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Iara – A Sereia do Pantanal

Posted in Literatura with tags , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , on janeiro 24, 2019 by canibuk

Reza a lenda que foi mais ou menos pra lá dos cafundós do Pantanal que você encontrou Iara, a sereia das lendas indígenas que te assombravam quando criança.

No dia em que seu marido lhe falou sobre o plano de assaltar aquele casal de fazendeiros ricaços, seu sexto sentido de mulher grávida, lhe fez coçar as orelhas. Você sabia que devia seguir sua intuição e não ir junto, afinal estava grávida de sete meses de seu primeiro filhinho. Somente isso seria motivo mais do que suficiente para que ficasse naquele grande e caro apartamento, que possuíam graças aos roubos e seqüestros.

Você sabe que seu marido a teria deixado ficar no apartamento, mas sua ganância foi maior do que a coceirinha que você sentia atrás da orelha. Na verdade, você era viciada na adrenalina dos assaltos, na sensação de poder que o empunhar de uma arma lhe proporcionava, e queria estar lá, junto, tocando o terror naquelas pobres vítimas.

E você pensava ainda que aquele casal de ricaços idosos não tinha nada que guardar tanto dinheiro em casa. Que colocassem num banco, porra! Ou que pagassem pela segurança do dinheiro, não é mesmo? Fosse o que fosse, você queria aquele dinheiro todo pra si porque queria continuar bancando sua vida de luxo e de mordomias mil.

Você se sentia especialmente poderosa na noite em que foram assaltar os velhos. Você, seu filho de sete meses se remexendo animado em seu útero, seu marido com um sexy olhar de assassino carrasco e João, o informante paspalhão que cantou tudo sobre o casal de sovinas ricaços. O informante que vocês já haviam decidido matar após estarem com o dinheiro, afinal, agora você trazia mais uma boca para alimentar e dinheiro nunca é demais.

Vocês quatro estacionaram o carro perto da fazenda, se armaram até os dentes e calmamente seguiram sob o luar até a casa grande onde os velhos viviam sós. Sozinhos e abarrotados de dinheiro e joias, muito dinheiro e muitas joias, coisa de velhos que não confiam nos outros para guardar suas riquezas.

Era muito fácil, não?

Era só entrar na casa, atirar nos velhos e procurar com toda a calma do mundo o local onde guardavam o dinheiro e as joias. Tinha tudo para ser moleza demais, não?

Como adivinhariam que, no momento de render o casal, já dentro da casa, aqueles velhos filhos da puta estariam limpando suas armas? Como adivinhariam que o velho estaria com uma doze nas mãos e a velha, com uma espingarda de caça, como se estivessem esperando os assaltantes?

Você mal assimilou qual era o objeto que o velho carregava nas mãos quando ouviu o estampido do tiro que arrancou a cabeça de seu marido, fazendo com que toda a parede atrás dele se salpicasse de carne moída triturada e esmigalhada.

Você ficou ali, parada, surpresa, vendo seu marido sem cabeça em espasmos, tombando ao chão. E, antes que pensasse em reagir, ouviu o tiro da espingarda de caça que lhe atorou o braço esquerdo fora a fora, deixando-o meio pendurado em seu corpo.

A dor que você sentia era intensa, mas quando você viu João se mandar correndo escuridão adentro, você sacou que, mesmo com seu braço dependurado junto ao corpo, mesmo com seu filho agitado dentro de sua barriga lhe chutando nervoso como quem pede para que faça a coisa certa, você também precisava se mandar dali.

E você se mandou.

Com forças sabe-se lá d’onde conseguidas, você ignorou a dor e correu em direção ao carro, mas já era tarde, agora você o via se afastar já longe, pois João era só “rodas pra que te quero” para salvar apenas seu próprio rabo.

Confusa, sem saber muito bem o que fazer, você correu o máximo que pôde para dentro dos banhados do Pantanal que circundavam a fazenda dos velhos.

E você correu por um bom tempo pântano adentro. Correu e correu muito, até não aguentar mais e desmaiar sobre seu braço dependurado por um mix retorcido de carne e ossos.

Você já não sentia mais seu filho chutando sua barriga, alucinadamente, como se pedisse sua atenção. Você simplesmente não tinha mais forças para aguentar aquela dor toda e só queria desmaiar em paz e que, de agora em diante, fosse o que o diabo tivesse lhe reservado.

Assim, você não percebeu quando aquela velha senhora centenária, completamente enrugada e de lento andar, encontrou seu corpo todo fodido e o arrastou até o casebre construído sobre palafitas num rio qualquer do pantanal.

Você não despertou de seu desmaio enquanto a velha limpou seus ferimentos com um paninho úmido. Também não acordou quando a idosa retirou toda sua roupa e ficou, por um longo tempo, contemplando sua barriga de grávida. Barriga essa que fazia a senhora do pântano abrir um tenro sorriso em seu rosto carcomido pelo tempo.

Você não acordou quando a velha imobilizou com cipós suas pernas e seu braço ainda inteiro. O outro braço, inútil, não foi necessário imobilizar.

Você só acordou quando sentiu o facão empunhado pela velha senhora lhe rasgar a barriga. Aí sim, de um único suspiro, você recobrou a consciência sentindo as mãos da velha entrando em seu útero e arrancando de seu interior quentinho seu inocente filho.

Você tentou se livrar dos cipós, mas a dor lhe impossibilitava de ter as forças necessárias para se desvencilhar das amarras bem apertadas, no estilo indígena do Pantanal.

Urrando de dor, você viu quando a velha se afastou vagarosamente carregando seu filho banhado de seus líquidos gotejantes. Você sentiu o cordão umbilical se esticar até se romper por completo.

Sem forças nem para morrer, você viu quando a velha largou seu filho prematuramente nascido sobre a mesa da simplória cozinha do casebre. Seu filho que se remexia desesperado tentando chorar ou, simplesmente, gritar, sabendo que você o meteu naquela furada.

Você ainda viu a velha começar a preparar o que parecia ser uma refeição. Viu quando ela picou uma cebola inteira, acompanhada de três dentes de alho, salsinha a gosto mais cebolinha verde, para dar o gostinho da felicidade. Você a viu pegar quatro batatas e cortar em rodelas, logo antes de triturar cinco tomates num moedor de carne manual. Pelo jeito, a velha senhora adorava um molho bem grossinho. Manjericão, folhas de louro e um punhado de coentro também foram reservados para o delicioso prato que você via tomar forma diante de seus últimos minutos de vida.

Você ainda pensou, naquele instante, que, se tivesse ficado no conforto de seu grande e caro apartamento, poderia ter proporcionado segurança ao seu pequenino rebento ainda não assado. Mas, “e se” é algo que não existe. O que foi feito é o que foi feito. E ali estavam vocês, tu e teu filho, a mercê de uma cozinheira de tão rebuscado paladar. Você nos últimos suspiros e ele pronto para entrar na panela.

Seus pensamentos voltaram-se ao momento presente, quando você viu a velha senhora colocar banha de porco numa bandeja. Não muito, lógico, somente o suficiente para não deixar as carnes de seu filho grudarem no utensílio doméstico.

Você ficou completamente aterrorizada quando viu seu filho ser colocado na bandeja junto das batatas picadas. Você gritava de pavor enquanto a velha acrescentava os temperos e seu filho chorava indefeso, tomando o cheiro e o gosto de tão deliciosas especiarias.

Você ainda viu quando a senhora abriu a pequena portinha de seu forno de barro já pré-aquecido e enfiou seu filho lá dentro, fazendo com que a choradeira da criança logo se acabasse após alguns gritinhos mais agudos de dor. Ser assado vivo em tão tenra idade não é mole não, mamãe!

Você viu! Você viu! Você viu tudo, querida mamãe!

O silêncio desolador que você sentiu naquele momento lhe amorteceu os sentidos. Embora você soubesse que deveria sentir toda a dor do mundo – e ainda ser merecedora dessa dor – você nada sentiu quando a velha serrou seu crânio com um velho serrote sem fio.

Você apenas morreu em silêncio, aterrorizada, olhando cegamente para o forno de barro onde seu filho agora assava para compor o mais fantástico dos pratos macabros.

Morta, você nada mais sentiu quando a velha retirou de sua casca sem vida seus miolos ainda fresquinhos. Você nada sentiu quando ela passou sua massa cinzenta no moedor de carne e nada viu quando ela misturou aos tomates moídos que seriam cozidos com muito alho, cebola e uma pitadinha de manjericão com coentro.

Seu corpo morto não viu quando a velha senhora retirou seu filho assado do forno de barro e acrescentou o molho de miolos à gordura de porco que borbulhava na bandeja, deixando as carnes de seu filho crocantes, mas, ainda assim, macias.

Você não viu quando o tétrico prato ficou pronto e a velha o salpicou com muita salsinha e cebolinha verde.

Não viu quando ela cheirou o prato alegrando-se com o aroma indescritível de tão rara iguaria.

Você ali, morta, não viu o prazer magnânimo que a velha sentiu em suas papilas gustativas a cada grande naco da carne bem temperada de seu filho assado, que ela devorava com apetite voraz. A velha parecia estar a vida toda sem comer. E talvez até estivesse.

Você não viu a velha comer todo o seu filho, limpando até o último pequeno ossinho nem bem formado e lambendo os dedos engordurados para então, somente então, dar-se por saciada.

Ali, morta, você nem sequer imaginou que seu filho, e seus miolos, fossem ingredientes de um satânico ritual de uma milenar lenda do Pantanal, parte de um banquete de rejuvenescimento da sereia Iara, a bruxa canibal dos rios brasileiros.

Se você tivesse agüentado viva mais alguns minutinhos, teria visto que após o banquete a velha senhora sofreria uma sanguinolenta metamorfose, em que suas flácidas carnes de idosa centenária amoleceriam fazendo que, de seu interior gosmento, uma nova Iara belíssima, com rabo de sereia e tudo, saísse lá de dentro tal como uma borboleta deixa seu casulo, voltando a ser uma encantadora mulher-peixe, que voltaria a nadar nos rios, hipnotizando ribeirinhos e devorando solitários pescadores que se aventuram pelas alucinantes noites do Pantanal.

Escrito por Petter Baiestorf.

ilustração de Marcel Bartholo.

Fevereiro de 2018.

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O Cu: Moleza com Sacanagem Total

Posted in Bizarro, Fanzines, Literatura, Quadrinhos with tags , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , on novembro 8, 2018 by canibuk

Moleza com Sacanagem Total

I.

O deserto tentou me engolir. Pulei fora e rolei em direção de uma grande e úmida circunferência. Tal circunferência possuía um odor característico fácil de ser identificado. Sim, possuía odor de cu. Era um cu gigante logo abaixo de um imenso deserto de pele e não areia como os bobos imaginaram. Tudo estava claro agora, claro como uma trepada gostosa sobre a relva e eu sempre tive razão: O cu era uma circunferência, portanto, redondo. Beijo o cu gigante feliz porque sempre estive certo e os professores é que estavam errados. O belo cu é redondo !!! Re-don-do !!! Olhando diretamente para o buraco que havia no centro de tão enorme e poderoso cu, vejo uma luz no fim do reto. Fiquei deverás curioso, pensando cá com meus ovos, louco para saber o que poderia haver no fundo do cu, se é que cu tem fundo. Será que no fundo do cu haveriam criaturas monstruosas ? Vermezinhos falantes ? Lombriguinhas dançantes ? Bactérias fecais intelectualizadas pela Globo ? Realmente estou muito curioso…

II.

O amor caiu junto da sujeira e ficou sujo. Com um pequeno esforço consegui entrar no cu ciente que se não conseguir ver as criaturinhas do cu – Culenses ? – finalmente ei de saber o que é aquela luz que brilha no interior do cu.

III.

Caminhei sempre seguindo em direção a luz que brilhava no horizonte pomposo. Meus pés afundavam na merda amolecida a cada passo. Cansado sentei num caroço sangrento que havia na tripa grossa. Parecia ser o início de uma úlcera maligna. O sangue meio coagulado, meio líquido, molhou minha bunda. Ironia ou não do destino, mas o fato é que agora havia um cu dentro de um cu, ou seja, meu cu dentro daquele enorme cu solitário no deserto de pele. Melhor um cu dentro de um cu do que um cu com cu. Porém, para minha surpresa, o tal cu gigante possuía vários cuzinhos em seu interior. Suas paredes cheias de remelas e cascas fecais secas possuíam uma imensa galeria de cus de todos os tipos e variados cheiros. E para espanto geral, aqueles cuzinhos pequeninos falavam. Porra do caralho caralhudo, um cu gigante que tem vários cuzinhos e um cuzão dentro dele. Aliás, tem dentro dele um cuzão com seu próprio cu, perplexo, olhando descaradamente para a parede de cuzinhos falantes. Bem, aproveitarei a oportunidade e farei perguntas, como todo bom curioso deve se portar.

IV.

Sentado na úlcera pergunto aos cuzinhos do cu sobre a misteriosa luz que havia a nossa frente. Eles, sempre em coro – depois descobri que todos os cuzinhos faziam parte de um único cérebro pensante e todo poderoso – me respondem que aquela luz é o centro do Universo e que dali surgiu tudo já expurgado para dentro da humanidade. E completam ainda que todos são iguais perante a luz e aqueles que são diferentes são expurgados de volta a humanidade. Pensei: “Porra, eu sou diferente !!! Sou um cuzão humano com um cu e não um cu soberano com vários cuzinhos !”. Os cuzinhos gargalham debochando de mim. A luz, o centro de todo o Universo, faz um estrondo ensurdecedor e gases me carregam para fora do enorme cu que havia no deserto de pele. Enquanto vôo para fora do todo poderoso cu que rejeita os diferentes, fico pensando: “Bem que isso tudo poderia se chamar ‘O Centro Da Humanidade É Uma Luz Sem Forma Com Pequeninos Guardiões Que Falam Toda E Qualquer Língua’ !!!” e no chão caio, batendo minha cabeça no deserto, esfolando meu queixo. Finalmente sei de toda a verdade, mas acho que não irá adiantar nada pois certamente passarei por um profeta do caos enlouquecido e a esmo deverei vagar pela eternidade.

Texto de Petter Baiestorf.

Em 2000 o desenhista Reginaldo criou a HQ “O Cu“, inspirado no texto “Moleza com Sacanagem Total“, que editei no fanzine ARGHHH #29, e versava sobre o cidadão classe média brasileiro. Segue o resgate da HQ aqui:

O Pântano, O Fim das Coisas & Nimbus: Poesias de Augusto dos Anjos

Posted in Literatura with tags , , , , , , , , on dezembro 19, 2016 by canibuk

O Pântano

Podem vê-lo, sem dor, meus semelhantes!…

Mas, para mim que a Natureza escuto,

Este pântano é o túmulo absoluto,

De todas as grandezas começantes!

.

Larvas desconhecidas de gigantes

Sobre o seu leito de peçonha e luto

Dormem tranqüilamente o sono bruto

Dos superorganismos ainda infantes!

.

Em sua estagnação arde uma raça,

Tragicamente, à espera de quem passa

Para abrir-lhe, às escâncaras, a porta…

.

E eu sinto a angústias dessa raça ardente

Condenada a esperar perpetuamente

No universo esmagado da água morta!

.

O Fim das Coisas

Pode o homem bruto, adstrito à ciência grave,

Arrancar, num triunfo surpreendente,

Das profundezas do Subconsciente

O milagre estupendo da aeronave!

.

Rasgue os broncos basaltos negros, cave,

Sôfrego, o solo sáxeo; e, na ânsia ardente

de perscrutar o íntimo do orbe, invente

A Lâmpada aflogística de Davy!

.

Em vão! Contra o poder criador do Sonho

O Fim das Coisas mostra-se medonho

Como o desaguadouro atro de um rio,

.

E quando, ao cabo do último milênio,

A humanidade vai pesar seu gênio

Encontra o mundo, que ela encheu, vazio!

.

Nimbus

Nimbos de bronze que empanais escuros

O santuário azul da Natureza,

Quando vos vejo negros palinuros

Da tempestade negra e da tristeza,

.

Abismados na bruma enegrecida,

Julgo ver nos reflexos da minh’alma

As mesmas nuvens deslizando em calma,

Os nimbos das procelas desta vida;

.

Mas quando céu é límpido, sem bruma

Que a transparência tolda, sem nenhuma

Nuvem sequer, então, num mar de esperança,

.

Que o céu reflete, a vida é qual risonho

Batel, e a alma é a flâmula do sonho,

Que o guia e leva ao porto da bonança.

por Augusto dos Anjos.

“Eu & Outras Poesias Vol. 2”, editora Civilização Brasileira, 1982.

Entrevista com: Augusto dos Anjos.

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O Beco das Almas Famintas

Posted in Literatura, Livro with tags , , , , , , , , , , , , , , , , , , , on outubro 1, 2016 by canibuk

img022Acabei a leitura do romance “O Beco das Almas Famintas” de uma tacada só, curtinho e envolvente, escrito pelo Erivaldo Mattüs que por anos editou o fanzine “Spermental” e que já foi ator de Gurcius Gewdner no fantástico curta-metragem “Erivaldo – O Astronauta Místico”. Drogas, sexo e fanatismo religioso de um mundo pervertido contado em  linguagem direta e sem rodeios quase como se fosse um roteiro de um grindhouse transformado em romance.

Sinópse: “Quando alguns mendigos são misteriosamente assassinados no centro da Cidade Sereia, três cidadãos bem sucedidos têm suas vidas progressivamente destruídas: Antenor, um executivo playboy egoísta; Cláudio, um luxurioso técnico em eletrônica e Sauro, um pastor evangélico que tem a ganância por sobrenome. O enredo, mostra a escalada do trio rumo ao fracasso, de seu presente estável até suas quedas meteóricas; seguindo em narrativas paralelas até cruzar o destino dos personagens no abandonado e famigerado “Beco dos Invisíveis”, lugar no centro de Sereia onde as desgraças são mais cotidianas e inacreditáveis do que sonha nossa vã filosofia.”

O Beco das Almas Famintas é o primeiro romance de E. Mattüs. A narrativa traz elementos que vão desde a marginalidade de Bukowski ao horror de Edgar Allan Poe, tudo ambientado em um absurdo universo kafkiano. Em tiragem numerada de 150 exemplares, a edição usa e abusa de papéis de qualidade duvidosa e estética “trash”, ao longo de 48 páginas, encadernadas em costura de 3 pontos. O livro foi lançado pela editora independente recifense Livrinho de Papel Finíssimo e é o sexto volume da coleção romanesca LiteraTara.

O que?

O Beco das Almas Famintas. Autor: E. Mattüs. Editora: Livrinho de Papel Finíssimo. Ano: 2016. Preço: R$20,00 (Envio simples: 22,00; Carta Registrada: R$25,00). Contato: katarru_podre@hotmail.com/ (82) 99945-8090. Facebook: MattüsMattüs. Instagram: @mattus.ausente

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Abaixo o primeiro capítulo de “O Beco das Almas Famintas”:

Quando a esmola é uma chuva de balas.

Quem transita pelo centro da cidade Sereia pode encontrar tudo o que precisa para exercer o materialismo a rigor. De cama, mesa e banho a eletroeletrônicos e made in china, o comprador pode desfrutar de todas as visões necessárias para abrir a carteira e deixar parte de sua fortuna em qualquer recinto. Odor suave de esgoto pairando no calçadão das ofertas vazias. Queima de estoque. Ao comprar, o ser humano adquire existência. Todavia, aberta a embalagem, o sentimento de satisfação é transformado numa estranha sensação de engano ou frustração. Com a realização do desejo consumista, o objeto adquirido perde o encanto e cede sua vez a uma nova fantasia material.

Porém, nem todos os transeuntes têm o poder aquisitivo necessário para existir. E para esta estirpe maldita é reservado o chamado “Beco dos Invisíveis”. Um reduto dos ignorados, criaturas das quais não se pode vampirizar qualquer espécie de lucros. Habitat natural dos moradores de rua e criaturas inexistentes aos olhos bem sucedidos dos consumidores. Numa viela, ao final de um labirinto com ruas curtas, fica este ambiente inóspito. Um forte cheiro de esgoto misturado ao de eletrônicos embalados acaba resultando num cheiro de merda tão natural quanto a fumaça da combustão automotiva. Uma pocilga abandonada aos seus 6 residentes. Caixas de papelão formam casas. Carrinho de supermercado vira armário. Uniformes velhos e camisetas de políticos ditam a moda. Eis o bendito lar de Alex, José e Simão. Os três reis magros que, na melhor das hipóteses, podem ofertar ao mundo uma pequena faceta da miséria criada por uma sociedade cruel.

São dez da matina e uma chuva rasa antecede o Sol picante. O vapor se eleva do concreto criando uma sauna natural. Pessoas andam mais rápido, enquanto lojas de ar condicionado faturam mais. Alex devora meia quentinha, Zé tasca a primeira pedra do dia no cachimbo e Simão continua a soltar suas profecias esquizoides:

— Este beco é a chave da penitência humana. Toda dor e culpa desse mundo maldito veio parar aqui e nós pagamos o preço! Só estamos aqui por culpa de todos vocês, seus desgraçados! Vocês são os culpados! Berrava o velho vagabundo.

— Cala a boca, porra! Nem tá doido de cana e já está falando merda! Explodiu Zé, depois do primeiro beijo na lata.

E explodiu mesmo! A fumacinha com gosto de plástico invadia seu corpo de forma devastadora. Paranoia, alucinações e mania de perseguição por fora, mas dizem que o que conta é como somos por dentro. Quanto a isso, Zé se sentia o rei do mundo. Um príncipe em seu reinado a céu aberto. Sensação esta, semelhante à de Alex que não reclamava nem repreendia, apenas soltava pequenos arrotos em sinal de total satisfação.

Refeições, drogas e ideias expostas em mais um fatídico dia que chega à metade. O trio desventurado compartilha a primeira lata de cachaça, Simão era o mais alvoroçado. Cada gole descia com a urgência de um antídoto ao mais maldito de todos os venenos, a sociedade. Zé — Caralho! A fissura tá voltando, mas dá pra segurar com a cana. Simão — Maldito sejas tu que trocasses o néctar divino pela pedra do diabo! Alex — Essa porra tá me deixando enjoado, acho que vou deixar uma bacia aqui de lado porque, se eu vomitar, é só jogar uma farinha por cima que já tenho a janta…

Simão — A autossuficiência é o segredo do sucesso! Os três soltam uma gargalhada uníssona.

No horário de almoço, o trânsito humano aumenta. Os ébrios cabisbaixos nem percebem que alguém passa pela calçada em que descansam e atira em cima dos três uma verdadeira chuva de balas. Framboesa, morango e abacaxi. Acho que o indivíduo veio de mão cheia e simplesmente abriu a palma em cima de nossos heróis. Ao erguerem a vista, só perceberam o anônimo de costas prosseguindo seu destino. Usava uma camiseta estampada com flores, daquelas bem bregas que se compram em brechós. Apesar do mau gosto, abençoadas sejam as almas generosas que habitam a selva de pedra.

— Deus lhe dê em dobro! Alex foi cordial em nome do trio.

É óbvio que os doces viraram tira-gosto. Zé perambulou meia hora e já voltou com duas pedrinhas, sinal de que a sociedade era realmente caridosa… Em eliminá-lo!

— Ainda tem confeitinho?

— Claro! Segura aí!

Alex era um jovem de quase um metro e oitenta, beirando os trinta e portador de um ar amistoso. Graças às drogas e descuidos com a vaidade, ele aparentava quase quarenta. O Sol e o clima seco também corroíam sua aparência, igualzinho aos prédios do centro da cidade. Os cabelos loiros ficaram quase marrons. Algumas mechas se juntavam em dreads; o que para a grande maioria lhe dava uma aparência suja, fato negativo aos negócios de pedinte. Os amigos pouco sabiam de seu passado. Só existiam alguns boatos sobre ele ter vindo do interior do estado trabalhar como servente de pedreiro e ter arranjado uma mulher que destruiu sua vida. Um belo dia, ele chegou com uma trouxa de roupas e uma garrafa de vinho pela metade. Perguntou a Simão se poderia ficar no Beco e foi aceito de bom grado. Por ser o único habitante do recinto, o patriarca da ralé apenas ditou-lhe algumas regras de convívio e até ensinou a arte da mendicância ao recém-chegado.

Já José Silva era vítima dos químicos, a família bem que tentou, mas a paixão pela pedra falou mais alto. Zé estava largado no mundo e pedindo esmolas em prol de seu culto aos deuses da lata. Cara chupada. Metade dos dentes o abandonou. A gordura era pouca e as veias saltavam pelos braços até desparecerem nas falanges proximais. Talvez seus familiares estejam a sua espera, aguardam um desejo de abstinência ou a providência divina, mas quem fuma a unha do capeta assina um contrato com o tinhoso para se entregar de corpo e alma ao prazer.

Simão sempre existiu no Beco dos Invisíveis. Desde que a terra é terra, o mar é mar e a cachaça passou a ser vendida em latas. Ele vivia sozinho e largado pelo centro da cidade Sereia. Aparentava ser um homem de conhecimento, a longa barba amarelada pelo tabaco exibia a experiência de um ser que, caso não estivesse usando uma blusa do candidato perdedor a prefeito, bem que poderia se passar por sábio hindu. O cabelo branco simulava algodão, os dentes eram mais amarelos que o sol no fim de tarde e sua mente cansada somente questionava o sentido amargo da vida. Em alguma parte de sua existência, Deus o abandonou. Por manter as mesmas roupas por muito tempo, Simão tinha cheiro de urina envelhecida. Sempre profético em suas palavras, o álcool exorbitava suas filosofias. Bêbado, ele conseguia ser pior que muito pregador de praça, mas, com certeza, o pedinte dizia bem mais verdades que um pastor charlatão.

Drogas, esmolas para comida e mais entorpecentes. Estabelecimentos em horário comercial encerram seu expediente. Os outros habitantes do beco retornam ao lar. Em sua maioria, fazedores de bicos. Uns quatro ou cinco companheiros chegam com histórias, violão e caninha para adoçar o amargo da vida. O parceiro com violão toca Raul Seixas. Todos cantam os trechinhos que se recordam da música “Ouro de Tolo”. “Essa música explica o sentido da existência de todos que circulam por aqui com grana!” discursou Simão para a plateia desatenta. A mensagem musical era conceitual e poderia até mudar a vida de todos eles, mas a única mudança desejada era sair da caretice e adentrar a algum estado alterado de espírito. Companheirismo, boa música e aguardente descendo na garganta. Aos noiados, a lata de cachaça só servia vazia. E mesmo em pleno estado de paranoia, nunca se viu uma confusão, todo mundo seguia a lei da cordialidade. Caso contrário, o bagunceiro amanhecia com a boca cheia de formigas…

Eram quase 22 horas, quando uma estranha figura entrou no beco. Uma jovem mulher com aparência de tiazona derrubada. Pela cara chupada era óbvio que pertencia ao grupo dos “beija-lata”. Cambaleante e desnorteada, ela suplicava por sua paixão: — Dou a xoxota pra quem me der um pega na lata! Cadê os machos dessa merda? Eu quero só um peguinha… Deixa eu beijar a lata que eu beijo outra coisa bem gostosa depois!

Zé nem precisou de cavalheirismo. Apenas levantou a mão empunhando o recipiente metálico e sua deusa entendeu o recado. Depois de uma chupada na lata, a musa entregou-se ao amor paranoide. Fizeram tudo ali mesmo, numa caixa de papelão improvisada como palácio de Vênus. O pico do Zé. A mansão do amor abrigou aqueles dois corpos psicóticos por um breve delírio chamado felicidade. O amor de dois zumbis embalado por deliciosos tragos de cigarro Oscar no pós-coito. A fêmea sai estonteada com sua microssaia suja de areia e tentando pôr o que parecia um top. Ela caminha cambaleante sob o efeito do amor e da pedra. Os companheiros do beco sorriam para José em nome de sua sorte. Enquanto a jovem adicta dava seus passos, os outros mendigos enfiavam a mão direita dentro dos farrapos para homenagear a deusa do lixo com o sexo dos solitários.

Apesar do vazio das ruas, no centro da Sereia sempre existem olhos maldosos à espreita. O resultado disso foi que, menos de dez minutos após a saída da mulher do Zé, a polícia já chegou descendo o cacete em todo mundo que via no beco. Somente ouviam-se os gritos dos repressores seguidos de pancadas secas do cassetete. “Vaza cambada de vagabundo! Vão fazer gandaia na casa do caralho”. Exceto por Simão, que saiu assim que viu os praças ao longe, todos sentiram o bastão perseguidor tocar suas costelas de forma emocionante. Zé correu alucinado levando sua moradia na mão, enquanto Alex se escondeu dentro de uma pilha de lixo. As ruas não eram violentas, já seus protetores pareciam salivar por carne fresca para o espancamento.

Meia-noite, o relógio recomeça a contagem. Todos se dispersam, exceto os três companheiros. Eles resolvem voltar ao beco pela certeza do descanso ser tranquilo. A barra estava limpa. Nada de coxinhas. Um deserto de concreto e lixo, onde com alguns papelões, nossos reis mendicantes resguardavam suas existências na esperança de um dia com mais grana, drinks, pedras e Raul Seixas.

Por ainda ter a audição em bom estado, Simão deve ter sido o único que teve tempo de abrir os olhos no momento em que alguém passava pela calçada. Três balas na cabeça de cada um! Alex nem se mexeu e parecia prosseguir em seu sono, que duraria a eternidade. Zé abriu os olhos, mas já estava puxando ar num ato mecânico de seu corpo; vivenciando os últimos momentos de resistência biológica após a morte cerebral. Simão conseguiu ver seu algoz e teve tempo de gritar “Deus…” antes de cair em estado de óbito. Seus olhos pareciam perder a sabedoria e expressavam decepção. Sentimento que foi alimentado por reconhecer a mesma camisa florida que viu meio dia. O benfeitor virou malfeitor. E, pela permutação no estado de espírito, ele apenas trocou as balas.

Apoie os independentes comprando seus lançamentos!

Assista aqui ao curta “Erivaldo – O Astronauta Místico” (2013) de Gurcius Gewdner com Erivaldo Mattüs atuando:

Um Beijo

Posted in Literatura with tags , , , , , , , , , on outubro 28, 2012 by canibuk

Um Beijo

que tivesse um blue.

Isto é

imitasse feliz a delicadeza, a sua,

assim como um tropeço

que mergulha surdamente

no reino expresso

do prazer.

Espio sem um ai

as evoluções do teu confronto

à minha sombra

desde a escolha

debruçada no menu;

um peixe grelhado

um namorado

uma água

sem gás

de decolagem:

leitor embevecido

talvez ensurdecido

“ao sucesso”

diria meu censor

“à escuta”

diria meu amor.

poesia de Ana Cristina Cesar.

Ana Cristina Cruz Cesar (1952-1983) antes mesmo de aprender a ler, aos seis anos de idade, já editava poemas para sua mãe. Em 1970 começou a divulgar seus próprios poemas em jornais alternativos, fanzines mimeógrafados e outras publicações independentes. Aos 31 anos cometeu suicídio atirando-se pela janela do apartamento de seus pais que ficava no oitavo andar.

Certa vez ela afirmou:

“Mantê-la mantê-la a todo custo
eu ainda sei ler, minha mãe
eu ainda sei ler, meu pai
estou mantendo ainda
ainda tenho algumas horas no dia
ainda sonho em fazer canções
e mesmo quando me apaixono insanamente
e desejo fontes de juventude boca a boca
(na praça clóvis minha carteira foi batida)
e mesmo quando endoideço aos vôos flutuantes perseguida por
galgos que me brincam e acalantam minha insônia
forçada de doideira
(chega um pouco pra lá, meu amor, se afasta um pouco)
e mesmo quando as lentes se perdem (e as palavras)
ainda sei ler, meu pai
ainda sei ler, minha mãe
ainda sei dizer: queimo,
e não arder simplesmente.”

A Piedade

Posted in Literatura with tags , , , , , , , , , , on outubro 21, 2012 by canibuk

Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento abatido na extrema paliçada

os professores falavam da vontade de dominar e da luta pela vida

as senhoras católicas são piedosas

os comunistas são piedosos

os comerciantes são piedosos

só eu não sou piedoso

se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria aos sábados à noite

eu seria um bom filho meus colegas me chamariam cu-de-ferro e me fariam perguntas: por que navio bóia? por que prego afunda?

eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as estátuas de fortes dentaduras

iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas ou barbudos

eu me universalizaria no senso comum e eles diriam que tenho todas as virtudes

eu não sou piedoso

eu nunca poderei ser piedoso

meus olhos retinem e tingem-se de verde

Os arranha-céus de carniça se decompõem nos pavimentos

os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas

arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através dos meus sonhos.

Poesia de Roberto Piva, publicada originalmente em Paranóia, 1963.

Literato Cantabile: Pílulas

Posted in Literatura with tags , , , , , , , , , , , , , , , on outubro 10, 2012 by canibuk

Pílulas do tipo deixa-o-pau-rolar.

na mesma base: deixa.

.

Primeiro passo é tomar conta do espaço.

Tem espaço a bessa e só

você sabe o que pode fazer do seu.

Antes ocupe. Depois se vire.

.

Não se esqueça de que você está

cercado, olhe em volta e dê um rolê.

Cuidado com as imitações.

.

Imagine o verão em chamas e fique

sabendo que é por isso mesmo.

A hora do crime precede a hora da

vingança, e o espetáculo continua.

cada um na sua, silêncio.

.

Acredite na realidade e procure

as brechas que ela sempre deixa.

Leia o jornal, não tenha medo de

mim, fique sabendo: drenagem, dragas

e tratores pelo pântano. Acredite.

.

Poesia. Acredite na poesia e viva.

E viva ela. Morra por ela se você

se liga, mas por favor, não traia.

O poeta que trai sua poesia é um

infeliz completo e morto.

Resista, criatura.

.

Sínteses. Painéis. Afrescos. Repor-

tagens. Sínteses. Poesia. Posições.

Planos gerais. “O Close-up é uma

questão de amor”. Amor.

.

Eu, pessoalmente, acredito em

Vampiros. O beijo frio, os dentes

quentes, um gosto de mel.

Poesia de Torquato Neto.

Torquato Pereira de Araújo Neto nasceu em Teresina/PI em 1944. Na década de 1960 mudou-se para o Rio de Janeiro/RJ dedicando-se ao curso de jornalismo. Em 1971 estrelou “Nosferatu no Brasil” de Ivan Cardoso, fazendo o papel de um hilário vampiro que andava de dia pelas praias cariocas. Se suicidou no ano seguinte deixando o bilhete que dizia: “Tenho saudade, como os cariocas, do dia em que sentia e achava que era dia de cego. De modo que fico sossegado por aqui mesmo, enquanto durar. Pra mim, chega! Não sacudam demais o Thiago, que ele pode acordar”.

A Obsessão do Sangue

Posted in Literatura with tags , , , , , , , , , , on abril 1, 2012 by canibuk

Acordou, vendo sangue… Horrível! O osso

Frontal em fogo… Ia talvez morrer,

Disse. Olhou-se no espelho. Era tão moço,

Ah! Certamente não podia ser!

.

Levantou-se. E, eis que viu, antes do almoço,

Na mão dos açougueiros, a escorrer

Fita rubra de sangue muito grosso,

A carne que ele havia de comer!

.

No inferno da visão alucinada,

Viu montanhas de sangue enchendo a estrada,

Viu vísceras vermelhas pelo chão…

.

E amou, com um berro bárbaro de gozo,

O monocromatismo monstruoso

Daquela universal vermelhidão!

Poesia de Augusto dos Anjos.

(Leia entrevista com Augusto dos Anjos clicando aqui)

Grandes Problemas não representam Grandes Problemas

Posted in Buk & Baiestorf, Literatura, Nossa Arte with tags , , , , , , , , , , on dezembro 13, 2011 by canibuk

O ser sem inspiração sentou-se diante do espelho e olhou longamente seus próprios olhos. Deixou que o vento desarranjasse seus cabelos e se perdeu em devaneios nostálgicos, onde pensou:

“Sou prisioneiro de mim mesmo. Vivo vinte e quatro horas por dia preso a minha existência medíocre. E minha mediocridade existencial é meu purgatório. E vegeto com a certeza de não ter como fugir de mim mesmo. E vou viver por infinitas eternidades. E serei torturado por mim mesmo até o fim dos tempos. E tentarei, a todo custo, esquecer como pensar. E talvez então, com a mente vazia, me tornarei a felicidade pura e simples…”

Os quatro manguaceiros do apocalipse olhavam o ser sem inspiração e cada qual, a sua maneira única, tinha sua opinião sobre a tristeza quase contagiante que rondava os humanos ainda pensantes.

E o sensato pensou:

“Os prazeres intelectuais não me são suficientes!”

E o ateu resmungou:

“O Vazio é a lei que domina o homem movido pela fé!”

E o puro de coração falou:

“Eu nasci para rir da humanidade!”

E o niilista otimista gritou:

“Por favor, alguém destrua a humanidade, não servimos para nada!”

E o ser sem inspiração ficou ali, em silêncio, para todo o sempre até criar raízes e se tornar uma frondosa árvore solitária em uma planície também solitária.

E eu pensei no quanto achava triste as pessoas que desistem de lutar, que se entregam ao comodismo, que deixam de experimentar novas sensações por medo, vergonha, timidez; que deixam de tentar a expansão da mente e se entregam de corpo e alma aos casulos que prometem uma vida pacata cheia de uma felicidade que pode ser comprada com seu trabalho escravo e sua cabeça baixa. E eu me lembrei de uma frase, não sei de quem, escrita no livro “Sociobiologia ou Ecologia Social ?” do Murray Bookchin que dizia “Ficar alheio, mesmo conscientemente, ao mundo, ou não ficar e intervir, é uma opção de cada um.”. E tinha certeza de que continuar a luta pela igualdade dos seres, para qualquer homem ainda pensante, era uma questão de honra, uma virtude pela qual vale a pena lutar.

escrito por Petter Baiestorf.

O autor em momento de brinde supremo.

O Coveiro, A Louca e O Ébrio: Poesias de Augusto dos Anjos

Posted in Literatura with tags , , , , , on dezembro 6, 2011 by canibuk

O Coveiro

Uma tarde de abril suave e pura

Visitava eu somente ao derradeiro

Lar; tinha ido ver a sepultura

De um ente caro, amigo verdadeiro.

.

Lá encontrei um pálido coveiro

Com a cabeça para o chão pendida;

Eu senti a minh’alma entristecida

E interroguei-o: “Eterno companheiro

.

Da morte, quem matou-te o coração?”

Ele apontou para uma cruz no chão,

Ali jazia o seu amor primeiro!

.

Depois, tomando a enxada, gravemente,

Balbuciou, sorrindo tristemente:

– “Ai, foi por isso que me fiz coveiro!”

.

A Louca

Quando ela passa: – a veste desgrenhada,

O cabelo revolto em desalinho,

No seu olhar feroz eu adivinho

O mistério da dor que a traz penada.

.

Moça, tão moça e já desventurada;

Da desdita ferida pelo espinho,

Vai morta em vida assim pelo caminho,

No sudário da mágoa sepultada.

.

Eu sei a sua história. – Em seu passado

Houve um drama d’amor misterioso

– O segredo d’um peito torturado –

.

E hoje, para guardar a mágoa oculta,

Canta, soluça – o coração saudoso,

Chora, gargalha, a desgraçada estulta.

.

O Ébrio

Bebi! Mas sei porque bebi!… Buscava

Em verdes nuanças de miragens, ver

Se nesta ânsia suprema de beber,

Achava a Glória que ninguém achava!

.

E todo o dia então eu me embriagava

– Novo Sileno, – em busca de ascender

A essa Babel fictícia do Prazer

Que procuravam e que eu procurava.

.

Trás de mim, na atra estrada que trilhei,

Quantos também, quantos também deixei,

Mas eu não contarei nunca a ninguém.

.

A ninguém nunca eu contarei a história

Dos que, como eu, foram buscar a Glória

E que, como eu, ira-o morrer também.

poesias de Augusto dos Anjos.