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O Corvo

Posted in Literatura with tags , , , , , , , , , , , , , , , , on agosto 26, 2012 by canibuk

Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite êrma e sombria,

a ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais,

e, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído,

tal qual se houvesse alguém batido à minha porta, devagar.

“É alguém” – fiquei a murmurar – “que bate à porta, devagar;

sim, é só isso e nada mais.”

.

Ah! Claramente eu o relembro! Era no gélido dezembro

e o fogo, agônico, animava o chão de sombras fantasmais.

Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava ainda

algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora

– essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora

e nome aqui já não tem mais.

.

A sêda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina,

arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais.

De susto, em pávida arritmia, o coração veloz batia

e a sossegá-lo eu repetia: “É um visitante e pede abrigo.

Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo.

É apenas isso e nada mais.”

.

Ergui-me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim:

“Perdoai, senhora, ou meu senhor, se há muito aí fora me esperais;

mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido,

que eu mal podia ter ouvido alguém chamar à minha porta,

assim de leve, em hora morta.” Escancarei então a porta:

– escuridão, e nada mais.

.

Sondei a noite êrma e tranqüila, olhei-a fundo, a perquiri-la,

sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais.

Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror imoto e quêdo,

só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia) e foi: “Lenora!”

E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: “Lenora!”

Depois, silêncio e nada mais.

.

Com a alma em febre, eu novamente entrei no quarto e, de repente,

mais forte, o ruído recomeça e repercute nos vitrais.

“É na janela” – penso então. “Por que agitar-me de aflição?

Conserva a calma, coração! É na janela, onde, agourento,

o vento sopra. É só do vento esse rumor surdo e agourento.

É o vento só e nada mais”.

.

Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto:

– é um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais.

Como um fidalgo passa, augusto e, sem notar sequer meu susto,

adeja e pousa sobre o busto – uma escultura de Minerva,

bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva,

empoleirado e nada mais.

.

Ao ver da ave austera e escura a soleníssima figura,

desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus ais.

“Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular” – então lhe digo –

“não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro tôrvo,

qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno tôrvo!”

E o corvo disse: “Nunca mais”.

.

Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe,

misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais;

pois nunca soube de vivente algum, outrora ou rio presente

que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta,

uma ave (ou fera, pouco importa, empoleirada em sua porta

e que se chama: “Nunca mais”.

.

Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria,

com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais.

Murmuro, então, vendo-a serena e sem mover uma só pena,

enquanto a mágoa me envenena: “Amigos… sempre vão-se embora.

Como a esperança, ao vir a aurora, ele também há de ir-se embora.”

E disse o Corvo: “Nunca mais”.

.

Vara o silêncio, com tal nexo, essa resposta que, perplexo,

julgo: “É só isso o que ele diz; duas palavras sempre iguais.

Soube-as de um dono a quem tortura uma implacável desventura

e a quem, repleto de amargura, apenas resta um ritornelo

de seu cantar; do morto anelo, um epitáfio: – o ritornelo

de “Nunca, nunca, nunca mais”.

.

Como ainda o Corvo me mudasse em um sorriso a triste face,

girei então numa poltrona, em frente ao busto, à ave, aos umbrais

e, mergulhando no coxim, pus-me a inquirir (pois, para mim,

visava a algum secreto fim) que pretendia o antigo Corvo,

com que intenções, horrendo, tôrvo, esse ominoso e antigo Corvo

grasnava sempre: “Nunca mais”.

.

Sentindo da ave, incandescente, o olhar queimar-me fixamente,

eu me abismava, absorto e mudo, em deduções conjeturais.

Cismava, a fronte reclinada, a descansar, sobre a almofada

dessa poltrona aveludada em que a luz cai suavemente,

dessa poltrona em que Ela, ausente, à luz que cai suavemente,

já não repousa, ah! nunca mais…

.

O ar pareceu-me então mais denso e perfumado, qual se incenso

ali descessem a esparzir turibulários celestiais.

“Misero!” – exclamo – “Enfim teu Deus te dá, mandando os anjos seus

esquecimento, lá dos céus, para as saudades de Lenora.

Sorve o nepentes. Sorve-o, agora! Esquece, olvida essa Lenora!”

E o Corvo disse: “Nunca mais”.

.

“Profeta!” – brado. “O’ ser do mal! Profeta sempre, ave infernal,

que o Tentador lançou do abismo, ou que arrojaram temporais,

de algum naufrágio, a esta maldita e estéril terra, a esta precita

mansão de horror, que o horror habita, – imploro, dize-mo, em verdade:

Existe um bálsamo em Galaad? Imploro! dize-mo, em verdade!”

E o Corvo disse: “Nunca mais”.

.

“Profeta!” – exclamo. “O’ ser do mal! Profeta sempre, ave infernal!

Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais,

fala se esta alma sob aguante atroz da dor, no Êden distante,

verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora,

– essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!”

E o corvo disse: “Nunca mais!”

.

“Seja isso a nossa despedida!” – ergo-me e grito, alma incendiada.

“Volta de novo à tempestade, aos negros antros infernais!

Nem leve pluma de ti reste aqui, que tal mentira ateste!

Deixa-me só neste êrmo agreste!” Alça teu vôo dessa porta!

Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa porta!

E o Corvo disse: “Nunca mais!”

.

E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio,

sobre o alvo busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais.

No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme,

e a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.

Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma; e, presa à sombra,

não há de erguer-se, ai! nunca mais!.

poesia de Edgar Allan Poe.

ilustrações de Prassinos.

tradução de Oscar Mendes e Milton Amado.

O Coveiro, A Louca e O Ébrio: Poesias de Augusto dos Anjos

Posted in Literatura with tags , , , , , on dezembro 6, 2011 by canibuk

O Coveiro

Uma tarde de abril suave e pura

Visitava eu somente ao derradeiro

Lar; tinha ido ver a sepultura

De um ente caro, amigo verdadeiro.

.

Lá encontrei um pálido coveiro

Com a cabeça para o chão pendida;

Eu senti a minh’alma entristecida

E interroguei-o: “Eterno companheiro

.

Da morte, quem matou-te o coração?”

Ele apontou para uma cruz no chão,

Ali jazia o seu amor primeiro!

.

Depois, tomando a enxada, gravemente,

Balbuciou, sorrindo tristemente:

– “Ai, foi por isso que me fiz coveiro!”

.

A Louca

Quando ela passa: – a veste desgrenhada,

O cabelo revolto em desalinho,

No seu olhar feroz eu adivinho

O mistério da dor que a traz penada.

.

Moça, tão moça e já desventurada;

Da desdita ferida pelo espinho,

Vai morta em vida assim pelo caminho,

No sudário da mágoa sepultada.

.

Eu sei a sua história. – Em seu passado

Houve um drama d’amor misterioso

– O segredo d’um peito torturado –

.

E hoje, para guardar a mágoa oculta,

Canta, soluça – o coração saudoso,

Chora, gargalha, a desgraçada estulta.

.

O Ébrio

Bebi! Mas sei porque bebi!… Buscava

Em verdes nuanças de miragens, ver

Se nesta ânsia suprema de beber,

Achava a Glória que ninguém achava!

.

E todo o dia então eu me embriagava

– Novo Sileno, – em busca de ascender

A essa Babel fictícia do Prazer

Que procuravam e que eu procurava.

.

Trás de mim, na atra estrada que trilhei,

Quantos também, quantos também deixei,

Mas eu não contarei nunca a ninguém.

.

A ninguém nunca eu contarei a história

Dos que, como eu, foram buscar a Glória

E que, como eu, ira-o morrer também.

poesias de Augusto dos Anjos.