Ivan Cardoso Encontra Zé do Caixão

O Guri & O Guru: Ivan encontra Mojica.

Zé do Caixão: uma espécia de superego da maldade nacional. O que muita gente não sabe é desassociar o médico do monstro. O aterrorizante Zé do Caixão é um personagem criado por José Mojica Marins, 74 anos, brasileiro, cineasta com mais de 50 anos de profissão. Mojica se diz um homem comum como qualquer outro, que aprecia a solidariedade humana e filmes com belas histórias de amor.

Ivan Cardoso – Mojica, como você começou a se interessar por cinema?

José Mojica Marins – Sou filho de pais artistas circenses. Meu pai era toureiro e veio da Espanha. Depois ele se casou com minha mãe, que era cantora de tangos. Eu nasci viajando pelo Brasil. Desde garotinho eu ia para a Bahia, Mato Grosso, para todos os lugares para onde eles levavam o circo.

Ivan – Você nasceu em São Paulo?

Mojica – É, em São Paulo. Não nasci de nove meses, nasci de onze, dois meses a mais. Quer dizer, nasci com atraso porque já havia uma evolução especial mesmo dentro do ventre da minha mãe. Com dois ou três anos eu já gravava na minha mente as touradas que via o meu velho enfrentar. Então eu já nasci dentro dessa vida atribulada, e com cinco, seis anos, eu sentia uma atração tremenda pela comunicação da imagem. Porque eu via meu pai fazendo as touradas, matando os touros, e quando ele falava a platéia ouvia, e eu começava a ver o que era a comunicação da imagem. A pessoa tem que fazer algo superior, ser mais do que os outros para poder ser ouvido. A minha primeira pretensão foi ser toureiro, mas aí a Sociedade Protetora dos Animais acabou com as touradas no Brasil, meu velho passou então a ser gerente de um cinema que era dos meus padrinhos. E nessa época, com seis ou sete anos, eu comecei a me interessar por uma coisa que assustou os meus velhos: pelos problemas da morte…

Ivan – Você primeiro se interessou pelo sobrenatural prá depois de interessar pelo cinema?

Mojica – É, eu me interessei primeiro pelo sobrenatural por causa de um fato que ocorreu no bairro onde eu morava. Havia um batateiro no bairro que gostava muito de crianças, contava todas aquelas histórias da carochinha prá gente, era muito querido das pessoas e um dia ele morreu. E nós, os meninos que éramos amigos dele (eu, um negrinho chamado Crispim, um japonês e um portuguesinho), fizemos uma coroa de flores prá levar para o nosso amigo batateiro. O pessoal todo do vilarejo estava no velório, prestando a última homenagem ao amigo de todos. De repente o batateiro começou a se mexer no caixão e levantou, todo mundo saiu correndo. No velório, praticamente, só ficamos eu e meus três amigos. Eu não entendia por que todas aquelas pessoas que estavam chorando pela morte do amigo, fugiu apavorada. Mais tarde o delegado, que viu a gente conversando com o “ressuscitado”, foi chegando de mansinho, depois veio o padre com aqueles negócios de “vade retro, Satanás” e benzendo tudo. Finalmente chegou o médico e disse que era catalepsia. Aí então a mulher do batateiro quis se separar dele, nossas mães não deixavam mais a gente conversar com ele. Por que, se todos queriam a volta do homem, quando ele voltou todo mundo se apavorou?

Ivan – Como foi que surgiu o personagem Zé do Caixão?

Mojica – Nasceu disso. Desde garoto eu tive acesso ao cinema porque meu pai era gerente de um. Eu via todo gênero de fita e o que mais me fascinava eram as fitas de terror. Tudo porque aquele problema da morte me ficou gravado e eu queria saber o que vinha depois dela. Eu fiz as minhas primeiras fitas em 8mm: “Juízo Final”, “O Fim do MUndo” e “O Ano da Besta”. Eu tinha nove anos quando fiz “Juízo Final”, tentando fazer trucagens com uma velha máquina de 8mm. Depois fiz várias fitas em 16mm e passava-as pelo interior. Até que chegou a hora de eu fazer cinema profissional e ninguém acreditava nesse tipo de filme aqui no Brasil. E eu tentei fazer uma fita na linha daqueles dramalhões mexicanos que estavam muito em moda na época. Fiz “Sentença de Deus” e não tive muita sorte. Esse meu filme foi passado sem ter terminado, inclusive eu tive que inventar um romance e me promover prá poder ter de volta o dinheiro que eu tinha investido no filme. “Sentença de Deus” foi a minha primeira fita profissional, e aí vi que o negócio era bangue-bangue. Parti para o primeiro filme brasileiro em cinemascope: “Sina de Aventureiro”. Este meu filme foi praticamente condenado pelos padres, porque pela primeira vez apareciam duas mulheres nuas no cinema.

Ivan – O Zé do Caixão veio quando?

Mojica – O Zé apareceu quando eu estava me preparando para fazer “Geração Maldita”, uma fita sobre juventude transviada. Não fiz essa fita porque aí aconteceu comigo o primeiro ato sobrenatural pesadão mesmo. Eu estava com tudo pronto e ia começar a filmar no dia seguinte. Quando cheguei em casa, cansado de tanto trabalhar, eu sentei perto da mesa e de repente fiquei como um morto-vivo, sonhando acordado. Eu senti uma figura toda de negro me arrastando para um lugar aonde eu não queria ir. No meu sonho essa figura de negro me arrastava para uma tumba onde estava escrito o meu nome e a data da minha morte. De repente vi que essa figura de negro era eu mesmo me arrastando para o meu próprio túmulo. Só não vi a data da minha morte porque não quis ver. Quando acordei fui direto para meu escritório. Quando minha secretária chegou, mandei que ela fosse avisar os meus sócios que eu havia bolado uma outra fita, que ia se chamar “À Meia-Noite Levarei Tua Alma”. É claro que eu não tinha roteiro nem nada, mas falei que não tinha importância, que eles podiam chamar o pessoal prá filmar. Naquela época o Ignácio de Loyola Brandão disse que eu era o assassino do cinema nacional, que só eu poderia filmar “À Meia-Noite Levarei Tua Alma”. Era 1963 e o pessoal estava começando a se projetar em televisão, por isso nenhum ator queria se “queimar” fazendo o Zé do Caixão. Como eu tinha a barba crescida, aproveitei prá fazer o Zé do Caixão.

Ivan – Quem é o Zé do Caixão?

Mojica – Quem sabe o Zé do Caixão seja tudo aquilo que eu gostaria de ser e não fui. Hohe eu sou um homem sentimental, boêmio, que acredita no amor. O Zé do Caixão já é um homem sem sentimentos, que não ama. Então, quem sabe, eu quisesse, inconscientemente, ter uma fuga através de um personagem que fosse tudo quanto eu gostaria de ser. O Zé do Caixão só pensa nele, em construir o seu mundo, ter o seu filho, um ser superior; para isso ele precisa de uma mulher também superior, que pense da mesma maneira que ele: não amar e não odiar. E se esse filho, concebido por ambos, pensar como o Zé, ele vai ser imortal.

Ivan – Quantos filmes você já fez?

Mojica – Mais ou menos uns 75 filmes, fora os curtas.Isso foram filmes que eu dirigi, produzi. Existem outros muitos em que participei apenas como ator ou diretor.

Ivan – Qual dos teus filmes você mais gosta?

Mojica – Citaria: “Finis Hominis”, “Ritual dos Sádicos”, “À Meia-Noite Levarei Tua Alma”, “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver”, “O Estranho Mundo do Zé do Caixão”, “Exorcismo Negro”. Essas são as fitas que eu mais gosto.

Ivan – Quem é você, José Mojica Marins?

Mojica – Sou o que sou. Sou um homem que aspira às boas coisas da vida. Como todos os demais seres, tenho a minha meta, a minha missão, algo para deixar minha marca aqui. Tive um momento privilegiado de criatividade, sem precisar de altos estudos. É claro que, quando eu não entendo de alguma coisa, procuro alguém de cultura mais avançada para fazer por mim. Eu sou um homem de imagem, qualquer imagem me cativa, por isso o cinema se tornou a minha cara-metade.

Ivan – Você se considera uma pessoa anormal, diferente das demais?

Mojica – Não, não me considero. Aliás, me considero até muito normal. E dentro dessa normalidade eu procuro a razão de sobreviver. Com a graça das forças divinas eu tenho garra para lutar. Me considero um jovem de dezoito anos, faço coisas com a mesma mentalidade de quando tinha nove anos de idade, porque era uma criança precoce.

Ivan – Como é que você vê, na loucura do mundo de hoje, o terror? Você acha que o terror ainda assusta alguém?

Mojica – O terror sempre assusta. Não adianta as pessoas irem atrás da bebida, dos entorpecentes prá fugir do medo porque elas sempre acabam caindo no medo. O medo é uma coisa que ninguém até hoje conseguiu dominar. Não há quem não tenha medo da morte, porque todos temos medo daquilo que desconhecemos.

Ivan – Quantos atores já morreram nos seus filmes?

Mojica – Ah, muitos. Daria prá fazer um comício só com os nomes dos atores mortos. Entre cinema profissional, amador e documentários que eu fiz, acho que já morreram mais de trezentas pessoas.

Ivan – Afinal, qual é a sua religião?

Mojica – Minha religião é o cinema. Cinema porque ele tem uma imagem para mostrar e como em palavras eu não sou muito bom, porque nem sempre consigo me expressar com palavras, me expresso com imagens. Tudo que eu faço tem uma razão de ser, tem uma razão de existir.

Segue o documentário que o genial Ivan Cardoso fez em 1978 chamado “O Universo de Mojica Marins” (25 minutos):

Essa entrevista que o Ivan Cardoso realizou com o Mojica foi originalmente publicada na revista “O Estranho Mundo de Zé do Caixão” (1987), resolvi resgatar uma parte da entrevista, para ler inteira descole a revista.

2 Respostas to “Ivan Cardoso Encontra Zé do Caixão”

  1. Sou fã do Mojica, seus filmes abordam os lado primitivo do humano, eles mostram o que tentamos esquecer motivados pela cultura: Sexo e Sangue. Mojica nos lembra que a escatologia, a violência, a sexualidade e a sede por sangue existe e são comuns a todos.

  2. […] usando o pseudônimo de Thomas Wood. “Está Noite Encarnarei no teu Cadáver” (1967), de José Mojica Marins, à exemplo de “Jigoku”, também mostrava em cores os horrores do inferno com muitos membros […]

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