes, e não porque eu queria ou gostava de atuar, mas sim porque eram papéis mais constrangedores que ninguém queria fazer. Inclusive eu admiro muito caras como você e o Joel Caetano, que são ao mesmo tempo excelentes diretores e ótimos atores, principalmente o Joel. Mas eu gosto de participar desses projetos quando me convidam, faço questão, principalmente porque sempre tive a postura de ajudar um colega cineasta independente quando ele precisa de ajuda. Lembro que quando eu comecei, lá na metade dos anos 90, era muito difícil trocar informações com quem fazia filmes por causa do problema da comunicação, que na época era por carta ou telefone, e quando a internet apareceu, um dos primeiros caras que “compartilhou o conhecimento” foi o Pedro Daldegan, que fazia curtas em VHS desde o final da década de 80. Por isso eu fico furioso ao constatar que hoje, com tanta facilidade para entrar em contato e trocar experiências e informações, ainda existem muitos grupinhos fechados que não se misturam, que não querem saber do trabalho dos outros, que acham que são os fodões e o resto todo é lixo. Sempre que eu converso com o pessoal que produz cinema independente nos festivais como o Cinema de Bordas, eu lamento o fato de que muitos realizadores ainda enxergam o trabalho do outro como concorrência, uma atitude estúpida e mesquinha, ainda mais nesses tempos em que ninguém está ganhando dinheiro e deveríamos unir forças. Assim como o Aragão fez convidando você, o Joel e o Cristian Verardi para o filme dele “A Noite do Chupacabras”. Eu também convidei o Joel para um curta de custo zero que quero fazer aqui no meu apartamento nos próximos meses, e esse filme será realizado em parceria com um outro diretor independente, o Fritz Martiliano da Silva. Assim vamos unindo forças, cada um ajudando no filme do outro. Eu sempre ajudei quando me pediram ajuda e sempre me coloquei à disposição, porque acho fantásticas essas somas de esforços. Todo mundo sempre aprende algo. Hoje você pode entrar no Google e encontrar mil receitas de sangue falso, mas mesmo assim eu sempre respondo e-mails de jovens realizadores me pedindo como fazer sangue falso. Se eu posso ajudar em alguma coisa, ajudo com todo prazer – menos financeiramente, porque não tenho dinheiro nem para os meus filmes. Se diretores como o Sandro, o Rubens e o Gabriel acham que eu vou acrescentar alguma coisa aos trabalhos deles, participo com o maior prazer, mas sempre alertando para o fato de que não sou ator e faço tudo por brincadeira. Inclusive eu lamentei por minha participação aí em Palmitos ter sido tão pequena, queria ter mostrado mais os meus dotes de canastrão no curta “O Monstro Espacial”, que infelizmente foi cancelado (nota de Baiestorf: “O Monstro Espacial” foi um dos curtas do projeto “Páscoa Sarnenta” que não consegui filmar por culpa de um dia inteiro de chuvas). Mas é por aí: se precisar estou à disposição. Falando um pouco mais sobre essas produções de que participei, “Morte e Morte de Johnny Zombie” é o primeiro filme do jornalista Gabriel Cauduro, que é colaborador da excelente revista virtual Zingu. Ele tinha me convidado há um tempão, e fiquei feliz porque foi minha primeira participação como ator num papel romântico e ao lado de uma menina bem bonita, já que geralmente só “interpreto” gays, travestis e vítimas de assassinos psicopatas. E fiquei impressionado com o talento e o perfeccionismo do Gabriel e de toda a equipe dele, poucas vezes vi um set “independente” tão organizado. O “Pampa’Migo”, que fizemos aí em Palmitos, foi mais uma participação especial relâmpago, não tive a oportunidade de fazer muita coisa, mas pelo menos eu te diverti com minhas expressões faciais exageradas. Caro leitor, saiba que o Petter me sacaneou porque eu fiz a burrada de dizer que não gostava de salame, e aí ele colocou meu personagem para comer salame, e ainda repetiu a cena umas oito vezes até eu quase vomitar, com a cumplicidade do seu astro de estimação Jorge Timm, que malignamente separava os pedaços maiores para que o meu personagem “comesse” – personagem, aliás, que foi batizado “Cagão” num daqueles momentos de pura sensibilidade e poesia do roteirista Baiestorf. Finalmente, minha participação no “Vermibus” também foi bem pequena, filmada basicamente numa manhã, de modo que insisti para o Rubens gravar uma outra cena alternativa comigo, e depois se ele quiser colocar no corte final ou não é problema dele. Foi igualmente um trabalho bem divertido, com pessoas interessadas e dedicadas. Nos três filmes (quatro com “O Tormento de Mathias”), aprendi várias coisas que pretendo usar nas minhas próximas filmagens, principalmente em relação à organização do set de filmagens.

Joel Caetano, Rodrigo Aragão, eu, Talita Capozzi, Guerra e Walderrama dos Santos.

Baiestorf: Que dicas você dá aos jovens que queiram começar a produzir filmes independentes?

Guerra: Que façam seus próprios filmes. Que não dêem bola para críticas e observações maldosas dos outros, principalmente de estudantes de cinema metidos que gostam de dizer que tudo no trabalho dos outros está errado, já que se sentem “ameaçados”. Que procurem formar um grupo de amigos e familiares leais e fiéis, um grupo que fique unido não só quando tudo é festa, mas também quando começa a dar merda e você precisa regravar metade das cenas. Principalmente, que expulsem de perto todos aqueles caras chatos que insistem em ficar criticando, reclamando, dizendo “Isso não dá pra fazer”. De um jeito ou de outro, tudo dá pra fazer. Eu gostaria que essa nova geração de cineastas independentes se inspirasse mais no meu trabalho, no seu, Petter, no do Joel… Enfim, nesse tipo de cinema feito por amor e com criatividade, improviso, sem dinheiro, e não aquele cinema burocrático das leis de incentivo à cultura, dos cursinhos de cinema, cheio de frescuras, que praticamente tira a vontade do cara de continuar produzindo. Sei que muita gente prefere ficar choramingando que não dá pra fazer, que não tem dinheiro, que não tem ajuda, que não tem isso ou aquilo. Mas caramba, assistam “Extrema Unção” no YouTube, um filminho com começo, meio e fim feito com amigos e familiares, que custou menos de 50 reais e rendeu 500 numa tacada só! Não dá pra fazer? Claro que dá! Talvez não fique exatamente como você quer na primeira ou na segunda vez, mas continue insistindo até acertar. Claro, não pode querer começar com um projeto megalomaníaco de filme independente de zumbis com mil figurantes, é preciso trabalhar adequado à sua realidade. O importante é não deixar de fazer, mas fazer menor, contornar as deficiências com criatividade. Enfim, FAÇAM SEUS FILMES! Acreditem, vocês não precisam de dinheiro para fazer, e está aí o Petter Baiestorf que pode confirmar isso até melhor do que eu. Vocês não precisam de equipamento profissional para fazer, e hoje é facílimo arranjar uma câmera simples para filmar com um mínimo de qualidade. E, principalmente, vocês não precisam de curso ou de faculdade de cinema. Se quiser muito fazer, faça; não tenho nada contra a busca de conhecimento. Mas não se sintam diminuídos por não serem “formados” em cinema, porque ver filmes (principalmente filmes ruins) e tentar fazer na prática ainda é a melhor escola. Werner Herzog já dizia: “O cinema é uma arte de analfabetos, não de eruditos”. Enfim, parem de choramingar que hoje vocês têm tudo na mão, podem fazer uma busca no Google e em cinco segundos aprender tudo que precisam para fazer uma pequena superprodução caseira. E já não precisam mais editar filmes com dois videocassetes, o que já elimina uns 70% da dificuldade e do sofrimento do processo! Menos choro e mais filmagem, garotada!

Baiestorf: Palavras finais e como os leitores do Canibuk podem adquirir teus filmes?

Guerra: Hã, e será que ainda tem alguém lendo isso? Bem, Petter, queria dizer que foi uma grande satisfação ter respondido a essa entrevista, eu sempre acho ótimo responder perguntas de alguém que tem interesse e conhecimento de causa na hora de questionar, para fugir de coisas como “O que você faria se tivesse um milhão de reais?”. Eu espero que não tenha sido muito chato, e que tenha conseguido incentivar mais pessoas a fazer seus próprios filmes. Espero também que mais gente tenha se interessado pela minha obra, os novos DVDs começarão a ser vendidos no final do ano, talvez começo de 2012. Então fiquem ligados que em breve poderão comprar meus filmes e o novo “Entrei em Pânico Parte 2”, que, espero, ainda será exibido em vários festivais Brasil afora, talvez até em algum cinema perto de você, leitor. E queria concluir falando que estou com alguns novos projetos para o ano que vem. Ainda este ano, começo a produção de um longa de horror dividido em três episódios sobre o Sanguanel, uma figura do folclore ítalo-gaúcho. Além de produzir, vou dirigir uma das histórias, e as outras serão escritas e dirigidas pelos meus amigos Eliseu Demari e Rafael Giovanella. Também quero acabar de escrever e começar a filmar uma comédia romântica em forma de road movie sobre dois amigos viajando pelo litoral rio-grandense. Os dois filmes serão feitos do meu jeito, com (pouco) dinheiro tirado do bolso e ambos gravados em mini-DV. E continuo com aqueles projetos dos sonhos, que pretendo começar a encaminhar também no ano que vem: meu filme de faroeste que homenageia o spaghetti western italiano, e a continuação não-oficial de “Perdidos no Vale dos Dinossauros”. Como sempre, muitos projetos e pouco tempo para filmá-los – fora os roteiros que tenho prontos e por gravar, tipo “Puteiro Sangrento”. Portanto, longa vida ao cinema independente brasileiro, e que as “bordas” continuem produzindo todo tipo de filme, terror, comédia, ação, musical, ou tudo misturado. Enfim, façam seus próprios filmes e do jeito que quiserem, porque se formos depender desses caras que têm as ferramentas e os recursos de mão-beijada, estamos todos fodidos e com coisas tipo “Se Eu Fosse Você Parte 15” sendo enfiadas goela abaixo!

Baiestorf: Obrigado pela entrevista Felipe, e queria deixar dito aqui, publicamente, que me coloco a sua inteira disposição para fazer papéis e ajudar na produção dos dois projetos seus: A continuação-picareta de “Perdidos no Vale dos Dinossauros” (sou fã do original) e seu spaghetti  western, adoro o western italiano que na minha opinião é melhor do que os originais americanos. Está nos meus planos produzir/escrever/digirir outro western além do “Ninguém Deve Morrer”, quando produzi este vi que é relativamente fácil e barato organizar westerns.

Felipe Guerra e eu na mostra Cinema de Bordas 3 (2011).

Momento Imperdível de sua Vida

Posted in Vídeo Independente with tags , , , , , , , , on junho 29, 2011 by canibuk

Cristian Verardi traz até Porto Alegre a sessão “A Vingança dos Filmes B”, composta de cinco filmes independentes dos diretores Joel Caetano, Felipe Guerra, Gustavo Insekto, Filipe Ferreira e Petter Baiestorf.

A sessão começa às 17 horas do dia 02 de julho (sábado) na Usina do Gasômetro, sala de cinema P.F. Gastal e é a oportunidade única para você ter o momento mais imperdível de sua vida assistindo aos cinco filmes lindos programados com direito à, depois da exibição maravilhosa, um debate inteligentíssimo e sério com os diretores de tão belos filmes!

Preencha sua vida com este momento de alegria e diversão ao lado de vários caras legais!

IMPORTANTE: Fale que você é leitor do Canibuk e entre de graça!!!!

Canibuk entra hoje nuns 20 dias de férias prá curtir o friozinho do inverno, depois Leyla e eu postaremos algumas fotinhos de nossas férias e novas novidades da cultura obscura/underground mundial! (Aliás, este post é o de número 401, aproveite nossas férias para ler os posts antigos e ajude a divulgar o blog).

Até breve!!!!