Necrófilos em Ação: O Cinema de Felipe Guerra na Terra da Polenta

Felipe Guerra faz filmes independentes no Brasil desde aquele tempo que cineasta independente filmava com uma filmadora VHS comum e editava tudo usando 2 vídeos cassetes. Natural da cidade gaúcha de Carlos Barbosa mostra que o cinema independente brasileiro não vive só de filmes transgressores e acredita que um cinema mais comercial é possível entre os independentes. Sem enrolação, segue a entrevista que fiz com Felipe Guerra e que tenta ser a mais completa já realizada com ele.

Felipe Guerra nas filmagens do curta "Pampa'Migo" (2011).

Petter Baiestorf: Antes de começar a fazer filmes, como era tua vida em Carlos Barbosa/RS?

Felipe Guerra: Petter, você também é de uma cidade pequena do Sul do Brasil, então acho que sabe bem como é a vida de um jovem nessas condições. Minha cidade-natal, Carlos Barbosa, fica na Serra Gaúcha, a 100 quilômetros de Porto Alegre, e hoje tem 25 mil habitantes, mas na minha infância e adolescência era bem menor. E quando você vive numa cidade que não tem nada para fazer, só tem duas alternativas: ou passa o tempo reclamando de como sua cidade não tem nada para fazer, ou inventa coisas para fazer. Por exemplo, quando eu era adolescente, desenhava histórias em quadrinhos que circulavam pela minha escola, um negócio bem tosco chamado “Os Porcos da Meia-noite”, na linha da revista Chiclete com Banana. Até hoje tenho uma pasta com centenas de páginas rabiscadas dessas histórias, e na verdade eu não desenhava porra nenhuma, mas fazia aquela meia dúzia de garranchos e meus amigos curtiam bastante. Também por esses tempos, eu editava um jornalzinho na minha escola com outros três amigos, chamado “O Jornal”, onde escrevíamos sobre cinema, música, literatura e coisas que a gente gostava. Sei que é difícil, para a garotada de hoje, conceber um mundo sem internet, sem blogs, mas na época era assim: se você queria falar sobre as coisas de que gostava, precisava criar um fanzine ou um jornalzinho de escola. Lembro que escrevíamos sobre coisas como H.P. Lovecraft e John Woo (os filmes dele estavam começando a sair em vídeo no Brasil), e também criticávamos o colégio. E como o jornalzinho circulava dentro da escola, um belo dia a diretora ficou de saco cheio e nos chamou para uma reunião a portas fechadas, onde ordenou que a gente se retratasse sobre aquelas críticas na próxima edição. Por causa disso, resolvemos parar de editar o jornal, e o colégio ficou sem retratação nenhuma. Ah, e eu formei uma banda punk com uns amigos chamada Necrófilos, que depois viria a ser o nome da minha produtora. Eu escrevia as letras e “cantava”, na verdade só berrava. Chegamos a ensaiar por uns dois meses canções estúpidas com refrões idem, tipo “Todos querem que cristão eu seja / Mas eu digo que se foda a Igreja!”, mas depois disso cada um seguiu seu rumo e a Necrófilos nunca se apresentou em público, o que no fim eu acho que foi uma ótima coisa.

Baiestorf: Você é formado em jornalismo, certo? Como é fazer parte de uma profissão tão, como costumo dizer, “copia e cola”? Porque percebo que os jornalistas e, principalmente, os críticos de filmes, estão cada vez mais acomodados. Isso te incomoda?

Guerra: Entendo o que você quer dizer, porque o jornalismo cultural que se faz hoje até me deixa envergonhado. Mas é compreensível, porque via-de-regra os jornalistas que trabalham nos grandes jornais brasileiros, hoje, são uns bocabertas de vinte e poucos anos que acabaram de sair da faculdade de jornalismo, não sabem porra nenhuma de nada, mas acham que são os fodões formadores de opinião e que vão mudar o Brasil com seus textos. E o mais engraçado é que os putos têm a internet e o Google à disposição, mas não pesquisam nada e publicam qualquer coisa como se fosse a verdade absoluta. Recentemente, por exemplo, toda a imprensa brasileira comprou a idéia de um tal “primeiro pornô em 3-D” que estaria sendo produzido na China. Eu sabia que não era o primeiro pornô em 3-D, porque tinha visto um filme de 1991 chamado “Princess Orgasma and the Magic Bed” que já era produzido em três dimensões. 1991, que é 20 anos atrás! Aí eu pesquisei sobre o assunto e publiquei um dossiê gigante sobre pornografia em 3-D, que é algo que vem desde os anos 60, no meu blog Filmes para Doidos, para ver se esses jornalistas folgados pesquisam melhor da próxima vez antes de escrever bobagem. Eu sempre idealizei a profissão de jornalista, inclusive as pessoas nunca acreditam quando digo que comecei a trabalhar no jornal da minha cidade quando tinha 12 anos. Eu era um menino prodígio do português lá em Carlos Barbosa, daquele tipo que ganha todos os concursos literários e tem o saco puxado pelos professores. Meu sonho quando criança era ser escritor, mas logo desencantei com a dificuldade para publicar e percebi que seria mais fácil ser publicado e lido como jornalista. E o jornal da minha cidade, que se chama Contexto, estava com uma vaga para revisor ortográfico. Meu pai era amigo de infância do editor e foi perguntar se eu não poderia assumir a vaga. Eles ficaram meio desconfiados por ter um moleque na redação, mas me deram uma chance e fui ficando. Então com 12 anos, enquanto meus amigos curtiam a vida de criança e pré-adolescente, eu já estava trancado dentro de uma redação de jornal, rodeado de gente fumando, tomando café e falando bobagem o dia inteiro, o que foi fundamental para minha criação. Engraçado é que peguei a fase das máquinas de datilografia e toda a transição das câmeras fotográficas com filme para as digitais, e das enciclopédias e almanaques para a internet. Foram mudanças incríveis, e muito professor de jornalismo que dá aula em faculdade nem passou por isso para poder falar. E eu comecei a escrever para o jornal logo depois. Trabalhei 16 anos no jornal Contexto, e aprendi desde cedo a escrever muito e pesquisar muito. Minhas reportagens eram enormes, e esse é um hábito que eu cultivo até hoje. Quando escrevo para sites como Boca do Inferno e meu blog, por exemplo, sempre faço textos gigantescos, em que passo semanas pesquisando coisas até esgotar o assunto. Por isso que me deixa puto esse jornalismo de hoje, que parece estar sendo escrito para débeis mentais, com matérias cada vez mais curtas e estilo “copia e cola”, como você bem disse. Os caras vão fazer uma entrevista e nem pesquisam o mínimo sobre o entrevistado antes de ir falar com ele. Querem tudo de mão beijada, só falta pedir para o entrevistado escrever a reportagem para eles! Diferente, por exemplo, dessa tua entrevista, onde percebe-se que houve um grande interesse e uma enorme pesquisa na hora de fazer as entrevistas. Já tive que aturar repórteres que não sabiam porra nenhuma sobre o que estavam me perguntando e depois ainda pediram se eu podia gravar “as melhores cenas” do meu filme num DVD para eles. Ou seja, nem querem se dar ao trabalho de assistir o filme inteiro, e esses são os caras que escrevem para os jornais e revistas! Eu e você deveríamos estar trabalhando no ramo, Petter, e ganhando salários milionários!

Baiestorf: O que te motivou a começar a fazer filmes independentes?

Guerra: Bem, eu desempenhei todas essas atividades malucas quando era adolescente – jornalista, editor de jornal do colégio, desenhista de quadrinhos, “músico” -, mas minha paixão mesmo sempre foi o cinema. Meus pais Quito e Neusa gostavam muito de cinema e me passaram esse amor pelos filmes. Sempre me levavam ao cinema para ver filmes dos Trapalhões e de super-heróis, e quando o VHS estava começando a aparecer no Brasil, na época das fitas piratas, meu pai reunia a família toda na sala para ver filmes como “Os Caçadores da Arca Perdida”, “Força Sinistra” e “Comando para Matar”, sem se importar se eu e meus irmãos Diego e Rodrigo ainda éramos muito garotos para ver filmes com tanta violência e mulher pelada. Por causa deles, a paixão pelo cinema começou desde cedo, e eu sempre gostei de pesquisar e escrever sobre filmes. Comprava as revistas SET e VideoNews, que eram a única fonte de informações cinematográficas pré-internet, e aqueles guias de vídeo da Nova Cultural, enormes e cheios de resenhas com estrelinhas. Só que eram tempos pré-internet, não é como hoje que você assiste um filme e dois minutos depois já posta uma resenha gigante no seu blog. Na época, eu escrevia textos sobre os filmes que gostava em cadernos, sonhando qualquer dia publicar. Também forçava meus amigos a assistirem os mesmos filmes que eu gostava, tipo “O Massacre da Serra Elétrica” e “Hardware”, para depois ter com quem conversar sobre eles. Era complicado. E no meio desse mundo insano, já colecionando fitas de filmes, bateu a vontade de fazer os meus próprios. Eu já criava filmes imaginários desde a infância. Meus pais não tinham câmera de vídeo, mas mesmo assim eu escrevia roteiros para filmes que sonhava fazer em algum momento da minha vida. Um desses roteiros era de um filme policial chamado “Ponto de Ebulição”, muito influenciado pelas obras do John Woo, e que tinha vários tiroteios e cenas de ação. Lembro que fiquei um tempão treinando como eu faria essas cenas. Por exemplo, colocava um colchão no chão e ficava dando saltos acrobáticos atirando com pistolas imaginárias e caindo no colchão, uma coisa bem débil mental. E nenhum desses filmes nunca saiu do papel justamente pela falta da câmera. Hoje é fácil, até telefone celular filma em boa qualidade, mas na época só existiam aquelas câmeras VHS gigantes, e só famílias abonadas tinham a sua. Até conseguir uma dessas emprestada de um amigo meu, foram longos anos em que fazer filmes parecia um sonho cada vez mais distante.

Baiestorf: Fale sobre teu primeiro curta-metragem, “A Noite da Punheta Assassina” (1995):

Guerra: Numa noite dessas, eu estava na casa do meu amigo Mathias Gusso, cujo pai tinha uma daquelas câmeras de vídeo gigantes sobre as quais falei antes. Estávamos sozinhos na casa dele e numa turma de cachaceiros, enchendo a cara com o que quer que tivesse para beber, e de repente o Mathias aparece com a câmera do pai dele para filmar todas as bobagens que a gente estava fazendo e falando. Quando aquela câmera caiu na minha mão, eu sugeri fazermos um filminho de brincadeira. Os caras gostaram e, volto a ressaltar, estavam mamados demais para terem qualquer senso crítico. E saímos pelas ruas de Carlos Barbosa filmando cenas sem diálogos, apenas com uma narração que eu ia inventando na hora, e que deram origem ao curta “A Noite da Punheta Assassina”, estrelado pelos meus amigos Mathias, Leandro Perera, Paulo Dalle Laste e meu primo Ricardo Felicetti. Basicamente, era a história de quatro rapazes que morriam de tanto bater punheta, e depois ressuscitavam como zumbis sedentos de sexo. Mas a gente cansou da brincadeira antes de filmar qualquer conclusão para a história, então no fim eu só tinha o começo e umas cenas aleatórias dos caras andando como zumbis pelas ruas escuras e desertas de Carlos Barbosa. Uns dias depois, quando assisti aquilo em casa, comecei a ter idéias para completar a história usando cenas de outros filmes, editando no esquema dois videocassetes que você conhece muito bem. Aí eu usava pedaços de outros filmes para tapar buracos no meu curta. Por exemplo, depois que os guris morriam de tanto se masturbar, eu coloquei uma cena do “Plan 9 From Outer Space” em que o disco voador toscão lança um raio sobre o cemitério, para explicar que foram os alienígenas que ressuscitaram os punheteiros. E fui fazendo essa brincadeira de colagem e montagem até terminar com um curtinha bem tosco, mas muito engraçado, de 10 minutos, que veio a ser o meu primeiro “filme”, por assim dizer.

Baiestorf: Você diz que este curta está perdido, mas como uma obra tão recente se perde? Ou é você que não quer que este seja exibido?

Guerra: Foi um lamentável acidente. O fato é que pouquíssimas pessoas viram “A Noite da Punheta Assassina” depois de pronto. Uma delas foi meu amigo, colega de trabalho no jornal e futuro colega de produtora Eliseu Demari, que veio até a minha casa para assistir e se mijou de rir. Aí os “atores” do curta e o dono da câmera também quiseram assistir, e eu, besta, emprestei a fita original, com a única cópia existente do filme. E você sabe como são essas coisas: um pega, empresta para outro, que empresta para outro, que por sua vez deixa com outro, e quando percebi ninguém mais sabia onde estava “A Noite da Punheta Assassina”! Até hoje eu desconfio que um dos quatro caras que apareceram como atores deu um sumiço na fita ao perceber que estava pagando o maior micão, o que é compreensível. Mas nunca consegui rastrear o filme, que está perdido desde 1995. Inclusive peço encarecidamente que os cidadãos de Carlos Barbosa dêem uma busca nas suas velhas fitas VHS, talvez uma delas contenha a única cópia existente do meu primeiro “filme”, e eu gostaria muito de rever essa bobagem! Particularmente, não tenho nenhum problema com a exibição de “A Noite da Punheta Assassina”, só acho que é uma obra muito estúpida e desprovida de interesse para ser exibida em qualquer lugar fora da minha casa. Uma brincadeira entre bêbados, que eu pensaria duas vezes até mesmo para colocar no YouTube. Se um dia eu ficasse famoso talvez tivesse algum valor, mas hoje não vale um tostão furado. Só tem mesmo o valor nostálgico. E uns anos depois eu pensei seriamente em refilmar a história como um longa, só que acabei transformando a idéia dos punheteiros-zumbis numa história de ficção científica trash sobre bebês mutantes que vivem nos esgotos e são gerados pelo esperma que desce vaso abaixo por causa das masturbações da galera no banheiro. Esse é mais um dos muitos roteiros que escrevi e nunca filmei.

Baiestorf: “A Noite da Punheta Assassina” foi lançado em VHS, mostras e festivais ou foi apenas assistido por seus amigos mais pessoais?

Guerra: Como eu expliquei, o filme nunca saiu do meu círculos de amigos, e as poucas pessoas que viram antes da fita desaparecer tiveram que ir lá na minha casa. Tanto que a única pessoa que tenho certeza que viu “A Noite da Punheta Assassina”, além de mim, foi o Eliseu, que inclusive desenhou uma capinha bem simplória para a fita, com a hilária imagem de um pênis monstruoso à la Godzilla. Por e-mail, eu pedi para ele agora a pouco se lembrava de alguma coisa do filme. Eis a sua declaração: “Infelizmente (ou felizmente?) lembro pouco ou nada desta obra. Fui audiência de ‘A Noite da Punheta Assassina’ uma única vez, mas a despeito da minha memória fraca, posso dizer que o que mais me impressionou não foram as cenas improvisadas, o arremedo de roteiro ou o avacalho puro e simples, e sim a, digamos, inconseqüência de quatro ou cinco adolescentes amigos meus a gravar tal situação nas ruas escuras da nossa pacata cidade. Na verdade, a única seqüência que mantenho em recônditos de minhas vias hipocampais é de dois ou três ‘atores’ circulando pelo Calçadão do Centro – talvez com o busto do Doutor Carlos Barbosa ao fundo – a simular uma masturbação furiosa em direção à câmera, com direito a feições que denotavam raiva ou ódio ou ameaça, sendo que ao final do take todos desviavam o olhar em meio a um sorriso nervoso que devo interpretar como se estivessem dizendo para si mesmos: ‘Não acredito que estou fazendo isso’.”.

"Ponto de Ebulição".

Baiestorf: E o “Ponto de Ebulição” (1996), como surgiu a idéia para fazê-lo?

Guerra: “Ponto de Ebulição” era um daqueles roteiros que eu tinha escrito quando moleque. Era tão descaradamente inspirado nos filmes do John Woo que até o título é uma referência bem óbvia ao meu filme preferido dele, “Fervura Máxima” (Hard Boiled, 1992). Esse curta surgiu porque eu vivia falando com meus amigos que escrevia roteiros e que um dia iria fazer filmes, e eles ficavam putos comigo porque era sempre a mesma conversa. Certo dia, o Eliseu duvidou e eu apostei que faria um curta-metragem num final de semana. E resolvi filmar esse “Ponto de Ebulição”, que era a história de quatro rapazes que assaltavam a casa de um bancário em busca de dinheiro para comprar drogas, mas o matavam acidentalmente. No roteiro original, era aniversário do falecido e várias pessoas chegavam à casa para uma festa-surpresa, então os bandidos tinham que ficar toda hora dando sumiço no cadáver de forma criativa, uma espécie de “Um Morto Muito Louco” misturado com “Festim Diabólico”. E várias pessoas descobriam que o aniversariante estava morto e também eram assassinadas para manter o segredo. A história terminava com dois matadores da Máfia chegando a casa, porque o bancário estava jurado de morte por um traficante para quem lavava dinheiro, e aí os jovens assaltantes lutavam contra os matadores, e no final sobrava apenas um. Como eu tinha apenas um final de semana para filmar, fui cortando páginas do roteiro para deixá-lo mais simples. Eliminei toda essa idéia da festa de aniversário do morto. Então era só o assalto, a morte acidental do assaltado, e a partir daí uma série de confusões e brigas entre os próprios criminosos, até a chegada de um único matador profissional e o duelo entre todos eles. Como eu precisava da câmera do meu amigo Mathias, tive que implorar para ele me emprestar e ainda aparecer no filme como o tal assassino contratado, e felizmente ele aceitou depois de muita aporrinhação. Os outros personagens foram interpretados pelos meus amigos Gustavo Zanuz, Paulo Dalle Laste, Gustavo Ghiddini, Guilherme Tusset e Elton Demari, e pelos meus irmãos Rodrigo e Diego Guerra. Eu não tinha muita noção de cinema na época, então todas as cenas foram filmadas na ordem linear e praticamente num único take, com o quadro aberto e todos os atores falando todos os diálogos sem cortes, um lance bem teatral. E fiz a burrada de querer interpretar um dos personagens principais, aí a câmera ficava sempre em mãos menos hábeis. Foi uma bagunça para filmar, as coisas nunca saíam como eu queria. Tudo, mas tudo mesmo era improvisado: o sangue, que eu não sabia como fazer, os tiros eram estalinhos de São João estourados por trás da câmera, porque eu não imaginava que depois dava para dublar os sons, e por aí vai. Os créditos iniciais, para você ter uma idéia, eram papéis impressos e colados na parede, com a música tocando num aparelho de CD no fundo! Apesar disso, “Ponto de Ebulição” até tinha algumas cenas legais. E eu consegui fazer num único final de semana e ganhei a aposta. Logo virou lenda em Carlos Barbosa, mesmo que na verdade seja um negócio tosco pra cacete! Eu acho até que o roteiro original do filme, com a história toda da festa de aniversário e dos caras terem que ficar sumindo com o cadáver do dono da casa, tinha potencial para virar um longa bem divertido, e talvez qualquer hora dessas eu reescreva tudo e filme decentemente. Ah, tem uma história engraçada sobre os bastidores de “Ponto de Ebulição”: filmamos o curta inteiro na minha casa, e ao final do dia estava uma bagunça por toda parte. Meu pai voltou do trabalho e, chegando em casa, estranhou que a porta estava escancarada. Aí entrou e viu sangue (de groselha) no chão e cadeiras viradas por toda sala. Pensou que alguém tinha assaltado a casa e matado todo mundo. Subiu rapidamente para o segundo andar, para pegar o revólver que guardava na gaveta do lado da cama, e, ao passar pelo banheiro, viu meu irmão Rodrigo deitado de cueca dentro da banheira, coberto de sangue falso. Eu estava com o resto da turma no quintal, filmando outras cenas, mas depois meu pai me contou que ficou branco e quase teve um treco ao ver seu filho caçula esquartejado dentro da banheira, até que meu irmão levantou a cabeça e explicou tudo. E também foi nesse filme que surgiu o nome “Necrófilos Produções Artísticas”, na época uma brincadeira por causa da minha banda de garagem, mas que eu adotaria como alcunha oficial a partir de então.

Baiestorf: Com este curta você discutiu a relação da juventude com as drogas e a população de Carlos Barbosa não aprovou a temática. Conte como foi isso. E por que você não continuou desenvolvendo roteiros com temáticas mais polêmicas?

Guerra: Na verdade não foi o “Ponto de Ebulição”, mas sim o primeiro “Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-feira 13 do Verão Passado”, em 2001, que deu problema por causa do lance das drogas. O roteiro de “Ponto de Ebulição” originalmente tinha várias referências a isso, já que os quatro protagonistas queriam assaltar o bancário para conseguir dinheiro para comprar drogas. Como cortei muita coisa do que seria o longa para poder filmar um curta, acabei deixando isso de lado – até porque pensei que era muito moralista mostrar os criminosos como usuários de drogas. No caso de “Entrei em Pânico…”, foi o seguinte: nos slasher movies tradicionais, tipo “Sexta-feira 13”, o personagem que usa drogas geralmente morre, então eu fiz com que todos os personagens do meu filme usassem drogas – maconha, cocaína e até heroína. Isso era uma realidade na época, não como hoje, que droga é modinha e muito mais fácil de conseguir, mas já era comum o uso de drogas mesmo numa cidade pequena, como a minha. Só que ninguém gostava de falar sobre o assunto, o tema era tabu, e por isso muitas pessoas reclamaram quando viram o filme, especialmente na cena em que meu irmão aparecia se picando com uma seringa. Eu vou falar a verdade: quando filmei essas cenas, estava tentando ser exagerado e engraçado, nunca pensei que fossem levar a sério. Também não era minha intenção discutir um problema social a sério, era simplesmente essa brincadeira com os clichês dos filmes de horror: se todos os personagens usam drogas, como saber quem vai morrer e quem vai viver? Mas isso chocou um pouco a sociedade de Carlos Barbosa. Ironicamente, eles nunca falaram nada da violência explícita, dos palavrões e nem das cenas em que os guris assistem filmes pornográficos. Só o consumo de drogas incomodou, até alguns pais acharam o fim da picada e vieram reclamar comigo porque seus filhos tinham assistido aquele filme “imoral” que mostrava os guris fumando maconha e cheirando cocaína como se fosse a coisa mais normal do mundo. Bem, se eu fosse ligar para tudo que falavam sobre mim em Carlos Barbosa, eu nunca mais faria nada. Mas a verdade é que em todos os meus filmes posteriores eu peguei mais leve nessa questão das drogas, não tanto pela polêmica, mas porque não queria repetir a piada. E porque, como eu disse antes, hoje o uso de drogas é tão comum, tão “modinha”, que eu prefiro nem enfocar mais.

Baiestorf: “Ponto de Ebulição” teve lançamento oficial? Como foi?

Guerra: Petter, você fica me perguntando sobre lançamentos, festivais, então deixa eu te explicar que esses meus primeiros “filmes”, tanto o “Punheta Assassina” como o “Ponto de Ebulição”, ainda eram produzidos como uma grande brincadeira, sem nenhuma pretensão de ganhar alguma exibição além do meu círculo de amigos. E eram muito toscos para eu sequer imaginar que sairiam desse pequeno grupo de pessoas. Além do quê, eu era meio trapalhão. Antes perdi a fita de “A Noite da Punheta Assassina”, e no caso de “Ponto de Ebulição” fiz ainda pior: na hora de editar, fiquei gravando e regravando as cenas de uma fita para a outra sem perceber que isso fodia com a qualidade de imagem e de som. E, depois que a montagem ficou pronta, fiz a burrada de copiar um filme pornô na fita onde estavam as gravações originais, apagando tudo. Hoje só sobrou essa cópia de cópia de cópia de cópia com qualidade sofrível de imagem e som. Se eu ainda tivesse os originais, hoje poderia digitalizar tudo e reeditar de forma decente no computador, até pela nostalgia da coisa. Mas só sobrou uma montagem porca, e qualquer dia desses quero reeditar e redublar (porque os diálogos estão inaudíveis) para jogar no YouTube. Porque, apesar de ficar restrito a um pequeno grupo de espectadores, “Ponto de Ebulição” virou uma espécie de filme de culto em Carlos Barbosa, especialmente para alguns jovens que perceberam que era possível fazer seus próprios filminhos caseiros. Conheço gente que até hoje recita os diálogos do curta de cor – pérolas como “Vamos carnear os dois” e “Ele não era tão bom assim”.

Baiestorf: Fale sobre “Patrícia Gennice” (1998), seu primeiro longa-metragem:

Guerra: Foi o seguinte: em 1997, eu tinha essa experiência frustrada dos dois curtas bestas que fiz, “Punheta Assassina” e “Ponto de Ebulição”, e pensei que nunca conseguiria fazer nada além disso. Então li uma reportagem muito interessante na Folha de São Paulo sobre um tal de Petter Baiestorf, conhece? Um cara que também estava fazendo filmes trash numa cidade do interior. Me identifiquei com aquilo e fiquei surpreso ao saber que você conseguia vender as fitas dos seus filmes. Na mesma época, um amigo comprou “Eles Comem Sua Carne” e me emprestou para ver. Aquilo me deixou maluco, porque era exatamente o tipo de filme que eu queria fazer e que achei que nunca seria possível sem recursos, mas você me provou o contrário. Foi o meu guru, por assim dizer, mas sem viadagem! Por causa daquela reportagem e do “Eles Comem Sua Carne”, eu decidi filmar o meu próprio longa-metragem. Mas, ao invés de terror, preferi escrever uma versão juvenil de “Depois de Horas”, filme do Martin Scorsese que acho fantástico. Era a história de um rapaz que marcava encontro com uma bela garota e passava o filme todo tentando chegar na casa dela, mas sempre acontecia alguma coisa bizarra que o impedia, inclusive encontros com traficantes e matadores de aluguel. Era uma comédia episódica, em que um mesmo personagem principal passava por várias situações cada vez mais esquisitas e absurdas. E como naquela época eu estava apaixonado por uma garota, resolvi fazer uma homenagem romântica chamando a personagem-título de Patricia Gennice, que é um anagrama do nome da menina de quem eu gostava, e que depois foi minha namorada por alguns anos. Só que desde o princípio, desde quando estava escrevendo o roteiro, eu percebi que jamais conseguiria fazer “Patricia Gennice” da forma como fiz meus outros filmes, com câmera emprestada de amigo e cenas filmadas num único take. Resolvi juntar minhas economias e comprar uma câmera VHS, que na época custou 800 reais, mas era tudo que eu tinha. E a partir de então comecei a chamar amigos interessados em fazer algo um pouco mais sério, sem aquele clima de brincadeira descompromissada dos meus outros filmes caseiros. Os problemas começaram desde cedo, pois o cara que faria o personagem principal, meu amigo Alberto Chies, filmou algumas cenas e depois foi embora de Carlos Barbosa para morar em Londres, onde está até hoje. Ele foi substituído por Fabiano Taufer, que gostava muito de teatro e cinema, e encarou o desafio, sem saber que passaria seis meses vestindo a mesma camisa suja, fedorenta e coberta de sangue (já que a história do filme se passa numa única noite, mas as filmagens demoraram exatos seis meses). Nós filmávamos de madrugada, quando voltávamos da faculdade, porque a história se passava à noite. Foi baseado na dificuldade de filmar nas madrugadas geladas do Rio Grande do Sul que decidi nunca mais fazer filmagens noturnas, ou pelo menos reduzi-las. Até porque a gente ficava zanzando pela cidade com armas de verdade (facas e o revólver do meu pai), e os atores cobertos de sangue falso, sem imaginar que poderia dar merda. Lembro que filmamos uma cena em que Fabiano e Eliseu Demari estavam numa escadaria, ao lado de um prédio residencial, e Mathias Gusso aparecia e matava Eliseu com um tiro. Filmamos isso perto das duas da madrugada, um silêncio sepulcral ali, até o momento em que estouramos uma bombinha para simular o barulho do tiro – porque eu ainda não sabia que dava para dublar o som depois. Depois do estouro, o Eliseu caiu gritando e se esvaindo em sangue de groselha, que saía de um saquinho por baixo da sua camisa. Quando eu parei de gravar, olhamos para cima e percebemos, apavorados, que todo mundo no prédio ao lado tinha acordado, um montão de gente com cara de sono e pijama nas suas sacadas tentando descobrir o que é que estava acontecendo. Tive sorte que eles perceberam que era tudo brincadeira e não chamaram a polícia, pois o Mathias segurava um revólver calibre 32 de verdade na mão! E como era uma pequena produção caseira, enfrentei todo tipo de dificuldades para fazer “Patricia Gennice”. Algumas passagens do roteiro não foram filmadas simplesmente porque eu não tinha como fazer, incluindo uma cena de necrofilia. Furos de roteiro e erros de filmagem eram contornados criando-se novos personagens para tentar corrigir as cagadas. Em meio aos seis meses de filmagens, por exemplo, o Fabiano cortou o cabelo e estava muito diferente das outras cenas que tinha gravado, isso para uma história que se passa numa única noite. Então tive que inventar uma cena em que ele encontra um demônio (na verdade, uma demônia), e ela corta o cabelo dele! Também enfrentei todos aqueles problemas de quem está tentando fazer cinema numa cidade pequena. Os dois personagens mais delicados da trama, um homossexual que tenta comer o personagem principal no banheiro público e um travesti, eu mesmo tive que fazer porque ninguém queria, tinham medo de passar vergonha. E era quase impossível conseguir garotas para fazer o filme, elas tinham medo e achavam que tudo era uma loucura. A atriz que faz Patricia Gennice, a Franciele Mazetti, topou e fez tudo sem reclamar, mas não era a pessoa ideal para o papel, simplesmente foi a única que aceitou. Mas no fim tudo deu certo. O filme ficou bem divertido, as piadas funcionam até hoje e ele acabou virando uma espécie de documento histórico sobre a minha cidadezinha, pois tem muitas filmagens externas, e Carlos Barbosa mudou bastante de 1998 para cá, então as imagens mostram prédios e lugares que não existem mais, o que é muito legal. Tem gente que acha “Patricia Gennice” o meu melhor filme, apesar de ter muitos problemas de narrativa e ser bastante mal-filmado.

Baiestorf: Neste seu primeiro longa, “Patrícia Gennice”, notamos que sua cidade natal, Carlos Barbosa/RS, é importante na trama desenvolvida pelo roteiro (aliás, praticamente todos seus filmes são ambientados em Carlos Barbosa). Como é filmar na cidade? Tu pede autorizações? Conta com apoio da população?

Guerra: O interessante de filmar “Patricia Gennice” de madrugada foi justamente o fato de não ter ninguém por perto para encher o saco, com exceção da cena da morte do Eliseu que eu narrei na resposta anterior. E sempre fui muito cara-de-pau, eu chegava nos lugares e filmava, sem pedir autorização para ninguém e nem avisar que estava fazendo um filme. Durante os créditos de abertura, por exemplo, a Franciele caminha pelas ruas do centro de Carlos Barbosa e passa por várias pessoas que estavam ali sem saber o que a gente fazia, e você percebe claramente que elas olham curiosas, meio assustadas até, para a Franciele e para a câmera. Achei isso divertido porque de certa forma se encaixa na trama, é como se a Patricia Gennice atraísse todos os olhares da cidade enquanto caminha, entende? Outro exemplo de como a gente era sem-noção é que tinha uma cena em que dois rapazes vão até a casa de um traficante em Garibaldi, uma cidade vizinha. As cenas internas nós filmamos em Carlos Barbosa mesmo, na casa de um dos atores, mas precisávamos de uma externa e tinha que ser em Garibaldi. Eu não queria incomodar ninguém lá em plena madrugada, então simplesmente usamos um casarão onde funcionava um consultório médico, e não tinha cerca na frente. Cara, aquilo foi muito estúpido: a gente ficou um tempão caminhando e filmando na fachada, dos lados e até nos fundos do casarão, sem imaginar que algum vizinho poderia estranhar a movimentação e chamar a polícia. Felizmente, também nesse caso, tudo deu certo no final. Eu gosto muito de filmar em Carlos Barbosa porque conheço todo mundo, então não preciso perder muito tempo explicando que estou fazendo um filme e tal, e porque sei onde encontrar as coisas que preciso. Se estou escrevendo um roteiro e invento uma cena com uma cachoeira, por exemplo, já sei onde encontrar uma para ir filmar, não preciso perder tempo procurando. Na verdade, já faz algum tempo que ando meio decepcionado com a minha cidade, principalmente com os políticos de lá. E nunca me senti muito valorizado também, considerando que levo o nome de Carlos Barbosa para o país inteiro. Mas é aquela velha história de que santo de casa não faz milagre, então aprendi a viver com isso. E querer que políticos se preocupem com alguma coisa além do próprio salário também é pedir demais.

Baiestorf: “Patrícia Gennice” foi editado de VHS pra VHS. Fale como era realizado este penoso processo de edição onde, geralmente, os cortes nunca ficavam no lugar previsto.

Guerra: Pois é, Petter, você também passou por essa triste realidade e sabe como era complicado. Aliás, eu diria que uma das maiores declarações de amor pelo cinema era editar de um vídeo para o outro, porque era um trabalho muito fodido, então você precisava gostar MESMO daquilo para fazer. Só para dar uma idéia para essa gurizada de hoje: você tinha que ficar dando REC, stop e pause infinitas vezes de um videocassete para o outro e ainda torcer para as “emendas” ficarem no lugar certo – e é claro que quase nunca ficavam. Geralmente, eu editava uns dois minutinhos e daí parava e voltava a fita para assistir se tinha ficado mais ou menos ou muito ruim. Foda era quando dava algum problema justamente nos primeiros 10 ou 15 segundos, te obrigando a começar tudo de novo. Por isso, era comum deixar um intervalo de uns dois segundos no final dos takes, para poder fazer as emendas e “re-emendas” na hora de editar. Aí você acabava com um montão de cenas em que os “atores” ficam olhando um para o outro depois do diálogo, uma bosta! Outro problema dessa forma jurássica de edição é que você tinha que montar o filme na ordem linear. Ou seja, se na metade da montagem percebesse alguma cagada lá no começo do filme, já não dava mais para mexer. A não ser que reeditasse tudo de novo! E o problema da música? Você tinha que escolher se deixava o som original da gravação ou se colocava a música por cima, porque aí apagava o áudio gravado. Então as cenas com música tinham que ser cenas mudas! Era absurdo… Como eu disse, muito amor pelo cinema e muita vontade de fazer filmes, porque aposto que muita gente desistiria já nos primeiros cinco minutos. Em 2008, quando “Patricia Gennice” completou 10 anos, eu reeditei ele completamente no computador, dessa vez fazendo os cortes direitinho e colocando as músicas junto com o áudio original. Ficou bem legal, e eu ainda incluí umas cenas filmadas diretamente da tela do computador com aquele programa Google Earth, para mostrar ao espectador que não conhece Carlos Barbosa que o personagem estava indo para cada vez mais longe do local onde deveria estar. Essa versão reeditada eu coloquei no YouTube em seis partes, para quem tiver interesse em ver. Fui tão minucioso que até chamei alguns dos atores, dez anos depois, para gravar alguns diálogos novamente e redublar cenas que estavam ruins. Em outras, que não tinha conserto, coloquei legendas para que fosse possível entender o que estava sendo falado.

Baiestorf: Teu primeiro longa teve distribuição em VHS? Como foi a recepção do público?

Guerra: Eu não cheguei a distribuir o filme em vídeo, mas ele teve “lançamento comercial” num extinto bar da minha cidade, o Beco do Rock. Acontece que o pessoal mais “underground” da minha cidade ficou curioso ao saber que eu estava fazendo um filme, a coisa se espalhou de boca em boca e os donos do bar, que eram meus amigos, combinaram de estrear o filme lá. Para mim já era uma realização. Mas o lance engraçado foi o seguinte: quando a data da “estréia” foi marcada, eu ainda não tinha acabado o filme – e como ele estava sendo gravado na ordem linear dos acontecimentos, faltava justamente o final! Por armadilhas do destino, eu só fui gravar a cena final NA VÉSPERA DA ESTRÉIA, e aí fiquei praticamente 12 horas direto editando aquilo de um vídeo para o outro. Você pode até achar que estou sacaneando, mas é a mais pura verdade: eu terminei de editar “Patricia Gennice” uma hora antes da estréia oficial, e quando cheguei com a fita no Beco do Rock o lugar já estava lotado de gente para ver o filme, que por pouco não ficou pronto! Mas o legal é que foi um sucesso e a galera do bar até marcou uma segunda sessão para aproveitar os comentários positivos, e depois “Patricia Gennice” foi exibido em mais uns dois bares de Carlos Barbosa. O auge da “carreira comercial” foi quando passamos ele num bar em Bento Gonçalves, uma outra cidade vizinha. Eu jamais achei que o filme chegaria tão “longe”. Depois ele ainda foi exibido em algumas escolas, porque os professores achavam o máximo que alguém tivesse feito um filme em Carlos Barbosa e tentavam incentivar o potencial artístico dos alunos. Fora isso, “Patricia Gennice” nunca chegou às locadoras e nem foi vendido via correio. Em 2008, quando ele completou dez anos, conseguimos fazer uma nova exibição, dessa vez no cinema de Carlos Barbosa, numa sessão marcada pela nostalgia, e onde consegui reunir boa parte do elenco do filme para conversar com o público depois. Essa versão reeditada passou também no Fantaspoa, em Porto Alegre. Ainda pretendo lançar “Patricia Gennice” em DVD. O engraçado é que em 1998 mesmo nós gravamos um making-of do filme, com depoimentos dos atores e cenas de bastidores, e, como eu sou desorganizado, perdi esse negócio! Daria um belo extra de DVD, mas na época eu nunca imaginei que algum dia existiria DVD. Ou que eu conseguiria vender meus filmes para fora da minha cidade!

Felipe como o travesti Luana em "Patricia Gennice".

Baiestorf: Entre o lançamento de “Patrícia Gennice” (1998) e as filmagens do “Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-Feira 13 do Verão Passado” (2001), se passaram quase 3 anos. O que você fez neste período?

Guerra: Sonhei alto. Todo mundo ficava me falando sobre como “Patricia Gennice” era ótimo, sobre como eu devia fazer mais filmes, e eu comecei a sonhar alto demais e bolar projetos cada vez mais mirabolantes que nunca consegui filmar. O primeiro tapa na cara que levei foi o meu filme seguinte, que comecei a filmar em 1999 e se chamava “Escrito nas Estrelas”. Quando eu escrevi o roteiro desse negócio, resolvi colocar tudo aquilo que achava o máximo em outros filmes. Então a história tinha prostitutas lésbicas, mafiosos, um personagem drogado que tinha uma daquelas latas de maconha famosas nos anos 80, um padre que era matador de aluguel, poderes mentais, magia negra, tiroteios, perseguições de carro, cenas de tortura… Enfim, era um negócio impossível de filmar com os recursos que eu tinha, mas, como disse, na época eu estava sonhando alto e achava que podia fazer qualquer coisa. Chegamos ao cúmulo de construir cenários para o filme, para as duas ou três únicas cenas filmadas. Um desses cenários era o estúdio de um desenhista interpretado pelo Eliseu Demari, e lembro que roubamos uma mesa de desenho gigante do jornal onde eu trabalhava para colocar no cenário. A princípio, íamos filmar tudo que precisava num final de semana e devolver a mesa antes que alguém desse pela falta, mas aquele trambolho acabou ficando no “cenário” (um quarto da casa do Fabiano Taufer) quase meio ano, e ninguém percebeu que ela tinha desaparecido lá da redação do jornal, uma coisa de louco! À medida que fomos filmando, percebemos que era um projeto muito ambicioso e desistimos depois de um mês de gravações. Como eu disse, ficaram essas duas ou três cenas gravadas, e o mais irônico é que acho que elas estão entre as melhores coisas que já filmei na vida: tudo era planejadinho com cuidado, tinha um montão de planos de detalhe, uma produção absurda que eu nunca mais fiz igual, talvez pelo trauma de ter sido obrigado a desistir desse projeto aí. Outros dois roteiros que escrevi em 1999, e que nunca foram filmados, eram “Puteiro Sangrento” e “Amor Atemporal”. O primeiro é um terror podreira inspirado em “Um Drink no Inferno”, sobre um grupo de amigos que vai fazer a despedida de solteiro de um deles, mas acabam contratando três putas que são vampiras. Esse roteiro é muito engraçado, inclusive um tempo atrás peguei para ler e fiquei rindo sozinho. Tem uma cena em que o herói queima o rosto de uma das vampiras com uma fatia de pizza alho e óleo. A trama toda se passa num apartamento, e seria relativamente fácil de filmar. Inclusive lembro que só não filmamos “Puteiro Sangrento” porque “Um Drink no Inferno” ainda estava muito em evidência, e também porque ele exigia meninas desinibidas para fazer cenas de nudez e sexo simulado, mas eu nunca consegui meninas dispostas a isso em Carlos Barbosa, ainda mais de graça. Até pensei em contratar garotas de programa, mas fiquei com medo de encarecer demais a produção, ou de que as putas fossem encher o saco durante as filmagens ou depois. Mas é um filme que ainda quero fazer. Não quer produzir, Petter? É a tua cara! “Amor Atemporal” é um caso mais engraçado: trata-se da história de um rapaz que inventa uma máquina do tempo para voltar 10 anos no tempo e recuperar o grande amor da sua vida, que ele perdeu por causa de uma bobagem (leia-se “outra mulher”) numa noite de ano novo. Para dar a noção de “passado” e “presente”, eu ia fazer o seguinte: todas as cenas no “passado” eu iria filmar em 1999, e então esperaríamos uns quatro ou cinco anos para filmar as cenas do “presente”, pois a paisagem urbana mudaria substancialmente, com a construção de novos edifícios, e eu achava que isso bastaria para passar a idéia de que o protagonista estava voltando no tempo. Só que esse intervalo de anos iria me dar um trabalhão dos diabos, as cenas do “passado” teriam que ser muito bem planejadas para fechar com o que gravaríamos anos depois, então achei melhor cancelar o projeto e deixá-lo para mais adiante, quando eu teria mais experiência e tempo para fazer algo minimamente organizado. E então o que aconteceu: neste ano de 2011, o Claúdio Torres lançou o filme “O Homem do Futuro”, com o Wagner Moura, cuja história é muito parecida com aquela que eu não tive recursos para filmar! Inclusive meu irmão Rodrigo, que seria o protagonista do filme lá em 1999, viu o trailer de “O Homem no Futuro” na TV e na hora me telefonou e disse: “Tu viu que fizeram o nosso filme?”. É nesses momentos que eu fico meio frustrado por não ter dinheiro nem estrutura para tirar certos projetos do papel, como esse.

Baiestorf: Como surgiu a idéia para escrever o roteiro de “Entrei em Pânico…”, uma ótima sátira aos filmes de horror adolescentes que dominaram o cinemão nos anos de 1990?

Guerra: Bem, depois de todos esses projetos que não saíram do papel, eu quase abandonei o cinema independente. Afinal, continuava trabalhando como jornalista e fazia faculdade à noite, namorava… Então o tempo era cada vez mais escasso. E estávamos em plena moda daqueles filmes de terror bundões feitos na esteira do sucesso de “Pânico”, tipo “Eu Sei o que Vocês Fizeram no Verão Passado” e “Lenda Urbana”. A garotada amava esses filmes, então os grandes estúdios continuavam fazendo mais e mais, e era um pior que o outro. Eu cresci vendo slasher movies de verdade, tipo “Sexta-feira 13”, “Halloween” e “O Pássaro Sangrento”, e tinha pena da molecada que assistia “Pânico” e achava aquilo o máximo. Ora, os slashers dos anos 90/2000 nem mesmo eram sangrentos como aqueles do passado. Mas era a modinha, então nas férias do começo do ano, em 2001, eu e o Eliseu assistimos todos os filmes da série “Sexta-feira 13” (que até então eram nove), e ficávamos rindo das bobagens, dos clichês, de como era sempre a mesma história repetida inúmeras vezes, de como o Jason nunca morria e sempre pulava para dar aquele último susto no espectador, enfim, todas essas bobagens tradicionais dos slasher movies. E foi aí que comecei a ter a idéia de escrever “Entrei em Pânico…”. Originalmente, eu queria fazer um slasher sério na linha dos primeiros “Sexta-feira 13” e “Halloween”, mas sabia que, com os poucos recursos que tinha, ninguém iria levar a sério, por isso resolvi avacalhar de vez e fazer uma comédia que brincasse com os clichês do gênero. A única coisa que me propus desde o começo era que, mesmo engraçado, o filme teria mortes bem violentas e exageradas, justamente para contrastar com esses slashers mequetrefes tipo “Pânico”, em que a câmera desviava da cena de morte para não chocar a garotada. Criei esse título escalafobético como parte da brincadeira, mas muita gente não entendeu e acha que é uma homenagem a “Pânico” e suas imitações, quando na realidade é bem o contrário. Tanto que o assassino usa a máscara do matador do filme “Pânico”, mas o personagem por baixo da máscara é um completo imbecil. E eu aproveitei para brincar com todas essas coisas que achava engraçadas nos slasher movies em geral. Sabe aquele clichê do assassino parecer morto e de repente pular para agarrar as vítimas? Pois o assassino de “Entrei em Pânico…” ressuscita tantas vezes que começa a ficar chato até, e com isso eu quis mostrar como era chato aquele negócio de o Jason sempre ressuscitar estupidamente no começo de um novo “Sexta-feira 13”. E eu estendi o poder de ressurreição ao personagem-protagonista, interpretado pelo Eliseu Demari, que sempre é mortalmente ferido pelo assassino e mesmo assim volta umas três ou quatro vezes para salvar a mocinha Niandra Sartori do perigo. Por causa disso, o Eliseu foi apelidado de “Wolverine barbosense”. Outras coisas que eu brinquei foi com o lance das drogas, como disse antes. Todos os personagens são cachaceiros ou maconheiros, todos pensam em sexo, para não ter aquele clichezinho da virgem que sempre sobrevive no final. E eu ainda inventei uma reviravolta estilo “Psicose”, pois o protagonista do filme até então, interpretado pelo meu irmão Rodrigo, é morto na metade do filme, transformando o figurante Eliseu em verdadeiro protagonista. Enfim, foi um filme bem divertido de fazer porque eu sempre quis brincar com esses clichês todos, e ao mesmo tempo tentar fazer algo diferente, o chamado “contra-clichê”. Você pega um slasher tipo “Pânico” e já sabe desde o começo quem vai morrer e quem vai sobreviver. É a coisa que mais odeio nos roteiros do gênero, porque eles nem ao menos conseguem ousar um pouquinho na criação dos personagens. Por exemplo, por que a garota que sobrevive no final não pode ser a putinha drogada da história, ao invés de sempre a virgenzinha romântica?

Baiestorf: Você e sua equipe ficaram mais de 8 meses filmando “Entrei em Pânico…”. Essa demora nas filmagens foram problemas? Fale sobre as filmagens.

Guerra: Àquela altura todo mundo trabalhava e estudava, inclusive eu, então era relativamente difícil juntar a equipe para filmar. Se você comparar “Entrei em Pânico…” com meus filmes de antes, os atores já são quase todos diferentes e pertencem a uma geração mais jovem, porque meus amigos começaram a ficar velhos e não queriam mais saber de cinema independente, partiram para fazer suas coisas e me deixaram praticamente sozinho. Então muitos dos atores desse filme são amigos do meu irmão mais novo, Rodrigo, que começaram a fazer parte da minha equipe fixa a partir de então. Além disso, eu fiz algo que sempre digo que não vou mais fazer e sempre acabo repetindo, que é escrever cenas com muitos personagens juntos no mesmo lugar, e aí eu fico dependendo da disponibilidade de todos para filmar. Era bem comum eu combinar com quatro pessoas e a quinta cancelar em cima da hora por causa de outro compromisso, e por isso as filmagens demoraram tanto – e mesmo assim, perto do rolo que foram os meus filmes posteriores, até que não demorou tanto. Também foi uma produção bem barata: gastei R$ 250,00 nas filmagens, sem pagar nenhum dos atores, gastando apenas nas fitas e nos “efeitos especiais”. As cenas de morte me tomaram um tempão, não só na execução, mas principalmente no planejamento. Na época, a internet ainda estava engatinhando. Se hoje basta você entrar no Google e pesquisa por “cabeça decepada” para aprender tintim por tintim como fazer sua própria cabeça decepada caseira, naqueles tempos tudo tinha que ser improvisado. Nem receitas de sangue falso tinha na internet, então eu fui testando fórmulas diferentes, e cada morte do filme tem um sangue de tonalidade diferente, mais claro ou mais escuro. Muita coisa eu fiz no improviso. A morte em que um rapaz (Tomás Zilli) tem uma torneirinha enfiada no pescoço, por exemplo, eu escrevi mas nem imaginava como fazer. Quando chegou a hora de filmar, eu tentei colar a torneirinha no pescoço do “ator” com cola de silicone, mas não grudava. No desespero, e com o tempo passando (porque alguém sempre tinha um compromisso e me obrigava a fazer as coisas na corrida), resolvi deitar o Tomás no chão e colocar a torneirinha de pé no pescoço dele, aí virei a câmera para parecer que ele estava de pé, e ficou razoavelmente bom – pelo menos ninguém nunca percebeu a malandragem. E tinha uma cena em que um sujeito (Mathias Gusso) perdia as tripas. Eu pensei em mil maneiras de fazer a tripa, de corda pintada de vermelho até massa, mas nenhuma ficou legal. Resolvi usar tripas de verdade. Eu sabia que um agricultor ia matar um porco na véspera e comprei as tripas do bicho por mixaria. Quando apareci com aquele negócio na hora de filmar, o Mathias surtou, não queria colocar as tripas de porco por cima da roupa. No fim, perdi a discussão e tive que colocar a tripa no chão, do lado do “cadáver”, e ficou uma das cenas mais ridículas que eu já filmei: aquele cara caído com a camisa rasgada e as tripas jogadas do lado. Porque ele estragou essa cena, que podia ter sido bem legal do jeito que eu imaginava, fiquei de birra e nunca mais chamei ele para os meus outros filmes, e isso que o Mathias tinha aparecido em todos eles até então, desde o pioneiro “A Noite da Punheta Assassina”. Mas hoje ele é um homem casado e pai de família, então não iria mais se sujeitar às minhas loucuras de qualquer jeito. Outra cena complicada foi aquela em que um rapaz é esquartejado com serra elétrica. Quando chegou a noite da filmagem, eu ainda não tinha o cara para fazer a vítima, e quase eliminei o personagem da cena. Quando estávamos a caminho do sítio do meu pai, onde iríamos filmar, encontrei um amigo, o Andrius Berté, e pedi na hora se ele gostaria de participar, com a roupa do corpo mesmo. Ele aceitou sem saber o que iria fazer. Tínhamos uma motosserra real, e foi uma sorte que ninguém se machucou de verdade. O cara que interpretava o assassino (Fábio Prina) não enxergava direito quando estava com a máscara do matador, e a lâmina da serra ligada chega muito perto do braço do Andrius. Quando você vê o desespero dele na cena, aquilo é real, não é interpretação: o Prina quase serrou MESMO o braço do cara! E mais tarde, no final da cena de morte, o Andrius ainda tinha sangue esguichado por todo o seu rosto. Nós enchemos dois tubos de catchup com sangue de groselha para disparar jatos na cara dele. O problema é que ele estava com a boca tampada com fita (porque o personagem estava amordaçado), e o sangue falso entrou todo nas suas narinas, então ele não conseguia respirar, e na adrenalina da filmagem ninguém percebeu, até que o cara começou a se contorcer desesperado! Por essas e por outras, é um verdadeiro milagre que a gente tenha conseguido terminar “Entrei em Pânico…” sem matar ou machucar alguém de verdade, e desde então eu me preocupo muito mais com a segurança do pessoal que faz essas loucuras comigo.

Baiestorf: Ele foi lançado em cinema da tua cidade. Conte como funciona essa sua parceria com o cinema. Quantas sessões, em média, cada filme teu tem no cinema?

Guerra: Quando o pessoal da minha cidade ficou sabendo que eu estava fazendo um filme novo, e que era de “terror”, foi uma loucura. Saiu reportagem no jornal da cidade, e todo mundo queria assistir para ver como era um filme de terror filmado em Carlos Barbosa! Então dessa vez eu recebi o convite do pessoal do cinema de lá – é uma sala particular pequena com 130 lugares, quase um cineclube. Iam me dar metade da bilheteria, um acordo que mantenho com eles até hoje. “Entrei em Pânico…” iria estrear em 23 de dezembro de 2001, e eu novamente repeti aquele péssimo hábito de acabar de editar na véspera. Quando cheguei no cinema, uma hora antes do horário marcado para exibição, havia uma fila quilométrica para entrar. Tanto que era para ser uma sessão única, mas o pessoal do cinema teve que exibir o filme uma segunda vez naquela mesma noite por causa da quantidade de público. Foram duas sessões superlotadas, com mais de 300 pessoas no total.

Baiestorf: E como foi a reação do público? Depois do cinema ele foi lançado em VHS/DVD, lembro que ele fez relativo sucesso entre os cinéfilos que cultuavam produções independentes, chegando até a ser resenhado na extinta sessão “Vídeo Caseiro do Mês” da revista SET.

Guerra: O público foi ao delírio, era um festival de gargalhadas e gritinhos naquele cinema como eu nunca tinha visto igual, acredito que por causa das expressões populares que os personagens falavam, e por ser estrelado por jovens da cidade. E isso que “Entrei em Pânico…” originalmente era longo pra cacete, tinha duas horas de duração, por causa da maldita edição em dois vídeos. Como expliquei lá atrás, depois que você editava o começo, não podia mais voltar para mudar. E o começo do filme tinha ficado muito longo, mas eu só percebi isso depois que já tinha editado uns 45 minutos. Aí tive que acelerar todo o resto, mas mesmo assim ficou com duas horas. Por causa disso, é o meu filme que eu menos gosto. Acho muito chato e enrolado. Em 2010 eu reeditei no computador e cortei o tempo de duração para 1h12min, e mesmo assim acho meio xarope. Mas, como eu dizia, “Entrei em Pânico…” foi um sucesso no lançamento, e me obrigou a fazer fitas para colocar nas videolocadoras da minha cidade, de tanto que o pessoal pedia. Inicialmente, eram oito fitas circulando, quatro em cada locadora, e não davam conta da procura. Comecei a pensar: “Hmmm, acho que dessa vez eu acertei”, e resolvi divulgar o filme fora de Carlos Barbosa também. O que eu fiz: gravei umas 50 cópias em VHS e mandei por correio para tudo que era canal de TV, jornal, revista e site de cinema do Brasil. A maioria nem deu bola, mas alguns sites começaram a falar sobre o filme e assim a coisa foi se espalhando. Um site chamado Brócolis VHS, de uns caras que também faziam filmes independentes, postou um trechinho de “Entrei em Pânico…”, e a partir disso surgiram dezenas de compradores interessados no meu filme (era justamente a cena da motosserra). Depois o site Boca do Inferno publicou uma longa resenha, e aí o filme estourou. Comecei a vender fitas a 20 reais, e em poucos meses tinha feito mais de 100 cópias, um negócio inacreditável para uma produção caseira e sem maiores pretensões. E então a revista SET começou uma nova sessão intitulada “Vídeo Caseiro do Mês” e divulgou “Entrei em Pânico…” na edição de novembro de 2002, com uma crítica positiva, dizendo que era melhor que muita coisa que o Casseta & Planeta fazia. Aí sim choveram compradores. Vendi muita fita, certamente foi meu filme que me deu mais grana, e também ficou bastante conhecido por causa dessas diversas resenhas. Até costumo dizer que é um dos filmes independentes brasileiros mais conhecidos e menos vistos, ao contrário, por exemplo, do teu “O Monstro Legume do Espaço”, que passou numa caralhada de festivais. Todo mundo sabe que “Entrei em Pânico…” existe, mas pouca gente viu, até porque milagrosamente nunca vazou para download. Quando o filme saiu na SET, lá em 2002, eu achei que era o máximo de notoriedade que alcançaríamos, e já estava nas nuvens com a repercussão, quando apareceu o primeiro convite para dar uma entrevista na TV. Quem me contatou foi o pessoal da RBS, a sucursal da Globo no Rio Grande do Sul, para uma reportagem que foi exibida num programa exclusivamente gaúcho, o Teledomingo, exibido logo depois do Fantástico. A garotada que tinha aparecido no filme ficou super-contente de dar entrevistas para a TV, uma experiência totalmente nova. Quando a matéria foi exibida, parou a cidade. Mas o melhor veio depois: o repórter que fez a entrevista, Cristiano Dalcin, ligou avisando que tinha mandando a matéria para a Globo, e que ela seria exibida no Fantástico. Aí foi a consagração: eles exibiram a mesma matéria, mas com alguns cortes e a apresentação do Toni Tornado (que na época fazia uma novela de vampiros na Globo) e narração do falecido Francisco Milani. Passou no Fantástico em dezembro daquele ano, e, sem brincadeira, naquela noite parecia feriado nacional em Carlos Barbosa. Era a molecada da cidade chegando ao horário nobre da Globo! “Entrei em Pânico…” também ultrapassou as fronteiras do Brasil quando um espanhol chamado Diego San José me mandou um e-mail pedindo uma cópia do filme para resenhar numa revista espanhola de cinema fantástico chamada “Fabulando Espantos”. O filme não tinha legendas em português, nem tinha como fazer isso em VHS, mas mandei mesmo assim e achei que o cara nunca escreveria nada. Um tempo depois, chega pelo correio meu exemplar da revista com uma crítica negativa ao filme, mas mesmo assim fiquei feliz porque era uma resenha de página inteira de um filme de R$ 250,00, filmado em Carlos Barbosa, numa revista de cinema da Espanha. Isso sim que é globalização!

Baiestorf: Foi graças ao sucesso de “Entrei em Pânico…” que você foi convidado a fazer o curta “Mistério na Colônia” (2003). Conte como isso aconteceu?

Guerra: Foi isso mesmo. A produção do Caldeirão do Huck viu a matéria no Fantástico e resolveu aproveitar que o Luciano Huck estaria fazendo gravações no Festival de Cinema de Gramado para promover o nosso encontro. A idéia era que eu filmasse um curta-metragem em apenas um dia – na verdade uma tarde, porque ele só apareceu no começo da tarde e quando anoiteceu se mandou –, e editasse “do meu jeito”, no esquema dois videocassetes, para exibição no dia seguinte numa barraquinha em frente ao Palácio dos Festivais, onde é realizado o Festival de Gramado. Eles iam acompanhar todo o processo de pré-produção, filmagem, edição e, depois, a exibição. É claro que eu topei, mesmo sendo uma loucura. Pedi três dias de liberação do trabalho e combinei com uns conhecidos meus para fazerem parte do elenco: meu irmão Rodrigo, meus amigos Álvaro Guerra e Enio Martin Biancho e minha avó Oldina do Monte (que tinha sido figurante no filme “O Quatrilho”, do Fábio Barreto). Como não sabia exatamente o que eles estavam esperando, escrevi três roteiros diferentes e mandei para a produção do programa: um era uma aventura estilo James Bond, outro um terror propositalmente avacalhado, e o terceiro um terror um pouquinho mais sério. E o irônico é que eles escolheram esse último, mas me pediram para fazer avacalhado! Depois, conversando com o Huck, fiquei sabendo que ele nem chegou a ler os três roteiros, foi o pessoal da produção quem escolheu “Mistério na Colônia” para a gente filmar. A história é sobre um médico carioca (Huck, é claro) que vai até uma pequena cidade do interior gaúcho e descobre, da pior maneira possível, que todos os seus habitantes são canibais – uma homenagem a “2000 Maniacs”, do Herschell Gordon Lewis.

Baiestorf: Como foi filmar, em 24 horas, com o Luciano Huck? Repetiria essa experiência se rolasse novo convite?

Guerra: Foi muito engraçado, porque eu desempenhava todas as funções sozinho – direção, câmera, fotografia, efeitos especiais –, enquanto eles tinham uma equipe gigantesca ao meu redor para registrar tudo, com produtores, câmera, boom, iluminação… Na verdade eu tinha muito medo que a presença do Luciano Huck fosse provocar alvoroço e eu não conseguisse trabalhar direito, mas, apesar de ser uma cidade pequena, ninguém ficou sabendo da presença dele em Carlos Barbosa, tanto que o próprio Huck estranhou a falta de assédio. Teve uma cena que nós filmamos numa rua no centro da cidade, na frente da casa da minha avó, mas bem no horário comercial, então havia pouquíssima gente na rua. E quem passava e via nem acreditava que aquele era o Luciano Huck. Pouca gente parou para pedir fotos e autógrafos, inclusive às vezes passavam uns conhecidos meus e ficavam com vergonha de chegar perto, aí eu chamava e apresentava ao Huck. Outro detalhe curioso foi que a maior parte da trama se passa numa propriedade rural bem no interiorzão de Carlos Barbosa, e lá o pessoal da Globo ficou literalmente escondido, porque os donos da casa nem mesmo sabiam quem era o tal de Luciano Huck! Com certeza eu repetiria essa experiência, mas ia me organizar melhor, porque as coisas foram bem corridas devido à minha tradicional falta de organização. Lembro também que, na época, muita gente não gostou da união entre “cinema independente” e Luciano Huck, mas eu não vi problema algum nisso. Na época das gravações, alguém me mandou um e-mail anônimo dizendo que eu era um vendido, que o cinema trash era mais do que fazer palhaçada com apresentadores globais, que devia ser transgressor. Eu já achei o contrário: não é justamente transgressor você colocar uma equipe da Globo para acompanhar e participar de uma filmagem de cinema independente? E ainda dar um banho de sangue falso num apresentador global? Mas cada um com suas idéias.

Baiestorf: Conte algumas histórias de bastidores do curta “Mistério na Colônia”. Sei que existem várias histórias envolvendo chiliques do Luciano Huck e o nervosismo de sua vó e atriz, dona Oldina.

Guerra: Na verdade o Luciano Huck já chegou disposto a atuar de forma avacalhada, e eu não consegui em momento algum “dirigi-lo”, apenas dizia o que era para fazer e ele fazia do jeitão dele. Eu não me importei porque esse curta era mais dele do que meu, o pessoal do Caldeirão montou o circo todo e ele era o astro do show que queria brilhar no picadeiro. Então liguei o “foda-se” e encarei não como se estivesse fazendo um filme meu, mas sim um trabalho de encomenda. E o Huck entrou no espírito do negócio, inclusive tomando um banho de sangue falso sem reclamar. A única reclamação que eu tenho é que ele não quis filmar a conclusão do curta como estava no roteiro. No final, o personagem dele era agarrado pelos moradores da cidadezinha e esquartejado para virar churrasco. Na hora de filmar isso, ele alegou que já era tarde, que estava cansado, porque a filmagem foi na ordem linear dos acontecimentos, e improvisou uma conclusão “sem sangue” que eu não gostei. Ele simplesmente interrompia a filmagem e fazia uma daquelas piadinhas sobre a viadagem dos gaúchos, como o Casseta & Planeta adorava fazer na época, então nem ao menos era algo original. Foi uma coisa que eu só consertei quando reeditei o curta no computador, anos depois. Em relação à minha avó, era a primeira vez que ela trabalhava comigo depois de ter encarado uma equipe profissional nas filmagens de “O Quatrilho”. E ainda por cima iríamos filmar na casa dela e era um papel com diálogos, então ela ficou super-nervosa. Na montagem original do curta, aquela de 2003, ela tinha apenas uma fala numa cena de almoço entre os personagens, mas não conseguiu decorar por causa do nervosismo. Deixei ela ficar com a folha do roteiro no colo, por baixo da mesa, para ir memorizando o diálogo, mas quando eu estava filmando ela ficava olhando para baixo para ler, como se fosse uma “cola”, e pensando que não ia dar para perceber na filmagem! Depois de três ou quatro repetições, ela finalmente conseguiu dizer seu diálogo e a gravação seguiu adiante.

Baiestorf: Depois que “Mistério na Colônia” foi exibido na TV você optou por deixá-lo esquecido, até reeditá-lo em 2006 com a “versão do diretor”. Como foi isso?

Guerra: “Mistério na Colônia” nunca foi exibido na íntegra na TV. O que eles passaram foi uma matéria de 20 minutos falando sobre o cinema independente de Carlos Barbosa e mostrando os bastidores da filmagem e da exibição em Gramado, com algumas cenas do curta inseridas aqui e ali para mostrar como tinha ficado. E eu deixei o filme esquecido justamente porque, como eu disse antes, considerava um trabalho de encomenda, não um filme meu, e logo em seguida comecei a gravar “Canibais & Solidão”, o que me tomou bastante tempo. Em 2006, depois do lançamento de “Canibais & Solidão”, eu estava fuçando nas fitas velhas e redescobri “Mistério na Colônia”, que acho que nunca tinha sido exibido em lugar algum, nem mesmo na minha cidade. Minha primeira idéia era aproveitar o ineditismo e transformar aquele material num longa, usando algumas das cenas com o Luciano Huck como se fossem flashbacks, e contando a história do irmão do seu personagem, que iria até a cidadezinha onde ele desapareceu para investigar o ocorrido. Mas fiquei sem saco, mesmo tendo escrito um argumento para o longa, e resolvi simplesmente reeditar o curta para ficar um pouco mais próximo do que eu tinha escrito em 2003. A primeira coisa que fiz foi filmar umas cenas extras com a minha avó, uns diálogos para tapar uns buracos do roteiro, e assim ela ganhou mais falas do que a única que originalmente tinha. Graças ao milagre da edição, ninguém percebe que estes trechos foram filmados três anos depois. E eu pensei em refilmar a cena final com alguém vestido igual ao Huck sendo massacrado pelos habitantes da cidade, mas pensei que seria um trabalhão para algo que não me daria retorno algum. Então o que eu fiz: comecei a fuçar nas fitinhas que tinha gravado desde 1998 até então. Porque na época eu tinha um hábito esquisito de sempre levar a filmadora comigo onde quer que fosse, para filmar cenas da natureza, pôr-do-sol, riachos e coisas assim, pensando em algum dia usar essas imagens em futuros filmes. Entre essas gravações de arquivo, eu encontrei cenas da chegada do trem na minha cidade, e resolvi usar essas imagens durante os créditos iniciais, como se o personagem do Huck estivesse chegando de trem. Depois, achei umas cenas de uma festa junina realizada no interior, mostrando uns caras ateando fogo num monte de palha e fazendo uma fogueira monumental. Aí me deu um estalo: “O Homem de Palha”. Três anos depois das filmagens originais, eu gravei um dos atores, o Enio Martin Biancho, falando a frase “Agora você é nosso convidado para o churrasco”, dublei isso num dos trechos em que o Huck está sendo agarrado pela multidão e cortei direto para a galera tocando fogo na palha. Então parece que eles estão incendiando o personagem do Luciano Huck naquele fogaréu. E para não deixar nenhuma dúvida, eu fiz um take completamente doido: filmei diretamente a tela do computador, passando uma cena em que o Huck estava esperneando, e taquei fogo numa folha de papel bem na frente do monitor, então gravei a imagem dele gritando através das chamas, para parecer que estava queimando no meio da fogueira! Coloquei o curta no YouTube para quem quiser ver, e, considerando a forma como isso foi filmado, com uma folha pegando fogo na frente da tela do computador, até que ficou bom demais! E finalmente eu tive a conclusão que eu queria originalmente: matei o Luciano Huck!

Baiestorf: Nesta época, do “Entrei em Pânico…” (2001) em diante, percebemos que a tua pequena equipe se manteve junta e unida. Fale um pouco sobre o pessoal que te acompanha há mais de 10 anos na Necrófilos Produções:

Guerra: Em primeiro lugar, acho legal esclarecer que esse pessoal que aparece nos meus filmes não tem nenhuma formação em artes cênicas, nem nada sequer parecido. São amadores apaixonados por cinema, como eu, que tentam dar o melhor de si na frente da câmera. Por isso eu fico puto quando leio “críticas” sobre a atuação nos meus filmes. Eu não me importo que falem mal de mim, podem me xingar o quanto quiserem, falar que eu não entendo porra nenhuma de cinema, etc e tal. Mas não critiquem meus atores, até porque eles não são atores, são pessoas comuns quebrando um galho para mim, e de graça. E eu mantenho muitos deles no elenco dos meus filmes justamente por essa fidelidade, mesmo sabendo que não são nenhum Laurence Olivier. O Eliseu Demari, por exemplo, também é produtor dos filmes. Ele está trabalhando comigo desde “Patricia Gennice”, em 1998, mas já dava pitaco nos curtas que fiz antes. Geralmente é a primeira pessoa para quem eu mostro meus roteiros e sempre dá dicas, ajuda na execução, faz as artes dos pôsteres e capinhas dos DVDs. Se tudo der certo, estamos com um projeto para lançá-lo como roteirista e diretor agora no final do ano, pois já passou da hora de ele começar com seus próprios trabalhos. Meus irmãos Rodrigo e Diego também aparecem desde o começo, desde “Ponto de Ebulição”, e esse último deu uma parada agora porque já é pai de família. O Rodrigo entrou como co-produtor com “Entrei em Pânico Parte 2”, e foi o cara que mais me ajudou a tirar esse projeto do papel, inclusive dando uma mão nos efeitos especiais e aparecendo como dublê do assassino. Minha avó está no elenco fixo dos meus filmes desde “Mistério na Colônia” e vive pedindo para que eu faça novos filmes com ela. Gosto dela porque, apesar de estar com 80 anos, ela topa qualquer negócio. Se eu chegar e disser “Vó, na próxima cena eu vou tocar fogo na senhora”, ela mesma pega a gasolina e se joga em cima. A Niandra Sartori tem feito os principais papéis femininos dos meus filmes desde “Entrei em Pânico”, em 2001. Além de bonitona, ela convence como “scream queen”, e topou fazer a Parte 2 mesmo trabalhando como médica e sem muito tempo para dedicar ao cinema independente. Outro que tem participado de quase todos os filmes é meu amigo Leandro Facchini, que tem um jeito muito divertido de canastrão e voz de radialista. E ele realmente é um bom ator, consegue fazer personagens diferentes de um filme para o outro, oscilando entre o conquistador cara-de-pau e o sujeito tímido e introvertido. Além disso, nos bastidores eu sempre tive a ajuda do meu pai Quito e da minha mãe Neusa. Meu pai gostou tanto de “Canibais & Solidão” que colaborou com a grana para eu terminar “Entrei em Pânico Parte 2” quando minhas finanças foram literalmente à zero. Minha mãe é uma contra-regra maravilhosa, porque limpa toda a sujeira que fazemos quando enchemos a casa de sangue falso, pois a minha casa é geralmente o set de filmagem das minhas produções. Então, o que eu procuro fazer é sempre reaproveitar esse pessoal dedicado e fiel, que ajuda, que não incomoda, que dá o melhor de si sem ganhar nada. E eu tento me livrar dos malas que nunca podem filmar, que ficam enchendo o saco durante a filmagem, que ficam achando defeito em tudo ou vem com aquele papinho de “Ah, isso eu não vou fazer”. Esses caras podem até fazer um filme comigo, mas depois não chamo mais.

Baiestorf: Quando você começou a pensar no roteiro do longa “Canibais & Solidão” (2006), na minha opinião, um de seus melhores filmes? D’onde surgiu a idéia?

Guerra: “Canibais & Solidão” também é o meu filme que eu mais gosto, e lamento que ele não seja tão conhecido quanto outras obras que gosto menos, como o “Entrei em Pânico”. A idéia por trás do projeto é meio maluca: eu sempre fui fã dessas comédias adolescentes tipo “Porky’s” e “O Último Americano Virgem”, e lá pelos anos 2000 estava havendo um revival desse tipo de filme com a série “American Pie”. Alguns anos antes de “Canibais & Solidão”, quando eu estava filmando o primeiro “Entrei em Pânico”, comecei a pensar num roteiro de comédia adolescente que começava com um cara só de cueca em cima do telhado de uma casa, e a partir disso a história se desenvolveria em flashback mostrando como o sujeito foi parar ali e porquê. Mas acabei deixando isso de lado. E eu sempre fui muito fã daqueles filmes italianos sobre canibalismo, tipo “Cannibal Holocaust” e “Cannibal Ferox”. Depois de “Entrei em Pânico”, queria seguir nessa linha de sangueira e fazer uma aventura homenageando essas obras italianas, e que se chamaria “O Tesouro dos Canibais”. O argumento era sobre uma expedição que vai à Floresta Amazônia – na verdade, um matagal no sítio da minha família – em busca de um tesouro levado por um avião que caiu, e acaba tendo que lutar contra uma tribo de canibais. Eu tinha visto uns filmes do Jess Franco sobre o tema (“Manhunt – O Sequestro” e “White Cannibal Queen”), em que ele era tão cara-de-pau que colocava qualquer um como canibal, tinha até uns índios de costeleta e topetes tipo Elvis Presley. Por isso, achei que poderia fazer algo igual e ficaria pelo menos divertido. Mas quando vi meu irmão Rodrigo vestido como canibal, com roupa em farrapos e uma peruca de cabelos longos, eu quase me mijei de tanto rir, e cheguei à conclusão que jamais conseguiria fazer algo minimamente sério com esse tipo de “canibal”. Aí resgatei a idéia da comédia adolescente e simplesmente misturei as duas coisas: o protagonista seria um jovem tímido que não conseguia se relacionar com as mulheres, porque tinha visto muitos filmes sobre canibalismo e começava a manifestar tendências de comê-las literalmente. Sei lá, na minha cabeça pelo menos parecia uma boa idéia. Só que enquanto fomos filmando, resolvi diminuir consideravelmente a parte sobre canibalismo, até ficar apenas uma piada interna, dando mais destaque às confusões relacionadas aos jovens virgens que tentam perder a virgindade. Mesmo assim, acho que funcionou como homenagem aos filmes sobre canibalismo, eles são citados várias vezes no filme, e o grande objetivo do protagonista é conseguir uma fita do “Cannibal Holocaust” para completar sua coleção. No roteiro tinha várias outras cenas relacionadas ao canibalismo dele, mas por vários problemas que tive, e porque o tom do filme ia ficar diferente do que eu queria, acabei nem filmando, preferindo transformar “Canibais & Solidão” em comédia romântica. E não me arrependo dessas mudanças, eu acho que “Canibais & Solidão” ficou bem legal como está. E, como já disse, é o meu filme que eu mais gosto. Inclusive me dediquei tanto a ele que resolvi fazer uma ponta em que apareço pelado, mostrando a bunda. Isso aconteceu porque os atores principais do filme (Rodrigo, Eliseu e Fábio Prina) reclamaram que passavam por muitas situações constrangedoras ao longo da trama, inclusive aparecendo só de cueca. Para que aquilo não virasse um motim e ninguém desistisse de fazer, disse que, para compensá-los, eu apareceria pelado no filme, e aí ninguém ia lembrar das cenas constrangedoras deles. A filmagem dessa cena foi hilária, porque estávamos em cima do telhado da minha casa em três pessoas, eu peladão e enrolado numa toalha e o Rodrigo e o Fábio vestindo baby-doll como parte da cena. Eu filmava os dois e, quando precisava aparecer, um deles segurava a câmera e eu tirava a toalha. O problema é que, alguns metros em cima da minha casa – que é numa descia de morro –, tem um prédio residencial. Como filmamos aquilo num sábado à tarde, havia um montão de gente desocupada em casa para ficar nas sacadas e janelas acompanhando a filmagens e conseqüentemente olhando para a minha bunda quando eu estava peladão. Em compensação, depois disso, estou tão queimado na cidade que posso fazer qualquer coisa em Carlos Barbosa e os cidadãos de lá nem vão mais se importar. Se eu baixar as calças no centro da cidade, por exemplo, é provável que o pessoal nem se escandalize, mas apenas reclame: “Ah não, a bunda do Felipe de novo?”.

Baiestorf: “Canibais & Solidão” levou 3 anos para ser concluído. Por quê? E qual foi o custo final dele?

Guerra: Tudo que pode acontecer de ruim nas gravações de um filme independente aconteceu nas filmagens de “Canibais & Solidão”. O irônico é que quando eu comecei as gravações, em 2003, pensei no filme como uma comédia rápida para terminar em no máximo dois meses e depois me dedicar a algum outro projeto! O primeiro problema foi a desistência de um dos atores principais, que interpretava o personagem Marcelo. Esse cara já estava me xaropeando desde as filmagens do “Entrei em Pânico” dois anos antes, mas dei um voto de confiança, convidei-o novamente, e a retribuição que ganhei foi o mané pular fora quando tínhamos 70% do filme pronto. Isso aconteceu já no começo de 2004, e até então as filmagens estavam se arrastando justamente por causa dele, que sempre ficava achando desculpinhas para não aparecer nas gravações. A história por trás da desistência é que o cara estava descornado por ter tomado um fora da namorada, e ela também aparecia no filme, então quando um saiu tive que tirar o outro do elenco também. E como já estávamos com o filme quase pronto, seria necessário refilmar todas as cenas em que ele aparecia – e o cara era um dos personagens principais – e também as cenas dela, que interpretava a irmã do Eliseu. Os outros dois atores principais, Rodrigo e Eliseu, não queriam gravar tudo outra vez, e eu até entendo, porque tínhamos cenas muito boas com esse ator que desistiu. Eles queriam cancelar tudo e filmar outra coisa, mas eu teimei em recomeçar do zero porque gostava muito do roteiro de “Canibais & Solidão” e sabia que iria sair um filme muito divertido. Então convidei o Fábio Prina, que foi o assassino em “Entrei em Pânico”, para tapar o buraco e interpretar o personagem Marcelo. Originalmente, nas cenas já gravadas, o Prina fazia apenas uma ponta em “Canibais & Solidão”, como um personagem que acabou sendo eliminado nas regravações. E o Prina aceitou assumir o personagem, mas fez uma série de exigências, como a de não aparecer sem roupa numa cena em que ele e o meu irmão fugiam pelados de um pai enfurecido. Como eu já estava fodido mesmo, tive que aceitar as imposições, ou chantagens. O outro problema foi achar a menina para interpretar a irmã do Eliseu, porque na cena final ela aparecia tomando banho – e nem mostrava nada de nudez na cena, mas as garotas que eu convidava eram todas cheias de frescura, era só falar em cena de banho que já pulavam fora. Para não cortar a cena inteira, tive que convidar uma colega minha de faculdade, a Daniela Vidor, que não morava em Carlos Barbosa. E no fim foi melhor assim, porque a participação dela no filme é excelente – filmamos todas as suas cenas num único final de semana. Inclusive quero convidá-la para meus próximos trabalhos. Com o “novo” elenco completo, tive que contornar mais um problema que era a falta de entusiasmo da equipe, porque a gente precisou regravar quase todas as cenas prontas. Inclusive eu assumo que algumas delas estavam muito melhores na primeira versão, depois ficaram meia-boca porque nem os atores e nem eu tínhamos mais ânimo para continuar. “Canibais & Solidão” acabou sendo finalizado meio nas coxas, eu também fiquei de saco cheio e desisti de regravar algumas cenas que eram muito legais, como uma em que o Marcelo ia espiar a Edna Costa e a Niandra trocando de roupa. E para completar a “maldição” do filme, este foi meu primeiro trabalho editado no computador, e até eu pegar as manhas foi bem estressante. Até porque o software de captura e de edição que eu usava dava pau diariamente. Para você ter uma idéia, Petter, eu simplesmente não conseguia finalizar o filme sem que o som ficasse fora de sincronia, e não encontrei solução para isso, tive que cortar o arquivo do filme no meio e dividir em dois arquivos diferentes para resolver. Deu até saudade da velha edição de vídeo para vídeo. No final, por causa desses problemas e da necessidade de regravações, até que “Canibais & Solidão” custou baratinho: cerca de R$ 600.00, sendo que boa parte desse orçamento eu usei para promover uma festa com uma banda contratada, somente para filmar uma cena de cinco minutinhos no final do filme!

Baiestorf: Como foi a reação do público? Ele foi lançado comercialmente? Recuperou o dinheiro investido?

Guerra: “Canibais & Solidão” foi meu filme mais lucrativo aqui em Carlos Barbosa, porque fizemos três sessões no cinema da cidade e todas elas tiveram um grande público. Então, meu investimento foi recuperado ainda na bilheteria, e toda grana que entrou depois foi lucro. Era até para eu ter faturado mais, só que tive um problema na noite da premiére (parte da “maldição” que citei antes), porque depois da renderização em cima da hora eu descobri que o som continuava fora de sincronia e precisei cancelar a sessão. Foi foda porque o cinema estava lotado e tinha até um repórter de jornal regional que ia fazer a cobertura da estréia, mas assim eu finalmente aprendi a não ficar mexendo nos filmes até a véspera do lançamento. Depois do cinema, eu fiz um DVD bem simplesinho que trazia o trailer e mais 15 minutos de erros de gravação. Como eu numerei cada disco, hoje sei que existem 192 DVDs “oficiais” por aí, fora os não-oficiais e os downloads, já que não demorou para o filme vazar na internet. Eu até comentei numa entrevista à revista virtual Zingu que certa vez fiz uma busca no Google e descobri que estavam vendendo DVDs piratas de “Canibais & Solidão” na Argentina, com o título “Canibales Y Soledad”. Semana passada fui procurar novamente para postar o link aqui, mas não achei mais, talvez os DVDs argentinos tenham esgotado, ou ninguém quis comprar e os caras jogaram os discos no lixo! Enfim, “Canibais & Solidão” foi um filme que rendeu muito bem. Infelizmente não teve muita circulação por festivais e exibições Brasil afora, mas consegui vender vários DVDs e praticamente comprei minha câmera atual com o dinheiro que lucrei com este filme.

Baiestorf: Algo que chama muita atenção no “Canibais & Solidão” (e nos seus filmes seguintes à ele) é a naturalidade com que seus atores dizem os diálogos mais banais do filme, o que lhe dá um saboroso charme quase nunca visto em outras produções independentes. Qual é o segredo disso?

Guerra: Se você assistir todos os meus filmes – e acho que você viu quase todos, Petter –, vai perceber que basicamente são as mesmas pessoas fazendo o mesmo tipo de personagem. Eu já escrevo meus roteiros pensando em Fulano ou Beltrano para interpretar cada papel. E eles falam naturalmente porque eu tenho esse “talento” de escrever diálogos banais, coisas que pessoas comuns falariam. Assim meus atores não precisam interpretar muito, até porque eles não são atores de verdade. Se você ficar meia hora conversando com meu irmão Rodrigo, ou com o Eliseu, vai perceber que no dia-a-dia nós falamos mais ou menos como os personagens dos filmes, e vice-versa: vários diálogos dos filmes ficaram tão marcantes lá em Carlos Barbosa que é comum você ouvir alguém dizendo “Eu sou gatão, eu sou gatão”, por exemplo. Existe um entrosamento muito grande entre toda a turma, e acho que foi por isso que eu nunca consegui fazer filmes com outras pessoas que não conheço bem.

Baiestorf: Também no “Canibais & Solidão”, algo que chama atenção é a beleza das atrizes, como funciona a seleção do elenco nos teus filmes?

Guerra: Uma das queixas em relação aos meus filmes anteriores era que tinha muito homem e pouca mulher, então em “Canibais & Solidão” eu resolvi mudar essa imagem. Além da Niandra, que já havia participado de “Entrei em Pânico”, eu convidei uma menina chamada Edna Costa, que na época era modelo, e inclusive trabalhou por um tempo em São Paulo. Foi uma escolha acertada, porque ela ficou muito bem no filme. O maior problema, como já falei, foi arrumar alguém para a inocente cena do banho, porque em Carlos Barbosa as meninas são cheias de pudores, então tive que chamar uma amiga de fora. As meninas que interpretam as duas irmãs fáceis que pedem para os protagonistas fazerem striptease também são de fora, são cantoras de uma banda que inclusive aparece tocando no final do filme. A beleza das atrizes de “Canibais & Solidão” me rendeu muitos elogios, e essa preocupação com meninas bonitas eu mantive depois ao filmar “Entrei em Pânico Parte 2”. Inclusive esse novo filme tem muito mais mulher do que homem, é o meu “Hostel 2”!

Baiestorf: Quando teremos Felipe Guerra filmando um sexploitation com essas atrizes lindíssimas do Rio Grande do Sul?

Guerra: Se depender das meninas de lá, nunca. Lembra que tempos atrás eu te sugeri fazermos parceria para filmar um sexploitation em Palmitos, Petter? Pois em Carlos Barbosa elas não querem nem tomar banho de mentirinha, quem dirá tirar a roupa de verdade! E é claro que o fato de eu não pagar cachê desestimula qualquer demonstração de nudez. Só eu para aparecer pelado de graça mesmo! Eu sou vulgar e barato!

Baiestorf: Algo que sinto falta nos teus filmes é o desenvolvimento de algumas temáticas mais polêmicas. Você pretende fazer um cinema mais ácido, ou pretende se especializar em filmes adolescentes?

Guerra: Para ser bem sincero, Petter, temas polêmicos não me interessam. Anos atrás eu pensei em fazer um filme bem apelativo para chutar o pau da barraca. Como a minha cidade é de interior, ainda tem muita gente que mata animais em casa, como porcos e bois, para obter carne e embutidos, e eu pensei em filmar essas matanças reais de bichos para fazer uma historinha polêmica com tudo que pudesse chocar a sociedade: crueldade animal, assassino psicopata, necrofilia, canibalismo. Depois pensei: “Mas quem é que vai querer ver isso?”, e lembrei desses filminhos bestas tipo “A Serbian Film”, que fazem de tudo para chocar e no fim não passam de umas grandes bobagens. Então não me interessa ser polêmico, ser forte, ser chocante. Digamos que eu não pretendo atingir apenas o público mais “underground”, eu quero que meus filmes atinjam públicos mais amplos. Se você for analisar, tirando uma ou outra bobagem, “Canibais & Solidão” e “Entrei em Pânico Parte 2” são filmes que poderiam ganhar lançamento comercial e encontrariam um grande público, pois não foram produzidos pensando apenas num público selecionado e específico como, por exemplo, o teu “A Curtição do Avacalho”. Eu já falei várias vezes em entrevistas e palestras que dirigiria filmes da Xuxa ou do Renato Aragão, e não é piada, eu faria mesmo, adoraria tentar imprimir um outro estilo, um outro tipo de narrativa a esse cinema acéfalo que ambos estão fazendo hoje. Em resumo, o que eu quero é fazer cinema popular. Eu cresci assistindo “Os Aventureiros do Bairro Proibido” e “Comando para Matar”, não Bergman ou Glauber Rocha. Se tivesse alguém colocando grana e bancando minhas produções, acho que hoje eu estaria vivendo de fazer comédias adolescentes e filmes de ação, daquele tipo cheio de porrada e tiro. Até porque já tem muito metido a Glauber Rocha nesse país, e cada vez saem mais deles das faculdades de cinema. Não é o meu caso, o meu objetivo é me divertir e divertir o público, e não passar mensagem, fazer protesto ou crítica social. Quem quer mensagem, que vá ler um livro, e não ver os meus filmes; já para quem quer protesto e crítica social, o que mais tem por aí são “anarquistas”, “agitadores” e diretores revoltadinhos estilo “Mamãe, veja como eu sou polêmico!”. Por isso, eu prefiro ser diferente e trabalhar em prol do cinema descompromissado, feito para divertir, e tentando mostrar que é possível fazer coisas mais inteligentes e interessantes que essas comédias românticas bobas da Julia Roberts e da Cameron Diaz. Ou esses filminhos bestas que da metade para o final tentam passar lição de moral no personagem principal e no espectador. Eu fico puto porque a quantidade de adolescentes que vão ao cinema no Brasil é gigantesca, mas o diretor/produtor/roteirista brasileiro não parece interessado em fazer filmes para eles. Você pega supostas comédias adolescentes, como “As Melhores Coisas do Mundo” e “Apenas o Fim”, e são ou adultos escrevendo para adolescentes (e criando situações e diálogos irreais para a faixa etária) ou jovens diretores pensando que são adultos. Não existe um meio-termo no cinemão comercial, mas eu já acho que consigo dialogar muito bem com esse tipo de público. Inclusive várias pessoas me disseram que “Canibais & Solidão” foi o mais perto de “Porky’s” que o cinema brasileiro chegou, e eu achei isso um elogio fantástico, já valeu todos os problemas que tive durante a realização do filme.

"O Horror de Paganini".

Baiestorf: Conte o que é “O Horror de Paganini”, projeto que você filmou em 2004 e nunca finalizou.

Guerra: “O Horror de Paganini” é um curta-metragem daquele tipo filmado num único dia, quando estávamos em meio às discussões sobre se cancelaríamos ou não as problemáticas filmagens de “Canibais & Solidão”. O Eliseu e o meu irmão Rodrigo queriam parar tudo e fazer outra coisa, mas eu teimei em continuar. Para fazer a vontade de ambos e dar um tempo no longa, filmamos esse curta de brincadeira na minha casa. É uma homenagem a “Paganini Horror”, um terror italiano dirigido pelo Luigi Cozzi, e foi gravado em preto-e-branco. São cinco personagens, o Rodrigo é o único que faz um papel só, e eu e o Eliseu interpretamos dois personagens cada, usando perucas e roupas diferentes. A história eu improvisei na hora, e brinca um pouco com a minha dificuldade de conseguir a fita brasileira de “Paganini Horror”, uma raridade do nosso mercado de vídeo. Eu sou colecionador de VHS e demorei exatos 13 anos para conseguir essa fita. No curta, meu irmão interpreta um colecionador de filmes com o mesmo problema. Aí o Diabo, interpretado por mim, aparece e dá uma cópia de “Paganini Horror” para o sujeito, mas quando ele assiste se transforma em demônio, e surge o Eliseu como exorcista para livrá-lo da maldição. É uma bobagem improvisada, com maquiagem horrível e interpretações pavorosas. Até tem sua graça, mas não achei interessante para compartilhar. Qualquer dia desses eu finalizo a edição e jogo no YouTube, ou coloco como extra em algum DVD dos meus filmes.

Baiestorf: Fale um pouco sobre teu ótimo blog, “Filmes Para Doidos”:

http://filmesparadoidos.blogspot.com/

Guerra: Em primeiro lugar, obrigado pelo elogio, Petter. Como eu te falei lá no começo da entrevista, eu sempre gostei de pesquisar sobre cinema e escrever sobre cinema, e inclusive uma das minhas frustrações na “Era Pré-Internet” era não haver canais disponíveis para divulgar minhas análises de filmes além de fanzines e do nosso jornalzinho. Nesse aspecto, eu tenho que dizer que a internet foi um fantástico canal para divulgação. Antes que os blogs se popularizassem, eu comecei mandando colaborações esporádicas para alguns sites de cinema, e em 2003 entrei para o quadro de colaboradores da Boca do Inferno, hoje o maior site sobre cinema fantástico da América Latina. O problema da Boca, onde estou até hoje, é que eu ficava “engessado” aos filmes de terror, no máximo ficção científica, mas eu gosto de tudo que é gênero. Às vezes até conseguia encaixar alguma podreira ali com a desculpa de ser ficção científica, como “Keruak – O Exterminador de Aço”, de Sergio Martino, ou “Os Caçadores de Atlântida”, de Ruggero Deodato, mas sentia que faltava um lugar para eu poder falar livremente de qualquer filme. Lá por 2006, surgiu uma rede social chamada Multiply, que alguns espertinhos apelidaram de “Orkut para pessoas inteligentes”, porque não era só figurinha e desenho, era um site para quem gostava de escrever bastante. E foi ali que comecei a publicar minhas primeiras resenhas de outros gêneros, dos filmes do Chuck Norris, Charles Bronson, Van Damme. Só que o Multiply era limitado, não permitia colocar fotos nem formatar muito o texto. Finalmente, em 2008, virou modinha ter blog, e vários cinéfilos criaram seu próprio blog para poder discutir cinema. Eu acompanhava vários desses blogs, mas era engraçado porque logo esse pessoal ficava de saco cheio e parava de atualizar com freqüência, ou largava o negócio de vez. Aí eu resolvi fazer o “Filmes para Doidos” para suprir essa lacuna de blog sobre cinema, digamos, “alternativo” com atualizações freqüentes. Comecei em 11 de outubro de 2008, e de lá para cá foram 218 postagens. Eu nunca me preocupei com o visual do blog, até hoje uso um dos layouts que são padrão do Blogger. E eu deixei bem claro desde o começo que era um blog para quem gostava de ler, porque tinha muita gente que me criticava na Boca do Inferno por escrever artigos muito extensos. Triste mundo esse em que as pessoas reclamam de ter texto demais, e não de menos… Bem, quem não gosta de ler que vá para o Twitter, porque o “Filmes para Doidos” mantém a média de duas atualizações semanais com textos enormes sobre produções obscuras do mundo inteiro, como “El Violador Infernal”, “3 Dev Adam” e “As Aventuras de Sergio Mallandro”, além dos escalafobéticos filmes pornográficos brasileiros da Boca do Lixo. E enquanto eu tiver dedos para digitar, prometo continuar atualizando o blog com essa mesma freqüência e com as tradicionais resenhas quilométricas sobre filmes “diferentes”.

Baiestorf: Acho o vídeo-clip “David Blyth’s Damn Laser Vampires” seu trabalho mais impessoal. Como tu se meteu neste projeto?

Guerra: É um caso parecido com o de “Mistério na Colônia”, eu considero um trabalho de encomenda. Em 2009, o cineasta neozelandês David Blyth estava participando do Fantaspoa, o Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre. Eu gosto muito de um filme dele chamado “Death Warmed Up”, lançado em vídeo no Brasil como “Guerra para a Morte”. Os organizadores do festival estavam com a idéia de fazer um curta-metragem dirigido pelo cara, e me chamaram para co-dirigir porque teríamos apenas duas madrugadas para fazer tudo, e seria mais fácil trabalhar com duas câmeras. Então o Blyth dirigia o João Pedro Fleck, que é um dos organizadores do Fantaspoa, filmando com uma câmera boa de qualidade HD, enquanto eu fazia a “segunda unidade” com minha câmera mini-DV. O curta seria estrelado por uma ótima banda gaúcha chamada Damn Laser Vampires, e os outros atores são Cristian Verardi, Kasha Lee e o Eduardo Santana, que é de São Paulo e organizador do festival CineFantasy, mas estava em Porto Alegre passeando e foi requisitado para fazer uma ponta. Não existia um roteiro, mas a proposta era fazer um grande videoclipão sem diálogos, pois as cenas seriam preenchidas pelas músicas da Damn Laser Vampires. Mesmo assim, tivemos várias conversas para escolher um argumento, e eu sugeri que os músicos da banda fossem como exorcistas ou xamãs modernos, cuja música liberaria os demônios de pessoas possuídas. Seguiu-se mais ou menos essa linha, mas na hora de filmar começaram a surgir novas idéias, como um mendigo zumbi, e no final virou uma bagunça cheia de elementos, mas sem muita lógica. Mas a lógica da história não importa, acho que o vídeo cumpriu a proposta e tem umas imagens ótimas. O Blyth ganhou o crédito principal, mas acho que eu dirigi a maior parte do curta. Ele ficou revoltado o tempo todo, porque pensava que estava num set de filmagens em Hollywood, e não numa produção de custo zero filmada quase como brincadeira. Por isso, na segunda noite de filmagens, resolveram escanteá-lo. O João me ligou e disse que iam ficar com o gringo numa sessão especial em homenagem ao conjunto da sua obra, e que nesse tempo era para eu pegar a câmera e filmar o máximo de cenas com a banda que eu conseguisse sem a interferência do convidado estrangeiro. Aí, quando o Blyth finalmente chegou para as gravações, eu já tinha filmado um montão de coisas do meu jeito. Todas as cenas dos vampiros chegando de carro e entrando no bar onde tocam fui eu que fiz, bem como aquelas em que eles saem do bar levando a garota possuída (Kasha). Considerando a forma como o projeto foi desenvolvido e a correria com que foi realizado, eu fiquei bem feliz com o resultado. Mas é como você disse, um projeto bem impessoal, eu nem mesmo participei da edição, e talvez tenha ficado melhor assim porque ficou mais a cara da banda, e é um veículo para eles. Espero qualquer dia trabalhar de novo com a Damn Laser Vampires, quem sabe dirigindo um videoclipe para alguma música deles. São pessoas muito legais e criativas, que fazem um som de primeira.

Com a banda Damn Laser Vampires e os atores do curta-clip.

Baiestorf: Você acha que o cinema deve ser feito com dinheiro público? Por quê?

Guerra: Olha Petter, eu nunca fui atrás de editais e de leis de incentivo à cultura. Primeiro porque odeio burocracia e não ia conseguir passar nem das primeiras duas exigências para colocar a mão nesse dinheiro, e depois porque fico imaginando a cara do sujeito que seleciona os projetos se ele recebesse meus roteiros com nomes como “Canibais & Solidão” e “Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-feira 13 do Verão Passado”. Na verdade, eu sou idiota e tenho uma visão romântica do processo de fazer cinema. Fico pensando que por aqui pode acontecer que nem lá fora, em que o Sam Raimi e o Peter Jackson gostam de algum filme independente e resolvem bancar o futuro trabalho do cara. Sempre considerei meus filmes como rascunhos do que eu faria caso tivesse grana e as condições ideais, e ingenuamente fico pensando que, sei lá, algum cara cheio da nota algum dia vai ver um trabalho meu, como o curta “Extrema Unção”, e pensar: “Se o Guerra fez isso com apenas 40 reais, imagine o que poderia fazer com 40 mil. Vou investir essa grana nele”. Como eu te disse, é muito romantismo e ingenuidade da minha parte, mas nunca se sabe. Agora, respondendo a tua pergunta, eu acho que não, acho que o cinema não deve ser feito com dinheiro público. Ainda mais quando não há uma cobrança do realizador de pelo menos algum retorno de bilheteria, porque aí o cara ganha o dinheiro, faz o filme, está com tudo pago e já não interessa mais se vai ter seis milhões de pessoas ou apenas seis espectadores nos cinemas. Deveria ter alguma forma de fazer com que esses cineastas brasileiros mequetrefes paguem a conta, para evitar que façam filmes só para eles. Por exemplo, se o filme financiado pelo governo for um fracasso de bilheteria, eles têm que devolver pelo menos uma parte da grana que receberam. Ou então continuaremos com essas produções monstruosas de merda que o sujeito faz só para a família dele ver. Isso quando os filmes ganham a luz do dia e não ficam encalhados no meio, estilo “Chatô”, do Guilherme Fontes, ou aquela superprodução encomendada pelo Sarney, “O Dono do Mar”, cujo paradeiro ninguém sabe, ninguém viu. Tempos atrás eu até respondi, numa outra entrevista, que não entendo como certos projetos ganham sinal verde – e grana – para serem filmados, porque é bem óbvio, do título ao argumento, que ninguém vai querer ver aquilo depois que ficar pronto. Vou dar um exemplo: digamos que você tem uma pequena produtora e quer investir seus parcos recursos em algum filme, digamos o novo trabalho de um jovem realizador ainda desconhecido. Então como é que você faz para decidir por um novo projeto, escolher no que vai investir? Eu disse, nessa outra entrevista, que existe um site chamado Filmow, que é como uma rede social de cinéfilos, onde os usuários dão estrelinhas para os filmes que viram e marcam se querem ver ou não as produções que vão estrear nos cinemas. Pois eu cadastrei meus filmes nesse site só para sentir como seria a reação do público. Se você entrar no Filmow agora, e for ver a ficha do meu filme mais recente, “Entrei em Pânico Parte 2”, vai descobrir que mais de mil pessoas marcaram “Quero ver”, e já tem quase 700 comentários dos usuários nessa ficha. Aí, para comparar, você olha um dos vencedores do Festival de Cinema de Gramado do ano passado, o filme “180 Graus”, do Eduardo Vaisman, e na ficha dele só tem três comentários, e apenas 40 usuários marcaram “Quero ver”. Já “Uma Longa Viagem”, da Lucia Murat, que ganhou Kikito de Melhor Filme nesse ano aqui, tem um comentário e míseros oito “Quero ver”. E esses filmes foram premiados num dos mais famosos festivais de cinema do país! Então eu te pergunto: se você fosse um produtor querendo colocar uma graninha em algum novo projeto e esperando ter retorno de bilheteria, ia queimar seu dinheiro com o Vaisman e com a Lucia Murat, ou iria procurar alguma coisa que tem mais repercussão e apelo popular?

Com o monstro de "Afogado".

Baiestorf: Em 2010 você topou dirigir o curta “Afogado” que até hoje não foi finalizado. O que aconteceu?

Guerra: “Afogado” foi um projeto em parceria com uma turma de estudantes de cinema aqui de São Paulo. Geralmente os caras saem da faculdade de cinema querendo ser Glauber Rocha ou Godard, mas esse pessoal gostava de cinema fantástico e queria produzir um curta comigo como diretor e co-roteirista. Esta seria a primeira vez que alguém iria produzir um roteiro meu e eu não precisaria me preocupar com nada além de dirigir, e nem tirar dinheiro do meu bolso. Apesar disso, não deu certo porque eu fui ingênuo de acreditar que conseguiria assimilar a forma de trabalho de estudantes de cinema, e também que eles fossem entender e respeitar a forma como eu estou acostumado a trabalhar. Para você ter uma idéia, as “diferenças criativas” começaram desde cedo: eu queria filmar o curta de dia e usando luz natural, não só porque já tive problemas suficientes com iluminação de cenas noturnas, mas também porque teríamos apenas duas noites para filmar, e eu achava que não era tempo suficiente. Dito e feito: o pessoal teimou de filmar à noite, mas ao invés de começar os trabalhos logo que ficava escuro, digamos 19 horas, só se começava a gravar depois da meia-noite. Então era óbvio que não ia dar tempo de acabar, a filmagem exigia um montão de maquiagens complicadas, era demorado, e a gente só tinha umas cinco horas de escuridão porque nunca conseguíamos começar mais cedo. Além disso, teve todas aquelas aporrinhações técnicas que são vícios que o cara pega na faculdade de cinema, tipo as frescuras com iluminação. Os caras demoravam duas horas para “arrumar a luz” de uma cena inútil que, se fosse o caso, até poderia ser filmada com luz natural, porque ainda era dia. E eu odeio quando a coisa não anda, aquilo que me deixava maluco. Para completar, parte da equipe estava ali só pela farra e pela festa, o que não ajudava a melhorar o clima de trabalho. Você pode até não acreditar, mas nessas bagunças conseguiram estragar uma cabeça decepada que eu e um dos atores demoramos três horas para fazer, e que seria usada na grande cena do curta, quando um dos protagonistas tinha a cabeça esmagada a pedradas. De minha parte eu assumo a culpa por não ter conseguido me adaptar ao esquema de trabalho deles. Por exemplo, me exigiram storyboards de todas as cenas e eu fiz, mesmo odiando essas porras, mas na hora de filmar eu mudava tudo. Bem, nessas confusões todas, nós não conseguimos filmar tudo que precisava e uma metade da equipe foi embora brigada com a outra metade. Nos meses seguintes, eu fiz uma edição prévia do curta com o material que tinha e mostrei para eles, sugerindo algumas novas cenas e refilmagens, mas, apesar dos meus insistentes pedidos para que terminássemos as gravações, os produtores ficaram meio decepcionados com a coisa toda e cada um seguiu seu rumo e seus projetos, deixando o curta inacabado. Eu insisti durante mais um tempo, até fiz um trailer que coloquei no YouTube para ver se sensibilizava a turma, mas eles acabaram varrendo o “Afogado” para baixo do tapete, e agora eu também não quero mais fazer. Fica como lembrança de que eu preciso ter uma equipe com maior afinidade da próxima vez, e principalmente que entenda e respeite a forma como eu trabalho. Mas pelo menos eu não investi nada no projeto, e até acho muito engraçado os caras gastarem grana do bolso – acho que investiram dois mil nas gravações – e simplesmente descartarem assim, como se o negócio nunca tivesse existido.

Baiestorf: Você foi o responsável por trazer o Luigi Cozzi e o Lamberto Bava ao Brasil para retrospectivas no Fantaspoa. Conte como foi isso. Mais algum cineasta italiano engatilhado para trazer ao Brasil?

Guerra: No começo de 2009, eu usei meu FGTS – e essa é a única vantagem de começar a trabalhar cedo – numa viagem à Europa. Um dos destinos foi a Itália. Eu sabia que o Luigi Cozzi era sócio do Dario Argento numa lojinha de artigos de horror e ficção científica chamada Profondo Rosso, que fica perto do Vaticano, e fui lá. No dia anterior eu tentei ligar para marcar um encontro com ele, porque achei que era um cara importante, super-ocupado e não recebia todo mundo. Mas ninguém atendeu. Então cheguei lá sem aviso prévio, e, para minha surpresa, encontro aquela lojinha minúscula sem nenhum comprador lá dentro, e o Luigi Cozzi em pessoa atrás do balcão, quase dormindo. Fiquei louco porque era muito fã dos filmes dele, os “Hércules” do Lou Ferrigno, “Starcrash”, “Alien Contamination”, e nunca imaginei que seria tão fácil encontrá-lo. Ficamos quase uma hora conversando, porque não entrava cliente nenhum naquela loja, e ele lembrou de mim porque uns anos antes, acho que em 2006, fiz uma entrevista com ele, por correio e telefone, para a Boca do Inferno. Um tempo depois desse encontro na Itália, o pessoal do Fantaspoa começou a investir mais nos visitantes internacionais, começando com o David Blyth na edição de 2009. E eu sugeri que talvez pudéssemos levar o Luigi Cozzi a Porto Alegre no ano seguinte. Eles gostaram da idéia e eu fiz todo o meio-de-campo com o italiano, inclusive fui curador da mostra retrospectiva da obra dele. E como o Cozzi tem contato com praticamente todos os cineastas da Itália, porque já trabalhou como jornalista, acabou ajudando nas negociações para, agora em 2011, trazer o Lamberto Bava, numa mostra retrospectiva da obra dele e do seu pai famoso, o falecido Mario Bava, em que novamente fui curador. Tenho que dizer, Petter, que trazer esses dois italianos para cá foi muito emocionante para mim, quase a realização de um sonho, porque desde moleque eu sou apaixonado pelo cinema fantástico italiano. Lembro que eu lia notícias sobre festivais de cinema fantástico em Roma, reunindo nomes como Dario Argento, Ruggero Deodato e Bruno Mattei, e ficava muito triste por não termos nada parecido no Brasil. Quando finalmente surgiu a oportunidade de fazer contato com esse pessoal e trazê-los para cá… Cara, me senti realizado! Eu achei o máximo passar esses dias com o Cozzi e o Lamberto Bava, conversando sobre esses filmes que eu adoro, e ouvindo histórias fantásticas deles sobre como era fazer cinema na Itália dos anos 70 e 80. Enfim, os Fantaspoas de 2010 e 2011 foram como um sonho para mim, acho que ainda vai demorar para cair a ficha e eu perceber que estive do lado de sujeitos que de certa forma participaram da minha juventude e ajudaram a moldar meu gosto (mau gosto?) cinematográfico. Quanto a cineastas engatilhados para futuras edições, é óbvio que eu adoraria fazer contato com todo esse pessoal de quem sou fã, o Argento, o Deodato, o Umberto Lenzi, até mesmo o Enzo G. Castellari – cujo negócio é mais ação do que cinema fantástico. Mas não sei como vai ser o Fantaspoa 2012, e pessoalmente acho que ia ficar meio estranho levar outro diretor italiano a Porto Alegre pela terceira vez consecutiva. Talvez fosse a hora de homenagear outros mestres de outras partes do mundo.

Com Luigi Cozzi em Roma.

Baiestorf: Você tem filmado 6 horas de depoimentos do diretor Luigi Cozzi falando sobre a carreira dele. Isso vai virar um documentário?

Guerra: Isso aconteceu durante o Fantaspoa de 2010. Eu conheço a fundo a filmografia do Cozzi desde moleque, mas a obra dele ainda é bem desconhecida no Brasil. Por isso, colocamos na programação da retrospectiva dele em Porto Alegre um documentário francês de 2004 chamado “Le Tunnel sur le Monde”, que é sobre o Cozzi e seus filmes. Mas enquanto eu fazia as legendas desse filme, fiquei abismado com a quantidade irrisória de informações, parecia até um trabalho de faculdade feito às pressas por alguém que nem viu os filmes. E já rolava a idéia de fazermos um curta-metragem co-dirigido pelo Cozzi, como tinha acontecido com o David Blyth no ano anterior. Aí eu sugeri que, ao invés do curta, fizéssemos um documentário sobre a carreira do Luigi, para que aquele filminho francês tosco não permanecesse como único referencial da sua obra. Foram duas tardes inteiras de entrevistas com ele, até fiquei bastante surpreso com a disposição e com a alegria do Cozzi ao ser bombardeado por todo tipo de perguntas. Ele contou tantas histórias sobre os bastidores do cinema fantástico italiano que poderíamos fazer uns três documentários diferentes com o material. Só a parte que ele fala sobre “Starcrash”, a cópia italiana de “Guerra nas Estrelas” que fez, rendeu umas duas horas de entrevista e já daria um belo e engraçadíssimo filme. Eu ainda nem tive tempo para pegar isso tudo, assistir e organizar, mas a idéia é lançar, sim, um documentário sobre a obra de Luigi Cozzi num futuro próximo. Quem sabe isso até renda vários documentários menores. O que eu preciso é de um tempinho para parar, rever tudo e pensar melhor no que fazer com tanto material.

com Lamberto Bava.

Baiestorf: Fez algo similar com o Lamberto Bava?

Guerra: Não deu tempo porque a passagem do Lamberto pelo Brasil foi bem mais corrida, ele passou literalmente voando por Porto Alegre e depois foi embora para aproveitar uns dias no Rio de Janeiro com a esposa. E também já existem inúmeros documentários sobre o Bava e o pai dele, então achei que seria redundante incomodar o coitado com mais uma cacetada das mesmas perguntas que ele responde desde sempre. Mesmo assim, num momento em que nós dois estávamos de bobeira tomando uns chopps, aproveitei para fazer umas perguntas “on câmera” sobre três filmes cujos bastidores me interessavam: “Demons”, “Roleta Macabra” e o remake que ele fez de “A Máscara do Demônio”. Filmei isso com a minha própria câmera mini-DV e ainda não decidi o que vou fazer. A princípio eu só gravei para ter subsídios para quando fosse escrever sobre esses filmes para a Boca do Inferno. Mas acho que qualquer dia desses eu jogo o material todo no YouTube. Até porque é raro ver o Lamberto falando sobre “Roleta Macabra” e seu “A Máscara do Demônio”…

Baiestorf: No final de 2010 você lançou o curta de suspense”Extrema Unção”, filme que tenta ser mais sério. Já vi duas exibições deste curta em cinemas, na Mostra Cinema de Bordas 3 (São Paulo/SP) e na Vingança do Filme B (Porto Alegre/RS) e a reação da platéia é sempre de gargalhadas descontroladas quando vê as cenas macabras? A carreira de Felipe Guerra como diretor de filmes sério acabou aqui?

Guerra: “Extrema Unção” tem três “origens”: primeiro, eu comprei minha câmera mini-DV para começar a filmar “Entrei em Pânico Parte 2”, mas queria testar seus recursos antes de sair gravando o longa, então improvisei esse curtinha filmado em apenas dois dias; segundo, pensei em fazê-lo para participar de uma competição dentro da programação do CineFantasy, aqui em São Paulo, que se chama “Mestre dos Gritos”, e que premia o curta que dá o maior susto no público; e terceiro, todo mundo vivia me enchendo o saco porque eu escrevia artigos sobre filmes de horror (no site Boca do Inferno) e só dirigia sátiras do gênero, então havia essa cobrança para que eu fizesse algo “sério”. E confesso que eu mesmo tinha curiosidade para ver se conseguiria contar uma historinha mais séria, porque sempre imaginei que, com os recursos disponíveis, era melhor partir para o avacalho. “Extrema Unção” é a história de um rapaz cético, interpretado pelo meu irmão Rodrigo, que aluga uma casa assombrada de um corretor de imóveis picareta, interpretado pelo Leandro Facchini. Minha avó Oldina é o fantasma que assombra a casa, uma fanática religiosa que morreu sem receber a extrema unção. A idéia surgiu das aulas de religião que eu tinha no colégio quando garoto, e que foram, de longe, as coisas mais assustadoras que vi e ouvi na vida. Na época (final dos anos 80), ainda era forte a prática do “terrorismo religioso” para arrebanhar novos membros para a igreja, principalmente em cidades pequenas. Os padres vinham até a escola e nos assustavam com histórias sobre o inferno para nos forçarem a sermos católicos fervorosos, ou ovelhinhas comportadas. Nunca me esqueço que, numa dessas “aulas”, a professora falava sobre a extrema unção dizendo que era o último sacramento que o cristão recebia, quando estava prestes a morrer, e que se morresse sem recebê-la, sua alma ficaria eternamente vagando pelo limbo sem descanso. Não sei o que essas professoras e padres tinham na cabeça, mas falar esse tipo de coisa para crianças era absolutamente traumatizante. E eu sempre tive muito medo da noção de “eternidade”, então a idéia de minha alma ficar vagando por aí sem paz não era das mais agradáveis. A professora inclusive disse, naquela aula: “E vocês sabem o que é a eternidade? É para sempre, e para sempre, e para sempre, até nunca mais acabar!”. Só que eles não explicavam direito as coisas, então nós, garotos, ficávamos aterrorizados com a possibilidade de morrer de repente num acidente e ficar vagando eternamente por não termos recebido a extrema unção. Pela lógica cretina daquela professora, você teria que recebê-la todos os dias pela manhã antes de sair de casa, por via das dúvidas. Então eu me lembrei desse negócio e resolvi fazer o curta. Não cheguei a escrever um roteiro, apenas criei a situação básica e os sustos. Só escrevi o diálogo da fantasma no final, quando ela diz que sua alma ficou presa ao cadáver apodrecendo dentro do caixão! Como os outros diálogos eram improvisados, algumas coisas ficaram meio redundantes, e até acho que o curta é um pouco longo demais com seus 19 minutos, se fosse editar hoje eu tiraria algumas coisas que estão sobrando. Sobre as risadas, isso realmente acontece em vários momentos, mas é porque meu irmão não consegue ser sério, ele faz uma caras e bocas bem canastronas, como quando “enfrenta” a fantasma gritando “Aparece! Aparece! Não tenho medo de ti!”. E eu também não esperava que o público levasse 100% a sério, tem umas tiradas engraçadas ali de propósito, como aquela cena com a dentadura. O que me deixou muito feliz é que quase todos os sustos funcionam. Nas exibições do filme, eu gosto de ficar olhando para a platéia, e não para a tela, nas cenas que vai ter susto: alguns até pulam na poltrona! Principalmente na cena final do cemitério, que é um “último susto” bem safado estilo “Carrie – A Estranha”. Outra coisa que me deixou bem feliz é que o curta funciona mesmo sem efeitos especiais ou de maquiagem. Quando ele foi exibido no CineFantasy, em 2010, eu estava assistindo anônimo em meio ao público e no final ouvi uma menina perguntando ao amigo como a história tinha acabado, porque no momento em que a “fantasma” aparecia, ela fechou os olhos e não abriu mais. E nem tem nada de tão forte ali, é apenas música clássica, edição, gritos e minha avó com algodão no nariz! Por isso eu acho que se um dia fizer um outro filme de horror “sério”, talvez o resultado fique bem melhor. Ainda mais considerando que “Extrema Unção” foi feito em apenas dois dias e com 40 reais, e eu sequer tive paciência para refilmar as cenas que não ficaram tão boas – afinal, era só um teste de câmera. E mesmo assim ganhei várias resenhas elogiosas e até um cachê para exibi-lo na mostra Cinema de Bordas aqui em São Paulo, cujo valor foi 12 vezes o custo total do filme!

Baiestorf: “Extrema Unção” também está disponível no YouTube, as visitas estão na média que você imaginava? Aliás, o que você acha destes sites como o YouTube?

Guerra: Eu joguei o curta no YouTube porque achei que ele não teria muito futuro em mostras e festivais, e porque já tinha cumprido seu papel e rendido mais lucro do que eu imaginava. Até o momento, ele foi visto por mais de 2.000 pessoas. Acho que é um número bom, eu não tinha muita expectativa em relação a isso. O que realmente me surpreendeu foi o número de visitações do trailer de “Entrei em Pânico Parte 2”, que já teve mais de 5.500 visualizações, e num curto espaço de tempo. É muito mais gente vendo esse trailer do que os de obras mais caras e “profissionais”, o que me dá muito orgulho, e também comprova que há espaço e público para esse tipo de filme. Sobre o YouTube, acho fantástico como vitrine para exibir nosso trabalho. Pensar que lá nos anos 90 não existia nada parecido e tínhamos que ficar mandando fitas VHS pra todo lado caso quiséssemos ser vistos, e hoje você consegue alcançar 5.500 pessoas sem sequer sair de casa ou gastar dinheiro com correio… A única coisa que eu acho ruim no YouTube e na internet em geral é que criou uma geração de acomodados que agora quer receber tudo de mão-beijada no conforto do seu lar. Eles nunca terão o prazer e a satisfação de encontrar o filme raro que procuram há anos, porque podem baixá-lo em cinco minutos em algum site. Ao mesmo tempo, não se preocupam em comprar um filme independente e ajudar seu realizador, porque acham que é obrigatório para o independente colocar seu trabalho de graça na internet. E ainda ficam putinhos se você não quiser, pensam que VOCÊ é que está errado! Como veículo de divulgação, entretanto, é surpreendente.

Baiestorf: Como está sendo a repercussão do documentário “Dona Oldina: A Fernanda Montenegro do Trash” (2010)?

Guerra: Pequena, mas infelizmente eu não esperava que fosse diferente. O documentário foi enviado para alguns festivais, mas até hoje só foi exibido na Mostra Espantomania Grajaú, aqui em São Paulo, e com um público muito pequeno. Esse documentário de meia hora conta a trajetória como “atriz trash” da minha avó Oldina Cerutti do Monte, que está com 81 anos e continua aparecendo nos meus filmes, em papéis cada vez mais, digamos, desafiadores. Ela teve uma vida difícil, foi casada com um marido alcoólatra e muito ciumento, e costuma dizer que começou a viver depois que ficou viúva. Hoje ela canta em coral, faz teatro, faz cinema. Eu até gostaria que o documentário tivesse maior repercussão, porque é uma história real bem diferente e engraçada. Mas, por enquanto, ele continua praticamente desconhecido. Um dos poucos que comprou a idéia foi o jornalista Gio Mendes, que escreveu duas páginas sobre o filme e sobre a carreira da minha avó no extinto jornal Meia Hora, aqui de São Paulo.

Baiestorf: Foi você quem dirigiu este documentário usando pseudônimo? Achei o estilo da diretora muito parecido com o teu. Pode falar sobre isso?

Guerra: Os créditos finais identificam Marie Pergufel como diretora e roteirista, e geralmente eu digo que ela é uma estudante de cinema que não quis ficar associada ao filme. Mas como você é um observador perspicaz, sou obrigado a confessar que na verdade o filme é todo meu. “Marie Pergufel” é anagrama de Felipe M. Guerra, e assinei o filme com nome falso por dois motivos: para não parecer que eu estava fazendo propaganda da minha avó, e para tentar entrar em alguns festivais onde os caras não vão muito com a minha cara (mas, pelo visto, não deu certo!).

Baiestorf: Sua vó sempre te deu muito apoio e ao assistir o documentário sobre ela dá prá sentir o grande orgulho que ela sente de você. Achei bonito a homenagem que você fez à dona Oldina durante o Fantaspoa 2011, meus olhos se encheram de lágrimas nesta hora. Conte aos leitores o que foi isso:

Guerra: “Entrei em Pânico Parte 2” estreou em Porto Alegre em 3 de julho, e no dia seguinte era aniversário de 81 anos da minha avó, por isso resolvi fazer essa homenagem como uma espécie de complemento ao documentário “Dona Oldina: A Fernanda Montenegro Trash”. Eu, sinceramente, acredito que minha avó seja um exemplo de vida, porque ela tinha tudo para viver uma velhice depressiva depois de um casamento difícil, mas deu a volta por cima e, como ela mesma diz, começou a viver de novo dedicando-se a várias expressões artísticas. Tenho muito orgulho dela e pretendo colocá-la em todos os filmes que ainda fizer. E fiquei muito feliz de vê-la na estréia do filme em Porto Alegre, porque ela passou por problemas graves de saúde em 2010 e eu cheguei a temer pelo pior. Tanto que, para não deixar “Entrei em Pânico Parte 2” incompleto, gravei todas as cenas dela em plano-detalhe só por garantia, com medo que ela resolvesse bater as botas antes do final das filmagens. Felizmente isso não aconteceu e pude regravar todas essas cenas sem a necessidade de depender dos planos-detalhe. E agora ela está me aporrinhando porque quer viajar para São Paulo caso o filme seja exibido em algum outro festival daqui. Eu tenho um sonho quase impossível de que algum grande programa de TV se interesse pela história da minha avó e consiga promover um encontro entre ela e a Fernanda Montenegro. Seria incrível, já que minha avó se considera a “Fernanda Montenegro dos pobres”. E às vezes me dá essa idéia meio estúpida de filmar cenas aleatórias com ela para poder continuar contando com sua presença em futuros filmes, mesmo depois que ela passar dessa para uma melhor, como o Ed Wood fez com o Bela Lugosi e o Fred Olen Ray com o John Carradine. Porque assim ela continuaria vivendo através do cinema, uma arte pela qual é apaixonada. Acho que seria um belo tributo.

Baiestorf: Ainda no Fantaspoa 2011 tive o prazer de assistir o “Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-Feira 13 do Verão Passado 2: A Hora da Volta da Vingança dos Jogos Mortais de Halloween” e o achei muito superior ao primeiro. Como surgiu a idéia para escrevê-lo?

Guerra: Que bom que você achou melhor que o primeiro, porque eu fiz essa continuação justamente para tentar corrigir tudo aquilo que eu não gosto no filme original! Como você talvez se lembre, o primeiro filme terminava inconclusivo, com o assassino ainda vivo e os dois sobreviventes, interpretados por Eliseu e Niandra, dizendo que voltariam na Parte 2 para matá-lo de uma vez. Isso era uma piada, nunca foi minha intenção fazer uma seqüência. Só que o pessoal que viu o original, principalmente os espectadores lá de Carlos Barbosa, começaram a inventar teorias mirabolantes de que eu teria ficado sem dinheiro para terminar a história, e viviam me cobrando a continuação para saber como tudo terminava. E eu odeio ter que explicar a piada, então finalmente resolvi fazer “Entrei em Pânico 2”. Também teve um pouco da frustração pelo meu filme anterior, “Canibais & Solidão”, não ter dado a repercussão que eu esperava, então me dediquei a algo que não era minha prioridade, mas que eu sabia que seria muito mais comentado do que qualquer outra coisa que fizesse. Confesso, porém, que me diverti bastante escrevendo o filme, porque tenho uma raiva muito grande de continuações de filmes de horror. Veja as continuações de “Pânico”, por exemplo: a Neve Campbell sobrevive a vários ataques do assassino e parece que não aprende nada de um filme para o outro. Me agradou ter essa possibilidade de trazer de volta os personagens do primeiro filme muitos anos depois, e mostrar como a vida fica fodida quando você sobrevive à chacina de todos os seus conhecidos. Eu gosto muito de uma fala do Eliseu, que reclama com um amigo: “Sobrevivi a um massacre, e o que isso me acrescentou? Nada! Não consigo emprego, não consigo dormir, vivo estressado, não consigo pegar mulher porque elas têm medo de ficar comigo”. No fundo o filme é uma comédia, uma grande bobagem, mas tentei mostrar que ter sobrevivido à matança do original não mudou para melhor a vida dos personagens, muito pelo contrário, eles agora vivem com medo de uma possível volta do assassino. A primeira versão do roteiro era bem séria e tinha uma infinidade de citações a personagens e acontecimentos do original. Aí caiu a ficha de que 99% da humanidade não tinha visto o primeiro filme, e comecei a limitar essas referências, além de inventar uma cena inicial que explicasse o que aconteceu no original. Se bem que como é um slasher nem precisa explicar muito, a história é aquela estupidez de sempre. Uma coisa engraçada de “Entrei em Pânico Parte 2” é que todo o roteiro foi sendo alterado enquanto filmávamos, e todas as mudanças fizeram muito bem para o filme. No roteiro, por exemplo, a personagem da Niandra tinha dois guarda-costas inexpressivos que apareciam em cena só para morrer. Durante as filmagens, transformei os dois num personagem só, interpretado pelo Leandro Facchini, e inventei a história de que ele era apaixonado pela sua cliente e viciado no filme “O Guarda-costas”, aquele do Kevin Costner. A cena em que ele canta a música da Whitney Houston foi inventada na hora, e é uma das melhores do filme. Outra mudança radical é que o Eliseu morria na conclusão do roteiro. E ele mesmo foi um dos primeiros a reclamar, dizendo que isso iria acabar com a mítica de “Wolverine barbosense” que ele havia ganhado por causa do primeiro filme. Resolvi, então, que ele sobreviveria no final, mas inventei esse detalhe de que ele vai sendo ferido sempre na mesma mão nos seus sucessivos encontros com o assassino! E eu aproveitei para fazer auto-critica o tempo todo. Como os personagens são fãs de cinema de horror, eles vivem reclamando que continuação de filme de terror não presta, que são feitas só para ganhar dinheiro, que somente num filme muito ruim alguém sobreviveria a um ferimento grave (o que de fato acontece em “Entrei em Pânico Parte 2”), e por aí vai. Aliás, a identidade do assassino, revelada no final, eu acho que é uma das piadas que melhor funciona, todo mundo fica surpreso quando a Niandra arranca a máscara do matador e revela quem ele é. Isso é uma espécie de protesto a essa mania babaca dos filmes de terror atuais, de que sempre precisa ter um final estilo “Scooby Doo” em que se descobre a identidade-surpresa do assassino. Puxa, antigamente era tão simples, o matador era um psicopata fugido do manicômio ou um demente assassino tipo o Jason, e pronto. Agora querem ficar inventando finalzinho-surpresa idiota e que não tem como engolir, porque geralmente os “motivos” dos assassinos nesses filmes tipo “Pânico” são risíveis de tão idiotas. Se um dia sair um “Pânico 5”, aposto que o matador vai ser o entregador de pizza, querendo se vingar de não terem pagado os 10%…

Baiestorf: Como foram as filmagens dele, já que atualmente você está morando em São Paulo e as filmagens foram no Rio Grande do Sul em finais de semana?

Guerra: As gravações começaram em 2009 e demoraram bastante porque eu filmava apenas quando voltava de São Paulo para o Rio Grande do Sul, geralmente nas férias do começo e da metade do ano. O roteiro foi escrito em 2008, e é por isso que os personagens sempre falam que os acontecimentos do filme original (2001) foram sete anos antes. Durante esses dois anos de gravação, tive muitos problemas para conseguir reunir os atores principais do elenco, Rodrigo, Niandra e Eliseu, já que cada um deles escolheu um trabalho com plantão ou necessidade de viajar nos finais de semana. Se você rever o filme, preste atenção como muitos diálogos entre eles são filmados em plano e contraplano, mas nunca com os atores juntos no mesmo quadro. Isso acontece porque eles foram filmados separadamente e “unidos” na edição, a única forma para contornar o problema de que alguém sempre estava indisponível na hora da gravação. E embora a pré-produção tenha começado em 2008, eu até gostei de ter lançado o filme só agora, porque sem querer 2011 marca o aniversário de 10 anos depois do primeiro. Inclusive era para “Entrei em Pânico Parte 2” ter sido lançado em julho de 2010, mas eu não consegui filmar uma parte da cena final e acabei adiando o lançamento por mais um ano. O que foi bem melhor, porque eu pude editar com calma, com cuidado, e até refilmar algumas cenas que não estavam boas. A primeira cena do filme, por exemplo, foi totalmente refilmada em maio deste ano, dois meses antes da estréia oficial. E eu pude assistir e reassistir várias vezes até deixar com uma duração que eu acho que ficou ideal. Daquela versão que passou em julho no Fantaspoa, por exemplo, já cortei mais dois minutos de coisas que estavam sobrando, e agora não vou mais mexer, acho que finalmente ficou bom. Não foi fácil chegar na versão atual de “Entrei em Pânico Parte 2” porque eu tinha 30 horas de material filmado para fazer um filme de 82 minutos. Só aquela cena do massacre coletivo das meninas tem cinco horas de material gravado, porque foram feitos efeitos complicados de maquiagem e eu queria ter certeza de registrar o máximo possível para poder usar depois.

Baiestorf: Como está sendo a recepção do público? E já tem data para ser lançado em DVD?

Guerra: Vou te confessar, Petter, que tinha muito medo da reação do público, considerando que é uma continuação de um filme caseiro que todo mundo já ouviu falar mas quase ninguém viu. Felizmente, “Entrei em Pânico Parte 2” está fazendo um sucesso enorme por onde passa, o que até me surpreendeu. No Fantaspoa, por exemplo, a sessão de lançamento ficou lotada, com pessoas sentadas na escada do cinema. Depois, no final de julho, o filme passou no RioFan, no Rio de Janeiro, e fiquei estupefato ao saber que ganhamos o prêmio de 3º Melhor Filme pelo Júri Popular, batendo diretores “de verdade” como Alex de la Iglesia. Eu sempre digo que o único prêmio que me interessa é o do júri popular, nunca tive pretensões de participar de festivais para ganhar prêmios, troféus, medalhas, mas sempre gosto de saber que de alguma maneira o filme encontrou o seu público. E foi o que aconteceu no Rio de Janeiro, eu jamais esperava isso. Agora ele está seguindo o circuito de festivais, mandei para vários lugares do Brasil e para alguns países vizinhos, mas a gente sempre sofre com o preconceito que os festivais têm em relação a produções independentes que não são filmadas em película nem em HD. O DVD do filme será lançado no final do ano, porque estou preparando uma edição caprichada em disco duplo. Cortei quase 20 minutos de cenas para que o filme ficasse no tempo ideal, e pretendo colocar todo esse material no DVD, assim como making-of, erros de gravação e outras surpresas. Será o DVD mais caprichado que eu já fiz, e espero conseguir vender alguns vários exemplares, porque “Entrei em Pânico Parte 2” é a minha produção mais cara até o momento: gastei cerca de R$ 3 mil e já estou conformado que jamais recuperarei essa grana, ainda mais quando o filme cair na internet para download.

Baiestorf: Percebi uma evolução técnica no “Entrei em Pânico… 2”, principalmente nos efeitos especiais. Fale como foi essa evolução:

Guerra: Em relação aos efeitos especiais, eu e meu irmão Rodrigo fizemos uma oficina com o Rodrigo Aragão, diretor de “Mangue Negro” e “A Noite do Chupacabras”, em 2008, quando ele esteve em Porto Alegre para o Fantaspoa. A idéia era usar esses ensinamentos do Aragão para criar as cenas de morte do “Entrei em Pânico Parte 2”. Anotamos tudinho, compramos os materiais, mas na hora de treinar em casa, o resultado sempre ficava bem tosco. Resolvi então que faríamos apenas os efeitos mais simples da nossa forma improvisada de sempre, e o grosso dos efeitos especiais ficaria a cargo do Ricardo Ghiorzi, o melhor técnico de FX aqui do Sul do Brasil. Eu tive a sorte de o Ghiorzi simpatizar com a minha cara e fazer os materiais e o trabalho a preço de custo. (Só espero que ninguém leia isso e vá mendigar serviço dele como eu fiz, porque o cara é bom mesmo e merecia ser mais reconhecido e bem pago.) Com a ajuda do Ghiorzi, foi mais fácil criar umas mortes bem mirabolantes. E foi bom porque, pela primeira vez, eu podia dar asas à imaginação sem ficar travado pensando: “E agora, como vou fazer essa merda?”. Dessa vez eu simplesmente pensava em cenas absurdas e pedia para o Ghiorzi se dava para fazer. Foi assim naquele lance da cabeça serrada ao meio, que cai e esparrama todo o cérebro pelo chão. Isso nem estava originalmente no roteiro, eu só coloquei porque o Ricardo estava fazendo os efeitos para mim. E como eu sou um cara econômico, reaproveitei quase tudo que ele fez em mais de uma cena. O mesmo olho arrancado de um rapaz na metade do filme, por exemplo, é esmagado pelo Eliseu na cena final; a mesma cabeça decepada que ele fez com molde do rosto de uma menina eu usei outras três vezes no filme inteiro, inclusive para simular a cabeça de outros personagens! Quanto à evolução técnica, isso foi culpa do Rodrigo Aragão. Eu sempre falo para ele que, por causa do “Mangue Negro”, o padrão de qualidade para cinema fantástico independente brasileiro subiu às alturas. Porque antes, Petter, o padrão era os seus filmes, que também são baratos, então era razoavelmente fácil de atingir – até porque nós trabalhamos da mesma forma comunitária, econômica e improvisada. Aí apareceu o Aragão com aquele puta filme que é o “Mangue Negro”, e agora todo mundo – o público, principalmente – espera que você faça um “Mangue Negro” também! Óbvio que o “Entrei em Pânico Parte 2” está bem abaixo desse nível, ainda é uma produção caseira de R$ 3 mil, mas pelo menos eu já tive um cuidado muito maior com a parte técnica, com o som e com a qualidade da imagem (eu não uso iluminação artificial, mas me preocupei em aproveitar bem a luz natural nas cenas). Acredito que sempre é possível melhorar, mesmo não tendo dinheiro para gastar, e foi o que eu tentei fazer nesse filme. Agora pretendo manter o padrão nos próximos.

Felipe e parte da equipe de "Entrei em Pânico 2".

 Baiestorf: Em 2011 você me acompanhou no desafio de filmar 4 curtas em 2 dias e 2 noites no projeto intitulado “Páscoa Sarnenta”, no qual falhei e só consegui finalizar 2 curtas: “Filme Político Número Um” e “Pampa’Migo”. O que vai virar este material todo que você coletou durante as filmagens do projeto “Páscoa Sarnenta”?

Guerra: Deixa eu explicar de onde veio essa idéia: eu estava de bobeira, procurando qualquer coisa no Google, quando fiquei sabendo da existência de um documentário chamado “Lado B”, do Marcelo Galvão, que mostra as dificuldades que o diretor teve para filmar um longa independente chamado “Quart4B” com um orçamento de R$ 30 mil. O que me deixou meio revoltado com esse documentário é o seu subtítulo (“Como fazer um longa sem grana no Brasil”) e a sua proposta de falar sobre cinema independente “barato” entrevistando diretores como Fernando Meirelles e Ugo Giorgetti! Até porque esses caras aparecem comentando as “dificuldades” de fazer filmes “baratos” com 80 mil, 100 mil reais. Oh, coitadinhos! Aí eu pensei que para fazer valer esse subtítulo sobre longas sem grana, o diretor do documentário deveria ter entrevistado gente realmente independente, como você e o Rodrigo Aragão.  Foi quando surgiu a idéia de filmar uma espécie de “resposta” ao documentário do Galvão dando voz aos realmente independentes e aos realmente “baratos”. Como já foi feito algo parecido por aqui – o ótimo documentário “Sangue Marginal”, de Marco Antonio Vaz e B.R.Simonetti –, resolvi optar por uma outra pegada, mais parecida com o filme norte-americano “Popatopolis”, que acompanha as filmagens de um longa de baixíssimo orçamento do diretor Jim Wynorski. Meu objetivo era filmar os bastidores de um curta de Petter Baiestorf para mostrar como REALMENTE se faz cinema sem grana no Brasil, mas aí você surtou e resolveu que tentaria fazer quatro curtas num feriadão. Isso deixou o documentário ainda mais interessante, porque se trata de uma proposta inédita. No fim só saíram dois dos curtas, mas acho que a mensagem foi dada. Eu pretendo começar a editar este documentário no início de 2012. Ainda não tenho muita noção do que vai sair, porque preciso reassistir as quase 12 horas de filmagens. Mas é um documentário com grande potencial, muito engraçado, e que ilustra perfeitamente as verdadeiras dificuldades de se fazer cinema independente no Brasil. Acredito até que será uma aula, um vídeo de referência para qualquer pessoa interessada em fazer seu próprio filme sem grana.

Baiestorf: Tem previsão de quando este documentário irá ser lançado?

Guerra: Se tudo der certo, vou lançar ainda em 2012.

Baiestorf: Fale sobre as edições em DVD, cheias de extras, que você está preparando neste momento. Quando estarão disponíveis e qual será o preço final?

Guerra: Até hoje, só tenho um filme oficialmente lançado em DVD, que é o “Canibais & Solidão”, e mesmo assim foi um DVD feito às pressas, sem muito planejamento, só para atender a demanda. Circulam umas cópias do “Patricia Gennice” e do “Entrei em Pânico Parte 1”, mas são apenas ripagens de VHS sem nenhum material adicional. O que eu estou preparando no momento são edições caprichadas de cada um dos meus filmes, para ver se consigo comover esse público que tem interesse no negócio mas só pensa em baixar. Está me dando um trabalho enorme, mas a idéia inclusive é lançar “Entrei em Pânico” partes 1 e 2 e “Canibais & Solidão” em DVD duplo, com cenas excluídas, making-of e, no caso do “Entrei em Pânico Parte 1”, as duas versões (a original, com 120 minutos, e a reedição, com 72). O DVD do “Canibais & Solidão” terá um making-of chamado “Canibais & Confusão”, que vai explicar todos os problemas acontecidos durante as filmagens e mostrará algumas das primeiras versões das cenas que foram refilmadas. Se bobear, esse negócio vai ser mais engraçado que o próprio filme, porque tem várias imagens dos bastidores que flagram a gente brigando e quase se matando. Outra idéia é colocar tudo num box bonitinho e vender a um preço simbólico para quem quiser a coleção completa. Ainda estou fazendo os cálculos, mas o preço de cada DVD não será maior que 15 ou 20 reais. E meu objetivo ao relançar tudo agora é juntar recursos para comprar uma câmera HD.

Lúcio Reis, Felipe e eu na mostra "Cinema de Bordas 3".

Baiestorf: Você acredita que seu estilo de fazer cinema deva continuar livre a auto-sustentável?

Guerra: Livre sim, auto-sustentável já não sei. Como expliquei antes, eu adoraria que aparecesse alguém com grana sobrando para bancar minhas próximas produções, inclusive a distribuição e quem sabe o tão sonhado lançamento comercial. Alguém que dissesse: “Felipe, vê aí do que você precisa e eu vou atrás de tudo, preocupe-se apenas em fazer um filme legal e que me dê retorno financeiro”. Eu queria muito viver apenas do cinema, o que hoje é totalmente impossível, ainda mais da forma como estou fazendo. Inclusive eu viveria só de escrever roteiros, se isso fosse economicamente viável no Brasil, porque tenho mais idéias para filmes do que tempo e recursos para fazê-los.

Baiestorf: Você está adoravelmente canastrão no seu papel em “O Tormento de Mathias” (2010) de Sandro Debiazzi. Como foi o convite para você aparecer de ator neste filme?

Guerra: O Sandro me procurou numa das edições da mostra Cinema de Bordas, aqui em São Paulo, e disse que faria sua dissertação de mestrado sobre cinema trash, e que ia analisar a minha obra, a do Joel Caetano e sua própria filmografia, iniciada anos antes, também nos tempos do VHS. E aí ele me comentou sobre esse projeto que fazia desde sempre e nunca tinha conseguido terminar, e me identifiquei na hora por causa dos meus vários filmes cancelados, abandonados ou cheios de problemas durante as filmagens. O Sandro estava pensando em fazer um novo filme usando as imagens antigas como se fossem flashbacks, e perguntou se eu tinha interesse em fazer um dos papéis. Aceitei na hora, porque sempre quis ter essa experiência de participar de um filme independente de outra pessoa, para saber se eles têm as mesmas dificuldades e problemas que eu. O Joel Caetano, cineasta independente aqui de São Paulo de cujo trabalho eu gosto muito, também foi convidado. E o legal é que fizemos uma cena juntos, em que eu me divirto muito matando o personagem dele. Não sei se eu trouxe azar ao Sandro, mas ele teve tantos problemas durante as filmagens de “O Tormento de Mathias” quanto eu geralmente tenho nos meus filmes. Inclusive precisou filmar minha cena de morte duas vezes por causa disso, o que de certa forma foi bom, porque na primeira versão, que foi para o lixo, eu tinha deixado um bigodinho muito sem noção, e na versão oficial já fiz um upgrade para um cavanhaque. Eu não sou ator, nunca tive sequer a pretensão de atuar, e alertei o Sandro desde o começo de que seria canastrão e exagerado. Ele tentou me controlar em alguns momentos, mas não teve jeito – e também fez questão de escrever um personagem gaúcho ao perceber que seria impossível disfarçar o meu sotaque. Me diverti muito durante as filmagens. O Sandro também faz tudo sozinho, inclusive os efeitos especiais, mas é bem mais organizado do que eu. Até ficava puto com ele porque nunca queria fazer muitos takes, nem tentar ângulos diferentes, já estava com tudo prontinho na cabeça e não queria ter coisa a mais para se preocupar. Há pouco tempo batemos um papo e ele sugeriu a possibilidade de fazer um “Tormento de Mathias 2”. Já pedi para não me deixar de fora, pois seria interessante aquele clichê tão sem vergonha do meu personagem morto no primeiro filme ter um irmão gêmeo em busca de vingança neste segundo…

Baiestorf: Em 2011 você fez papéis em mais 3 curtas independentes: “Morte e Morte de Johnny Zombie” (de Gabriel Carneiro), “Vermibus” (de Rubens Mello) e “Pampa’Migo” (dirigido por mim). Conte como foram essas produções. Pretende investir na carreira de ator canastrão?

Guerra: Como eu disse antes, nunca me imaginei como ator, todas as aparições que fiz antes de “O Tormento de Mathias” foram nos meus próprios filmes, e não porque eu queria ou gostava de atuar, mas sim porque eram papéis mais constrangedores que ninguém queria fazer. Inclusive eu admiro muito caras como você e o Joel Caetano, que são ao mesmo tempo excelentes diretores e ótimos atores, principalmente o Joel. Mas eu gosto de participar desses projetos quando me convidam, faço questão, principalmente porque sempre tive a postura de ajudar um colega cineasta independente quando ele precisa de ajuda. Lembro que quando eu comecei, lá na metade dos anos 90, era muito difícil trocar informações com quem fazia filmes por causa do problema da comunicação, que na época era por carta ou telefone, e quando a internet apareceu, um dos primeiros caras que “compartilhou o conhecimento” foi o Pedro Daldegan, que fazia curtas em VHS desde o final da década de 80. Por isso eu fico furioso ao constatar que hoje, com tanta facilidade para entrar em contato e trocar experiências e informações, ainda existem muitos grupinhos fechados que não se misturam, que não querem saber do trabalho dos outros, que acham que são os fodões e o resto todo é lixo. Sempre que eu converso com o pessoal que produz cinema independente nos festivais como o Cinema de Bordas, eu lamento o fato de que muitos realizadores ainda enxergam o trabalho do outro como concorrência, uma atitude estúpida e mesquinha, ainda mais nesses tempos em que ninguém está ganhando dinheiro e deveríamos unir forças. Assim como o Aragão fez convidando você, o Joel e o Cristian Verardi para o filme dele “A Noite do Chupacabras”. Eu também convidei o Joel para um curta de custo zero que quero fazer aqui no meu apartamento nos próximos meses, e esse filme será realizado em parceria com um outro diretor independente, o Fritz Martiliano da Silva. Assim vamos unindo forças, cada um ajudando no filme do outro. Eu sempre ajudei quando me pediram ajuda e sempre me coloquei à disposição, porque acho fantásticas essas somas de esforços. Todo mundo sempre aprende algo. Hoje você pode entrar no Google e encontrar mil receitas de sangue falso, mas mesmo assim eu sempre respondo e-mails de jovens realizadores me pedindo como fazer sangue falso. Se eu posso ajudar em alguma coisa, ajudo com todo prazer – menos financeiramente, porque não tenho dinheiro nem para os meus filmes. Se diretores como o Sandro, o Rubens e o Gabriel acham que eu vou acrescentar alguma coisa aos trabalhos deles, participo com o maior prazer, mas sempre alertando para o fato de que não sou ator e faço tudo por brincadeira. Inclusive eu lamentei por minha participação aí em Palmitos ter sido tão pequena, queria ter mostrado mais os meus dotes de canastrão no curta “O Monstro Espacial”, que infelizmente foi cancelado (nota de Baiestorf: “O Monstro Espacial” foi um dos curtas do projeto “Páscoa Sarnenta” que não consegui filmar por culpa de um dia inteiro de chuvas). Mas é por aí: se precisar estou à disposição. Falando um pouco mais sobre essas produções de que participei, “Morte e Morte de Johnny Zombie” é o primeiro filme do jornalista Gabriel Cauduro, que é colaborador da excelente revista virtual Zingu. Ele tinha me convidado há um tempão, e fiquei feliz porque foi minha primeira participação como ator num papel romântico e ao lado de uma menina bem bonita, já que geralmente só “interpreto” gays, travestis e vítimas de assassinos psicopatas. E fiquei impressionado com o talento e o perfeccionismo do Gabriel e de toda a equipe dele, poucas vezes vi um set “independente” tão organizado. O “Pampa’Migo”, que fizemos aí em Palmitos, foi mais uma participação especial relâmpago, não tive a oportunidade de fazer muita coisa, mas pelo menos eu te diverti com minhas expressões faciais exageradas. Caro leitor, saiba que o Petter me sacaneou porque eu fiz a burrada de dizer que não gostava de salame, e aí ele colocou meu personagem para comer salame, e ainda repetiu a cena umas oito vezes até eu quase vomitar, com a cumplicidade do seu astro de estimação Jorge Timm, que malignamente separava os pedaços maiores para que o meu personagem “comesse” – personagem, aliás, que foi batizado “Cagão” num daqueles momentos de pura sensibilidade e poesia do roteirista Baiestorf. Finalmente, minha participação no “Vermibus” também foi bem pequena, filmada basicamente numa manhã, de modo que insisti para o Rubens gravar uma outra cena alternativa comigo, e depois se ele quiser colocar no corte final ou não é problema dele. Foi igualmente um trabalho bem divertido, com pessoas interessadas e dedicadas. Nos três filmes (quatro com “O Tormento de Mathias”), aprendi várias coisas que pretendo usar nas minhas próximas filmagens, principalmente em relação à organização do set de filmagens.

Joel Caetano, Rodrigo Aragão, eu, Talita Capozzi, Guerra e Walderrama dos Santos.

Baiestorf: Que dicas você dá aos jovens que queiram começar a produzir filmes independentes?

Guerra: Que façam seus próprios filmes. Que não dêem bola para críticas e observações maldosas dos outros, principalmente de estudantes de cinema metidos que gostam de dizer que tudo no trabalho dos outros está errado, já que se sentem “ameaçados”. Que procurem formar um grupo de amigos e familiares leais e fiéis, um grupo que fique unido não só quando tudo é festa, mas também quando começa a dar merda e você precisa regravar metade das cenas. Principalmente, que expulsem de perto todos aqueles caras chatos que insistem em ficar criticando, reclamando, dizendo “Isso não dá pra fazer”. De um jeito ou de outro, tudo dá pra fazer. Eu gostaria que essa nova geração de cineastas independentes se inspirasse mais no meu trabalho, no seu, Petter, no do Joel… Enfim, nesse tipo de cinema feito por amor e com criatividade, improviso, sem dinheiro, e não aquele cinema burocrático das leis de incentivo à cultura, dos cursinhos de cinema, cheio de frescuras, que praticamente tira a vontade do cara de continuar produzindo. Sei que muita gente prefere ficar choramingando que não dá pra fazer, que não tem dinheiro, que não tem ajuda, que não tem isso ou aquilo. Mas caramba, assistam “Extrema Unção” no YouTube, um filminho com começo, meio e fim feito com amigos e familiares, que custou menos de 50 reais e rendeu 500 numa tacada só! Não dá pra fazer? Claro que dá! Talvez não fique exatamente como você quer na primeira ou na segunda vez, mas continue insistindo até acertar. Claro, não pode querer começar com um projeto megalomaníaco de filme independente de zumbis com mil figurantes, é preciso trabalhar adequado à sua realidade. O importante é não deixar de fazer, mas fazer menor, contornar as deficiências com criatividade. Enfim, FAÇAM SEUS FILMES! Acreditem, vocês não precisam de dinheiro para fazer, e está aí o Petter Baiestorf que pode confirmar isso até melhor do que eu. Vocês não precisam de equipamento profissional para fazer, e hoje é facílimo arranjar uma câmera simples para filmar com um mínimo de qualidade. E, principalmente, vocês não precisam de curso ou de faculdade de cinema. Se quiser muito fazer, faça; não tenho nada contra a busca de conhecimento. Mas não se sintam diminuídos por não serem “formados” em cinema, porque ver filmes (principalmente filmes ruins) e tentar fazer na prática ainda é a melhor escola. Werner Herzog já dizia: “O cinema é uma arte de analfabetos, não de eruditos”. Enfim, parem de choramingar que hoje vocês têm tudo na mão, podem fazer uma busca no Google e em cinco segundos aprender tudo que precisam para fazer uma pequena superprodução caseira. E já não precisam mais editar filmes com dois videocassetes, o que já elimina uns 70% da dificuldade e do sofrimento do processo! Menos choro e mais filmagem, garotada!

Baiestorf: Palavras finais e como os leitores do Canibuk podem adquirir teus filmes?

Guerra: Hã, e será que ainda tem alguém lendo isso? Bem, Petter, queria dizer que foi uma grande satisfação ter respondido a essa entrevista, eu sempre acho ótimo responder perguntas de alguém que tem interesse e conhecimento de causa na hora de questionar, para fugir de coisas como “O que você faria se tivesse um milhão de reais?”. Eu espero que não tenha sido muito chato, e que tenha conseguido incentivar mais pessoas a fazer seus próprios filmes. Espero também que mais gente tenha se interessado pela minha obra, os novos DVDs começarão a ser vendidos no final do ano, talvez começo de 2012. Então fiquem ligados que em breve poderão comprar meus filmes e o novo “Entrei em Pânico Parte 2”, que, espero, ainda será exibido em vários festivais Brasil afora, talvez até em algum cinema perto de você, leitor. E queria concluir falando que estou com alguns novos projetos para o ano que vem. Ainda este ano, começo a produção de um longa de horror dividido em três episódios sobre o Sanguanel, uma figura do folclore ítalo-gaúcho. Além de produzir, vou dirigir uma das histórias, e as outras serão escritas e dirigidas pelos meus amigos Eliseu Demari e Rafael Giovanella. Também quero acabar de escrever e começar a filmar uma comédia romântica em forma de road movie sobre dois amigos viajando pelo litoral rio-grandense. Os dois filmes serão feitos do meu jeito, com (pouco) dinheiro tirado do bolso e ambos gravados em mini-DV. E continuo com aqueles projetos dos sonhos, que pretendo começar a encaminhar também no ano que vem: meu filme de faroeste que homenageia o spaghetti western italiano, e a continuação não-oficial de “Perdidos no Vale dos Dinossauros”. Como sempre, muitos projetos e pouco tempo para filmá-los – fora os roteiros que tenho prontos e por gravar, tipo “Puteiro Sangrento”. Portanto, longa vida ao cinema independente brasileiro, e que as “bordas” continuem produzindo todo tipo de filme, terror, comédia, ação, musical, ou tudo misturado. Enfim, façam seus próprios filmes e do jeito que quiserem, porque se formos depender desses caras que têm as ferramentas e os recursos de mão-beijada, estamos todos fodidos e com coisas tipo “Se Eu Fosse Você Parte 15” sendo enfiadas goela abaixo!

Baiestorf: Obrigado pela entrevista Felipe, e queria deixar dito aqui, publicamente, que me coloco a sua inteira disposição para fazer papéis e ajudar na produção dos dois projetos seus: A continuação-picareta de “Perdidos no Vale dos Dinossauros” (sou fã do original) e seu spaghetti  western, adoro o western italiano que na minha opinião é melhor do que os originais americanos. Está nos meus planos produzir/escrever/digirir outro western além do “Ninguém Deve Morrer”, quando produzi este vi que é relativamente fácil e barato organizar westerns.

Felipe Guerra e eu na mostra Cinema de Bordas 3 (2011).

16 Respostas to “Necrófilos em Ação: O Cinema de Felipe Guerra na Terra da Polenta”

  1. Excelente entrevista, Petter. E, Felipe, duas coisas:
    1 – O longa O Dono do Mar teve exibição lá no Maranhão, com noite de autógrafos, festa de gala e tapete vermelha na entrada do principal cinema da cidade. Sessão exclusiva para os maiores endinheirados do estado. Na época da produção do filme, o telejornal da emissora filiada à Globo(Mirante, propriedade do Sarney) exibia todo santo dia “notas de produção” do filme, chegando ao cúmulo da falta de noção em mostrar as partes íntimas da Isadora Ribeiro e Daniela Escobar em pleno meio-dia! =P
    2- Matei a identidade do assassino de “Entrei em Pânico 2…” logo nos créditos iniciais do filme! Fã de Sexta-Feira 13 que sou… 😉

    Ah, gostaria muito de ter lido esta entrevista na época que estava na faculdade e tive uma ideia maravilhosa para um videoclipe de uma música do Radiohead que nem havia sido lançada. Meu professor de Cenografia e Iluminação(um cineasta independente maranhense) disse que era impossível filmar com os parcos recursos que tínhamos… Fiquei desanimada e enterrei o projeto. Quando o Radiohead lançou o videoclipe “oficial” da música, o mesmo professor me ligou dizendo que a minha versão ficaria infinitamente melhor… ¬¬
    Parabéns pelo trabalho, continue com esse amor que você tem pelo cinema. Eu o admiro muito por isso.

  2. Entrevista maravilhosa, sensacional e maldita (no bom sentido) pois fiquei imerso na leitura deixando de lado diversos afazeres que me complicaram pelo resto da tarde… hehehe.

    Continuem com o verdadeiro cinema independente nacional e que 2012 seja ainda mais produtivo. Vamos nos esforçar, afinal, vai que o mundo acaba, né?

  3. Foi uma das melhores entrevistas que eu já li sober cinema independente. Parabéns!!

  4. Dois grandes mestres: Petter e Felipe!
    Uma grandiosa aula de cinema e de vida!
    Só temos que agradecer a iniciativa de vocês e honrar por tudo que representam no cinema autoral, independente.
    Parabéns pelo belo trabalho de resgate de memória, Petter.

  5. Ótima entrevista…sou catarinense e fã desses dois amigos sulistas.

  6. Demorei mais de 2 horas lendo e achei incrível a entrevista , meus olhos lacrimejaram várias vezes mas é que estou sem meus ôculos. haha, Vida longa as produções do Guerra.

  7. Felipe, seu animal, tua entrevista tá da hora mesmo, ficou muito boa. Só que agora depois dessa entrevista nos colocou uma corda no pescoço minha (Rafael Giovanella), e do Eliseu Demari, nos comprometendo com o Sanguanel. Olha que se tu não se comportar ele vai te pegar viu!!
    Rafael Giovanella – Colonya Pictures.

  8. Fiquei muito feliz de poder ler essa entrevista com o Guerra, que apesar de ser meu amigo, conhecia a trajetória dele muito superficialmente.

    Muito legal ver as semelhanças na forma de pensar e agir dos cineastas independentes como o Guerra, Petter, o Gurcius, o Joel e etc.

    Que venham novas entrevistas!

  9. Landerson Says:

    Essa entrevista me incentivou a me torna um cineasta independente.

  10. […] programa de TV Jogo de Idéias com participação de Kika de Oliveira (“Mangue Negro”), Dona Oldina (“Extrema Unção”), Gisele Ferran (“O Doce Avanço da Faca“), Mariana Zani […]

  11. […] em “Necrófilos em Ação: O Cinema de Felipe Guerra na Terra da Polenta” para ler a entrevista que fiz com […]

  12. […] Rick, dos ótimos “Rubão – O Canibal” (2002) e “Feto Morto” (2003) e Felipe Guerra de filmes como “Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-Feira 13 do Verão […]

  13. […] e eu estou fazendo para produzir meu longa-metragem “Zombio 2: Chimarrão Zombies“, Felipe Guerra e Geisla Fernandes estão agora em busca de investidores/apoiadores para a finalização do […]

  14. […] Fitas, Camarão Filmes e Idéias Caóticas, Bulhorgia Filmes, Sui Generis Filmes, Projeto Zumbilly, Necrófilos Produções, Fábulas Negras, Gosma e mais uns 50 colaboradores, cada um ajudando a fazer o muito com o pouco […]

  15. […] Felipe M. Guerra escreveu me avisando que, diante da impossibilidade de realizar um lançamento em DVD/Blu-Ray (porque estes lançamentos não se pagam mais, eu mesmo parei de fazer lançamentos físicos porque vende pouquíssimo), resolveu colocar seu filme no youtube. […]

  16. […] longa episódico, por falta de dinheiro – mas tudo foi registrado pelo cineasta Felipe M. Guerra e pode virar um documentário ainda –  e em 2012 foi extremamente caótico, quando tentei […]

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