O fantástico cineasta Kôji Wakamatsu foi atropelado por um táxi dia 12 de outubro, vindo a falecer no dia 17 em decorrência dos ferimentos causados pelo acidente. Sua morte acabou ofuscada pela morte da atriz erótica Sylvia Krystel no dia 18 de outubro, ontem. Não quero parecer neurótico, nem criador de teorias de conspiração, mas me passou pela cabeça que o governo japonês tenha pagado pro taxista atropelar Wakamatsu e depois assassinado, com requintes samurais, a Krystel para que o mundo não comentasse tanto a morte dele. Mas claro, é coisa da minha cabeça. Sempre é!
Kôji Wakamatsu, nascido em Wakuya (Miyagi) em 1936, ainda adolescente foi tentar a sorte em Tokyo onde, sem dinheiro nem perspectivas de uma vida melhor, entrou para o mundo das gangues de rua e, tempo depois, foi preso. Na cadeia foi abusado pelo guardas e tomou ódio pelo estado, uniformes e instituições de todos os tipos. Nos anos de 1960 conseguiu emprego nos estúdios da Nikkatsu onde estreiou como diretor com o filme “Hageshii Onnatachi” (1963). Nos anos que se seguiram realizou inúmeros filmes de baixo orçamento (dirigiu 10 longas em 1964 e outros 8 em 1965, num ritmo de produção de dar inveja até ao Jesus Franco). “Kabe no Naka no Himegoto/Skeleton in the Closet/Secrets Behind the Wall” (1965) foi selecionado no Festival Internacional de Berlim e teve boa acolhida por parte do público e crítica, mas como os pinku eigas não costumavam ganhar o certificado de exportação do governo japonês, isso originou um embaraço político. O estúdio Nikkatsu, que não queria encrencas com o governo, lançou o filme em alguns poucos cinemas e isso limitou o sucesso da produção. Wakamatsu, irritado com este fato, resolveu deixar a Nikkatsu para formar seu próprio estúdio e realizar seus filmes de modo independente. Seu primeiro filme com produção inteiramente sua foi o drama “Taiji ga Mitsuryo Suru Toki/The Embryo Hunts in Secret” (1966), já com roteiro que misturava sexo com críticas ao governo. Com um orçamento médio de apenas 5 mil dólares por filme, Wakamatsu realizou alguns clássicos mundiais do baixo orçamento, como “Okasareta Hakui/Violated Angels” (1967), pinku eiga violento que se baseava nos crimes do serial killer americano Richard Speck, e “Yuke Yuke Nidome no Shojo/Go, Go, Second Time Virgin” (1969), onde se baseou nos assassinatos da família Mason para criar um dos filmes mais belos dos quais já tive o privilégio de assistir.
Na década de 1970 sua produção continuou intensa e cada vez mais política e provocativa. Em “Seizoku/Sex Jack” (1970) ele teorizou sobre os movimentos revolucionários de esquerda. Paralelo aos filmes que escrevia e dirigia, começou a realizar documentários, como “Sekigun – P.F.L.P.: Sekai Sensô Sengen” (1971), em parceria com Masao Adachi, sobre o exército vermelho do Japão apoiando guerrilheiros do Líbano, ou “Porn Jikenbo: Sei no Ankoku” (1975) sobre o underground sexual de Tokyo. Nesta época foi produtor executivo do clássico erótico político “Ai no Korîda/O Império dos Sentidos” (1976) de Nagisa Ôshima, já lançado em DVD no Brasil. “Seibo Kannon Daibosatsu/Sacred Mother Kannon” (1977) é um de seus filmes mais conceituados, mas infelizmente ainda não consegui assistir à este filme que é considerado um clássico de como usar simbolismos e metáforas no cinema.
A partir dos anos de 1980 seu ritmo de produção diminuiu um pouco. Seus métodos de distribuição foram esmagados pelos conglomerados cinematográficos, relegando seu cinema à festivais e ratos cinéfilos sempre em busca de prazeres da sétima arte. Wakamatsu até apareceu como ator em alguns poucos filmes, como “Rampo” (1994) de Rintaro Mayuzumi e Kazuyoshi Okuyama; “Seishun Kinzoku Batto” (2006) de Kazuyoshi Kumakiri, diretor nascido em 1974 que homenageou o cinema político de Wakamatsu em seu primeiro filme, “Kichiku dai Enkai” (1997), pequeno clássico produzido enquanto ainda era estudante de cinema; ou “Yûheisha-Terorisuto” (2007) de seu amigo Masao Adachi, entre alguns outros.
Conheci o cinema de Kôji Wakamatsu lá pelo meio da década de 1990 e foi paixão à primeira vista, se tornando em pouco tempo um dos meus cineastas japoneses preferidos. Em 2000 comprei o livro “L’Empire Erotique”, do fotografo francês Romain Slocombe, que trazia uma entrevista com Kôji Wakamatsu (traduzida do francês para o português por Ulisses T. Granados para que eu pudesse ler e que publiquei no fanzine “Arghhh” número 31, de outubro de 2002, que resgato agora no Canibuk). Na entrevista participam também o editor do Eichi Publishing e uma assistente de Wakamatsu.
por Petter Baiestorf.
Romain Slocombe entrevista Kôji Wakamatsu:
Slocombe: Ontem, em uma livraria de Jimbo-cho, eu encontrei por acaso uma fita de um dos seus filmes antigo, “Yuke Yuke, Nidome no Shojo”. Eu o assisti essa manhã antes de vir. O Título espanta um pouco, mas eu me surpreendi com a beleza das imagens e com os trechos de jazz da trilha sonora. A história é bastante simples, ainda que intelectual, não? Esse filme deve ter agradado aos estudantes da época que amavam os filmes de Ôshima. No início seus filmes eram mais violentos? Houve uma mudança de estilo?
Wakamatsu: Sim, entre os tratados de segurança Japão-USA de 1960 a 1970, o ambiente social era cada vez mais tenso. Os movimentos estudantis se faziam cada vez mais violentos. Paralelo a isso, meus trabalhos se tornavam cada vez mais excêntricos. Esse filme eu fiz no telhado do prédio da nossa repartição. Um filme dirigido totalmente em cima do telhado! As idéias me vinham enquanto eu respirava olhando para o céu! Isso não me custou quase nada, e só tive que pagar a equipe e os atores. No momento das filmagens eu não sabia se seria um filme interessante ou não. Foram os outros que me diziam se estava bom ou não, eu mesmo não tinha a mínima idéia sobre que filme que eu estava fazendo.
Slocombe: Durante a direção você modificava o script?
Wakamatsu: Eu mudo o tempo todo!
Slocombe: Você não tinha problemas quanto a sua relação com os produtores?
Wakamatsu: Sim, os produtores não ficam contentes quando o filme termina sem ter nada a ver com o projeto apresentado inicialmente.
Slocombe: Mesmo uma pequena sociedade de produção como a Art Theater Guild?
Wakamatsu: Sim, mas o mais importante é colocar o maior número de gente nas salas de exibição. Depois que eles se dão conta do sucesso não dizem mais nada.
Slocombe: Quanto mais excêntrico o filme, mais ele atraí audiência?
Wakamatsu: Sobretudo os estudantes, não o grande público. As pessoas em geral acham meus filmes “sujos”. Meus principais espectadores estão entre os intelectuais, a maior parte são estudantes universitários.
Slocombe: Qual a duração média dos seus filmes?
Wakamatsu: No início da minha carreira, sem refletir bem, eu fazia filmes de cerca de uma hora e vinte minutos (80 minutos). E, de tempos em tempos, filmes de duas horas (120 minutos). Depois eu me meti a fazer média-metragens de cerca de uma hora (60 minutos). Esse é o caso de “Okasareta Hakui/Violated Angels”. Eu não fiz esse filme com a intenção de exibi-lo nos cinemas, eu esperava fazer algo mais pessoal. E liguei para Juro Kara dizendo – “Ei, venha se divertir com a gente!”, oferecendo três grandes camarões à guisa de salário. Não custou quase nada e me contentei em exibi-lo em pequenas salas undergrounds. Ainda assim ele chamou a atenção de certos críticos de cinema.
Slocombe: Seus filmes muitas vezes tratam da relação homem-mulher e sempre o faz de uma maneira muito violenta. Numa entrevista a muito tempo atrás, lembro de você dizendo: “Entre um homem e uma mulher não pode existir nada além de guerra” (risos).
Wakamatsu: Mas sim, o relacionamento é sempre uma guerra! Aliás, a relação sempre dura mais tempo quando é mais tensa e quando há uma distância entre os dois, não é verdade?
Editor do Eichi Publishing: A propósito de “Yuke, Yuke, Nidome no Shojo”, você nos disse que o filmou inteiro em cima de um prédio. Em “Gewalt! Gewalt! Shojo Geba-Geba/Violent Virgin” (1969) você mostra uma cruz levantada num deserto e “Okasareta Hakui” se passa numa câmara fechada e desolada.
Wakamatsu: Não sei porque, mas eu adoro criar um drama dentro de um espaço limitado. Eu considerei o deserto como uma câmara fechada, isso me permite concentração. Meus trabalhos considerados mais bem realizados são aqueles que se passam em cenários isolados e limitados.
Slocombe: Gostaria de voltar a “Yuke, Yuke, Nidome no Shojo”, que assisti a pouco. Percebi o herói dele tão puro quanto o de “Okasareta Hakui”, que não tem experiência sexual e parece sentir tanto amor quanto desejo de agressão em relação às mulheres. Ele não consegue se decidir quanto a matar ou não a enfermeira, que reconhece tão pura quanto ele. Quando a garota implora para não estuprá-la, a relação ainda permanece pura. O herói de “Yuke, Yuke…” decide matar os outros garotos, mais adultos, que tinham estuprado a garota. Tenho a impressão de que você mesmo gostaria de ficar puro e encontrar uma mulher pura.
Wakamatsu: No caso de “Okasareta Hakui” fui inspirado pela chacina de enfermeiras que ocorreu em Chicago, USA. O fato de que uma delas foi poupada me interessou. Parece que ela foi a única a entender os sentimentos do assassino e por isso se salvou. No meu caso eu sou o mais jovem entre sete irmãos. Éramos todos homens e só tivemos nossa mãe na infância. Os espectadores dos meus filmes sempre percebem o meu complexo de édipo. Eu sempre me pergunto se essa tendência pessoal vem de minha situação na infância. Mas, à parte disso, eu sinto admiração pelas mulheres em geral.
Assistente de Wakamatsu: Talvez seja um “complexo de virgem imaculada”?
Wakamatsu: Exatamente. Eu procuro conforto nas mulheres, como alguns procuram na Virgem maria ou na deusa Kannon (encarnação feminina de Buda).
Slocombe: No seu filme “Seibo Kannon Daibosatsu” (1977) esse tipo de mulher surge emergindo do mar…
Wakamatsu: Refletindo bem, admito que sou um grande admirador das mulheres. Para mim a mulher é um ser que me entende e aceita totalmente, sem que aja a necessidade de me explicar. Nos meus filmes sempre se vê a aspiração por uma mulher de infinita graça e bondade.
Editor do Eichi Publishing: Há um abismo entre essa mulher idealizada e aquelas do mundo real.
Wakamatsu: É claro, existe muita diferença. Mas eu prefiro continuar buscando esse ideal do que viver na resignação.
Editor do Eichi Publishing: Para Slocombe essa mulher idealizada esta representada em suas fotos de mulheres usando ataduras, estou certo?
Wakamatsu: Eu entendo isso perfeitamente. A mulher machucada, que não pode se mover de sua cama de hospital, de certo modo esta isolada do mundo real – essa imobilidade involuntária lhe deixa mais erótica do que em seu estado natural. Deste modo a mulher se expõe sem artifícios. Uma mulher nua dormindo é uma bela visão. De fato eu sinto uma grande atração quando vejo uma mulher cheia de curativos numa cama de hospital. Se bem que uma mulher doente é algo bem menos erótico.
Slocombe: Certo, é porque a visão de uma mulher doente traz à mente a possibilidade de sua morte, o que não é agradável para mim. Uma mulher em bandagens pode não estar em sua perfeita saúde, mas não vai ter que ficar nessa posição imóvel por muito tempo.
Editor do Eichi Publishing: Visualmente, bandage branca é realmente muito bonita. Slocombe mencionou a pureza do herói de “Yuke, Yuke…”. É essa pureza que o leva a morte não? Porque seu herói morre no final?
Wakamatsu: Eu achei que essa resolução teria mais estilo. Por exemplo, eu acho Che Guevara muito chic – eu gostaria de ter vivido e morrido como ele. Infelizmente eu vou terminar como um mero diretor de filmes. Seguindo os princípios do filme, o herói não deveria morrer, mas eu achei que o final seria melhor com sua morte.
Editor do Eichi Publishing: Eu acredito que o herói teve que morrer para preservar sua pureza.
Wakamatsu: Eu não estava consciente disso porque não uso muito a razão em um filme, prefiro me guiar por minha sensibilidade e sentimentos. Frequentemente os atores não entendem o que eu quero. Eu me acho muito instintivo, como um animal. Nunca estive numa escola de cinema, nunca aprendi técnica cinematográfica. Foi por acaso que entrei nessa profissão. Eu nunca tinha sequer sonhado com isso! Eu simplesmente tive o impulso de criar alguma coisa, fosse um texto ou um filme. Eu queria tornar os meus desejos reais, por exemplo, o meu desejo de matar policiais (risos). Não posso fazer isso na vida real, é claro, mas num filme posso exterminar um monte de policiais de uma vez. Eu comecei a filmar só por esse motivo. Como alguns desses primeiros filmes tiveram sucesso, as pessoas passaram a me chamar de diretor. Desde então eu filmo constantemente, mesmo hoje em dia quando as condições estão cada vez mais difíceis. Eu construo um filme dentro da minha mente. E isso vem repentinamente. Por exemplo, “Taiji ga Mitsuryo Suru Toki” nasceu a partir de uma imagem que eu vi da janela numa manhã chuvosa de maio. A essa imagem inicial eu fui acrescentando outras, uma por uma. Mas tão logo essa imagem inicial me vem a mente, eu chamo os atores e começo a filmar. Se eu esperasse um mês ou mais, o impulso de filmar já teria se perdido.
Slocombe: Você concebeu do mesmo modo “Gendai Kôshoku-Den: Teroru no Kisetsu/Season of Terror” (1969, nota do Canibuk: Com roteiro de Kazuo “Gaira” Komizu), onde o herói, que vive com duas mulheres, explode o Aeroporto de Haneba no final?
Wakamatsu: Sim, eu realmente conhecia um cara que vivia com duas mulheres. Elas tiveram filhos quase ao mesmo tempo e se amavam, era lésbicas! Todos eles viviam muito bem juntos. Eu achei toda a situação muito divertida e quis fazer um filme sobre essas três pessoas. Foi só no fim que acrescentei o detalhe do homem ser um terrorista.
Slocombe: Sexo e terrorismo são temas que não se misturam. Foi por esse motivo que um dos meus livros foi censurado na França.
Wakamatsu: Meu filme “Seizoku/Sex Jack” foi banido da França também. Ele foi exibido primeiramente em Cannes e então proibido – embora muitos cinéfilos gostarem dele. O problema foi que no fim do filme o terrorista bonzinho tenta matar o primeiro ministro. Eles acharam muito anti-social, como também falaram que havia muito sangue em “Okasareta Hakui”.
Slocombe: Algo me intriga: Na França ou Inglaterra, um filme ou comic mostrando SM ou violência contra mulheres enfrenta censura, enquanto que cenas de sexo são bem toleradas. No Japão a situação é inversa, não?
Wakamatsu: Sim, mostrar SM ou violência num filme é perfeitamente normal, mas para sexo alguns limites foram fixados. O que significa que você não pode mostrar tudo, entende? Em alguns festivais da Europa as pessoas frequentemente riem dos filmes japoneses porque a câmera faz movimentos esquisitos para não mostrar certas coisas. Eu fico meio embaraçado quando um europeu me pergunta: – “Qual o significado daquele movimento apressado da câmera?”. Por que alguém teria que esconder órgãos genitais? Eu acho que no Japão sexo sempre foi privilégio dos poderosos, políticos, milionários, etc. No passado se dizia “os pobres que se contentem em comer arroz”. É como hoje dizerem “se contentem sem imagens de sexo”. No período Edo, pelo que li, a abertura era maior, mas após as eras Meiji e Taisho, as autoridades ficaram mais restritas.
Editor do Eichi Publishing: Enquanto SM e violência continuaram tolerados como sempre.
Wakamatsu: Sim, talvez as autoridades achem essas coisas perfeitamente normais.
Editor do Eichi Publishing: Achei a idéia interessante, o poder monopolizando o sexo.
Wakamatsu: É por isso que nos meus filmes eu caçoo do poder associando-o ao sexo.
Slocombe: Você percebeu alguma mudança recente ao assistir filmes dos jovens cineastas? E você pretende tentar outros gêneros?
Wakamatsu: Eu frequentemente noto que os jovens diretores mostram nudez com um propósito puramente comercial. Acho isso muito superficial. É por isso que raramente assisto seus filmes. Eu e alguns outros diretores, se fizemos pinku eiga, foi para expressar alguns sentimentos mais sérios. E quanto a outros gêneros, eu já experimentei a todos.
Editor do Eichi Publishing: Se entendi direito, mesmo nos seus pinku eigas, o assunto principal não era sexo?
Wakamatsu: Certo. Primeiramente eu não era aceito pelas grandes produtoras. Para fazer um filme tive que recorrer ao campo dos pinku eigas. E meus filmes tinham que ser vistos pela maior audiência possível, o que me levou a colocar nomes escandalosos como “Yuke, Yuke, Nidome no Shojo”. Lendo a palavra “virgem” (nota do Canibuk: Shojo significa virgem) as pessoas imaginavam coisas pornográficas e corriam para os cinemas. E o importante é que elas ficaram contentes com o que viam, mesmo que isso não tenha sido exatamente o que esperavam inicialmente, não acha?
Assistente de Wakamatsu: Então, agora que você pode dirigir os filmes que quiser, eles não precisam ser pinku eigas?
Wakamatsu: As coisas mudaram totalmente, atualmente estou até filmando para a TV!